A nova situação política do país, de transicção pós-José Eduardo
dos Santos, pode ser sintetizada através dos binómios seguintes: fim de ciclo,
começo de quê/começo de quê, viragem para onde/viragem para onde, ao serviço de
quem.
ALVES DA ROCHA
EXPANSÃO
O ano de 2016 marca o início do fim do ciclo político de um
Presidente da República que esteve no poder durante mais de 36 anos e que, no
momento da retirada, deixa o país no meio de uma encruzilhada crítica, do ponto
de vista financeiro, económico e sobretudo social. O PIB por habitante em 2016,
de pouco mais de USD 3500 (menos de USD 10 por dia), retrata bem alguns dos
insucessos/atrasos económicos registados (dos quais os mais importantes são do
domínio das reformas estruturais de mercado) e que tiveram consequências
sociais indeléveis sobre as condições de vida da grande maioria da população. O
seu ciclo político chega ao fim, mas não o do regime por si fundado, com o
apoio persistente do seu partido. Ou seja, começa um novo ciclo político com um
novo Presidente da República, mas não um novo regime, mais democrático, mais
amigo da população e dos pobres, mais desenvolvimentista, mais aberto a
propostas de outros modelos de gestão económica e social que tenham como ponto
forte a inclusividade das políticas.
Assim, o "começo de quê" ainda não está
suficientemente esclarecido pelo candidato oficial do MPLA às eleições de
Agosto de 2017. As notas, pensamentos e reflexões que vai passando nos seus discursos
de apresentação pelo país fora - talvez, em termos de adesão popular, uma
evidente desvantagem comparativa face ao Presidente cessante, muito mais
conhecido e credor de uma atitude reverencial dos militantes e simpatizantes do
partido - não expressam, nem uma viragem estrutural e estruturada face ao
pensamento oficial do MPLA, nem, também, a direcção dessa viragem, ainda que
envergonhada e disfarçada de jargões e ideias feitas. Talvez seja exigir
demasiado a um candidato que não congrega a totalidade, ou mesmo a
significativa maioria, de apoio das estruturas partidárias, sendo ainda
evidentes os sinais de desconforto para os grupos indefectíveis de José Eduardo
dos Santos e cujo afastamento da governação do país pode colocar em perigo os
seus interesses económicos e financeiros. E a viragem para onde não está
definida, aguardando, talvez, pelo Programa Eleitoral do MPLA. Mas, o candidato
e cabeça de lista tem de transmitir ao seu partido as suas ideias
revolucionárias em matéria social e económica, para que sejam levadas em
consideração no seu programa eleitoral de cuja aplicação dependerá a sua
governação política. Se há intenção de viragem - as dúvidas são muitas, pelo
menos nos primeiros anos da sua direcção, tantos são os interesses,
contraditórios e mesmo antagónicos, a gerir no interior do partido - então tem
de se dizer quais serão os modelos económicos e sociais a levar a efeito
durante o novo ciclo político, caracterizando-os de uma forma minuciosa e
projectando-os temporalmente (para apenas a legislatura que se inicia em 2017
ou para um período mais longo?).
Insistir no chamado modelo de economia social de mercado, sem o
caracterizar com a minúcia científica e política necessária, é absolutamente
dispensável, pois só dizê-lo por dizer não vale de nada, porquanto a sociedade
civil angolana está mais inteligente, mais intelectualmente viva e crítica,
mais atenta e adquiriu uma perspicácia que não pode ser ignorada ou mesmo
menosprezada (basta seguir as intervenções dos telespectadores ou ouvintes nos
programas abertos de intervenção crítica).
Um modelo de economia social de mercado - modelo muitas vezes
repetido pelo Presidente cessante em diversas intervenções públicas, durante o
seu mandato - tem elementos económicos e sociais que se devem conjugar, através
de políticas públicas diferentes, mas eficientes e eficazes, no sentido do
progresso social da maioria esmagadora da população. A expressão "crescer
mais, para distribuir melhor" do Programa Eleitoral do MPLA de 2012, pode
ter sido uma boa aproximação desta necessária e importante conjugação entre os
elementos económicos e sociais de um sistema de economia de mercado. Mas em
Angola falhou completamente: o país nem cresceu mais (pelo contrário, em 2015 e
2016, segundo as Contas Nacionais, registou-se não apenas uma assinalável
quebra dos ritmos de crescimento do PIB, como se deu conta de episódios de
recessão económica), nem se distribuiu melhor. Os coeficientes medidores da
pobreza e da distribuição primária do rendimento nacional têm vindo a piorar,
sendo preocupante como 60% da população pode viver com menos de USD 2 por dia,
com uma taxa de inflação superior a 40% em 2016 (Angola continua a ocupar as
piores posições em todos os rankings internacionais sobre a desigualdade
económica e social). Ainda não nos envergonhamos com este facto, tal é a
ansiedade de, mesmo em crise financeira e económica, se acrescerem os pecúlios
monetários e os activos imobiliários e empresariais de uma muito pequena porção
da população. A desproporção de rendimentos, e especialmente de riqueza, é
abissal em Angola. O valor do Índice de Ginni, os valores do Índice de
Desenvolvimento Humano, o formato da Curva de Lorenz, o
poverty headcount ratio e os valores do IBEP 2008/2009 expressam-no
com meridiana clareza.
O modelo de difusão social do crescimento económico que tem sido
aplicado revelou-se errado (a renda petrolífera serviu para que fosse criada
uma faixa muito reduzida de população excepcionalmente rica, usando-se a
Sonangol e o OGE como instrumentos privilegiados) e insuficiente. Melhorar a
distribuição do rendimento nacional apenas pela via do emprego - cuja criação
nem sempre atingiu as metas estabelecidas pelo Governo, estando ainda na
memória de toda a gente a promessa de 1.300.000 novos postos de trabalho entre
2008 e 2012 - é claramente escasso, como o comprovam as abordagens teóricas
sobre o emprego e as inúmeras evidências empíricas reveladas por estudos e
pesquisas independentes.
Dir-se-á que a abrupta e continuada queda do preço do petróleo é
a razão essencial explicativa da actual crise. Mas não é verdade. O abaixamento
do preço do barril de petróleo só veio pôr a nu as falhas de gestão económica
num país que foi capaz de gerar cerca de USD 580 mil milhões de receitas de
exportação do petróleo, entre 2002 e 2016. Como já o escrevi repetidamente, a
mais importante prioridade definida pelo MPLA foi a da acumulação primitiva de
capital e a criação de uma burguesia nacional capaz de disputar o poder
financeiro às empresas estrangeiras existentes e "fazer banga" (pedindo-se
desculpa por uma expressão em nada científica) nas praças estrangeiras
comprando activos mobiliários e imobiliários e deixando o país sem USD 29 mil
milhões colocados no exterior a título de transferências de capitais* . Para
além de se não terem feito as reformas estruturais fundamentais, os próprios
angolanos não têm confiança em si, nem no seu país. Estará a futura nova
liderança política interessada e capaz de mudar radicalmente este status quo?
Admitindo que esta viragem pode acontecer, a dúvida seguinte é
"ao serviço de quem"? Os resultados do intenso crescimento económico
ocorrido entre 2002 e 2008 foram distribuídos de uma forma muito desigual e o
IBEP 2008/2009 revelou que 60% do PIB (ou do rendimento nacional) foram
captados por menos de 20% da população. A inaceitável e inexplicável crise dos
hospitais ocorrida no final de 2015 e em 2016 é prova cabal de que o domínio
social da economia angolana tem sido um filho pródigo do crescimento económico,
não colhendo a justificação oficial de que o Orçamento de Estado tem conferido
verbas crescentes para o seu funcionamento e gestão. Ainda que possa ser
verdade em termos puramente aritméticos, a questão fundamental é a da sua
eficiência. A questão colateral é a da corrupção que grassa todos os serviços
sociais do país (uma corrupção vertical - do topo à base - e horizontal, não
escapando nenhum serviço público, central ou provincial). Que margem política o
futuro Presidente da República terá para mexer e atrapalhar os poderosos
interesses aqui instalados a favor de correligionários seus?
No entanto, as mudanças são sempre de saudar e apoiar. Mas para
isso é necessário que a nova liderança do país se abra a novas ideias, formatos
e modelos e, acima de tudo, que não considere o pensamento do seu partido como
a verdade absoluta.
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