Kim Alves
Semanário Angolense
As
várias famílias que viram as suas casas barbaramente demolidas no Bairro Twa
Pandala, um dos doze aglomerados populacionais constituídos há muitos anos na
região da chamada Burgalheira, município do Dande, na província do Bengo,
continuam à chuva e ao sol, mais de três meses depois da acção devastadora de
um camartelo alegadamente desconhecido pelas próprias autoridades municipais.
Segundo o presidente da Comissão de
Moradores, Domingos Manuel Muenleputo, estão nessa condição cerca de 600
famílias, todas identificadas e documentadas, mas que nada puderam fazer na
altura em defesa dos seus direitos e dos seus bens diante da equipa demolidora,
que se fazia acompanhar de um aparato militar fortemente armado.
Domingos Manuel Muenleputo diz que, no
dia 2 de Dezembro do ano passado, foi surpreendido por alguém que se intitulou
como sendo um alto funcionário da Unidade Técnica do Bengo, identificado
apenas por «Sr. Carvalho», que lhe disse que no dia seguinte, um grupo de
militares e máquinas deviam chegar ao «Twa Pandula», pedindo-lhe então para
que avisasse a população a não resistir ao que eles iriam fazer.
«Por mais que insistisse, o sr. Carvalho
recusou-se a dizer qual seria a missão desses militares, recomendando-me
apenas para que avisasse a população a não se opor fazer, senão iria haver um
banho de sangue. Falei com alguns populares e ficamos à espera. No dia
seguinte, 3 de Dezembro, por volta das 9 horas, chegou um grande aparato militar,
que, sem aviso, começou logo a derrubar as casas. Primeiro foi a escola das
crianças, construída pela população. Mesmo diante do choro delas, não tiveram
pena e derrubaram tudo, até pequenas casotas de chapa. Não deixaram que
tirássemos os nossos haveres, nem nada e ainda fomos ameaçados de morte»,
contou, lastimoso.
Domingos Muenleputo afirma que ele e um
dos seus colaboradores, por terem questionado um coronel que acompanhava a
tropa sobre a razão da demolição do bairro, foram levados para uma ribanceira
onde seriam ameaçados de morte.
No dia seguinte, recorreu às autoridades
municipais do Dande, onde lhe foi explicado que o dito Carvalho os enganara
pura e simplesmente porque não tinha autorização nem competência para ordenar
a demolição de um bairro e muito menos para mandar ocupar os terrenos por quem
quer que fosse.
«Mandaram-nos aguardar calmos, porque
iriam resolver a situação, mas só que até agora, passados mais de 90 dias, não
nos dizem nada. Passamos dias e dias a viver ao relento com os nossos filhos e
netos. ,Perdemos o bocado que tínhamos, os nossos filhos não podem estudar, mal
nos alimentamos, mas as autoridades continuam insensíveis», diz Domingos
Muenleputo, estranhando, no entanto, com o facto dos problemas só terem
surgido assim que a circunscrição passou a estar ligada administrativamente à
província do Bengo. «Quando pertencíamos à comuna da Funda, município de
Cacuaco, as nossas preocupações eram logo atendidas», queixa-se o presidente da
comissão de moradores do «Twa Pandula».
As
autoridades municipais do Dande continuam sem nada decidir sobre a sorte dos
desalojados do «Twa Pandula», que vivem desde então ao relento. A situação
agravou-se com a chegada das chuvas. Para se resguardarem da inclemência do
tempo (chuva e sol), cada família foi improvisando pequenas casotas com as chapas
e papelões que sobreviveram da barbárie de que foram alvo.
A hora em que a equipa de reportagem do
SA chegou ao Twa Pandula, na semana passada, dezenas de crianças, com batas
brancas, estudavam debaixo de uma árvore, próxima dos escombros do que fora a
sai escola. Um quadro preto estava encostado ao tronco do embondeiro. Os jornalistas
foram recebidos pelas crianças com gritos: «Queremos a nossa escola!».
Este jornal soube que, para além da escola,
o que aflige mais a população é a falta de um centro médico na região,
sobretudo em casos de maternidade. Segundo uma das nossas fontes, há dias,
houve o caso de uma parturiente que teve que ser evacuada numa carrinha para a
maternidade em Cacuaco. Mas, o parto aconteceu pelo caminho, tendo bebé
entrado em sofrimento devido aos solavancos. E mesmo depois de socorrida na
maternidade Augusto Ngangula, as complicações resultaram na invalidez da
criança.
A nossa fonte diz que a comunidade
também se ressente da falta de uma unidade policial devido essencialmente aos
«abusos cometidos por pessoas provenientes de outras zonas que pretendem expropriar
as terras das populações locais.
Os
populares, para além do «famoso» sr. Carvalho, acusam uma tal de Dona Joia,
detentora de uma herdade na região, na qual se dedica à criação de gado
bovino, de estar também por trás do acontecimento.
Não é a primeira vez que ela manifesta
apetência por terras alheias. Um dos nossos cicerones dá o exemplo de uma
disputa entre ela e um brigadeiro na reserva identificado por Paulo, que se
viu obrigado a deixar o actual espaço onde ela ergueu a sua herdade, indo
instalar-se mais abaixo.
«A Dona Jóia gaba-se de ter costas
largas. Aliás, só assim se compreende que ela tenha conseguido desalojar até
um oficial-general das Forças Armadas», explica a nossa fonte.
Talvez pela sua posição, ao sr. Paulo
foi, no entanto, concedido uma outra parcela de terra, situada mais abaixo,
onde agora já ninguém o chateia, por ter tudo bem definido.
«Mas, o bairro Twa Pandula, fundado em
meados dos anos 80, também tem os seus limites bem definidos. E sempre vivemos
em paz, pelo que não compreendemos a razão dessa fúria toda que agora se abate
sobre nós», lamentou uma das nossas fontes.
Rufino Kibuila, 80 anos de idade, é um
ancião que vive naquela zona há muito tempo que até se esqueceu precisamente
desde quando. Os moradores consideram-no, ao lado do também ancião Chico
Malanjinho, como o fundador do bairro. Ele conhece a história toda da região,
inclusive os detalhes sobre a chegada das pessoas que se foram instalando,
como é o caso da Dona Jóia, que diz tê-la recebido em 1986.
«Quando ela cá chegou e manifestou o
interesse de ter um espaço para criar gado, fomos nós que a recebemos e
ajudamos. Ela começou com um espaço de cerca de 200 metros quadrados, mas
agora está a reivindicar 750 hectares e diz que nós é que invadimos e
ocupamos os terrenos dela, Como assim, se fomos nós que a recebemos?!»,
explica, questionando-se o velho Rufino Kibuila.
Por outro lado, os populares acusam
abertamente alguns «generais» de estarem a ocupar dezenas e dezenas de
hectares de terreno naquela área, como demonstram as extensas vedações. O
problema porém é que, ainda assim, ao invés de implementarem projectos úteis,
eles procedam às ocupações e usurpações das terras para depois venderam-nas a
estrangeiros.
«Os ‘generais’ deviam defender o povo.
Mas aqui, é o contrário: para eles o povo está abaixo dos animais. Eles escorraçam-nos
das nossas terras, ocupam-nas para as vender aos estrangeiros. Eles estão a
enraizar-se com a ajuda dos nossos dirigentes. Daqui a pouco, nesse andar,
eles vão mandar em tudo, enquanto nós, os donos da terra, até o pequeno espaço
onde temos as nossas casas nos estão a recebe à força, atirando-nos ao relento
com as nossas famílias», lamentou um dos anciãos.
«Isto é um crime, porque até os bois têm
currais para se abrigarem», concluiu, altamente revoltada, a nossa fonte.
os bois têm currais, mas nós estamos ao
relento por causa de gente maldosa que está a vender o país aos estrangeiros, o
povo que se lixe
A comissão
de moradores que representa os habitantes de todos os bairros da região da
Burgalheira foi convocada há dias pelo governador provincial do Bengo, João
Bernardo Miranda, para um encontro que se realizou no passado dia 23.
Na base da convocatória estava um
documento despachado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos para o
Governo Provincial do Bengo, depois de denúncias sobre violações aos seus
direitos apresentadas pela população àquele departamento, assim como à
Assembleia Nacional.
O governo provincial do Bengo esteve
representado no encontro, realizado na sua sede, em Caxito, pelo
vice-governador José Sebastião Major e por Paka Miguel, assessor social de
João Miranda
No fim da reunião, os representantes dos
moradores da Burgalheira não gostaram nada do que ouviram, embora tivesse
havido promessas de indemnização e transferência para uma outra zona, que não
sabem qual, para todos os que viram as suas casas demolidas no Twa Pandula.
«O problema é que não fixaram datas»,
lamenta um dos cinco representantes dos moradores bairro demolido em conversa
com o SA, apreensão que tem a sua razão de ser, uma vez que a situação por que
passam as 600 famílias atiradas ao relento por acção daquele camartelo estranho
exige uma resposta de carácter emergente. «É que já lá vão mais de três desde
que nos destruíram as casas e nunca vimos o apoio de ninguém, quando nem sequer
temos lugar para dormir», sublinha a fonte.
Entretanto, o Semanário Angolense soube
de fonte do Governo Provincial do Bengo que o caso das pessoas desalojadas no
bairro Twa Pandula começa a ser solucionado dentro de uma semana. «As
preocupações foram já levadas às entidades de direito, pelo que se vai preparar
as condições e de seguida vai-se resolver tudo de formas que ninguém fique
mal», garantiu a fonte do governo local.
A região
da Burgalheira, antes ligada administrativamente à comuna da Funda, município
de Cacuaco, província de Luanda, faz agora parte do município do Dande,
província do Bengo. É uma zona onde se extrai inertes (sobretudo burgau, pedra
e areia) para a construção civil. Contudo é uma região rica em água, sendo
atravessada pelo rio Bengo, além de possuir várias lagoas.
É propícia para a pesca artesanal do
cacusso e bagre e para a agricultura, actividades exercidas por populações de
camponeses e pescadores lá estabelecidas desde os tempos mais remotos.
Durante o tempo de guerra, foi uma zona
militar estratégica, uma vez que servia de tampão às investidas dos então
guerrilheiros do Galo Negro contra Luanda, sendo a conduta de água que
abastecia a capital a partir da Estação Kifangondo o alvo principal.
Alguns dos militares que então
prestaram serviço militar ali, provenientes de várias regiões do país, optaram
por estabelecer-se por lá, com as famílias que acabaram por constituir,
juntando-se às populações que já habitavam a região desde há décadas.
Ao invés de esperar apenas pelos
subsídios e pensões militares, quase todos preferiram dedicar-se à agricultura
e à pecuária, enquanto outros optavam pela pesca e piscicultura nas pequenas
propriedades que foram conseguindo.
Há ainda os que trabalham nas empresas
que exploram inertes ou nas quintas agro-pecuárias erguidas nas região.
«Preferimos não pedinchar ao governo como muitos o fazem e ganhamos a nossa
vida com trabalho. Não somos pedintes e até aliviamos o governo que já deve
ter-se esquecido de nós», declarou um ex-militar.
Em meados do ano passado, 2014, o SA
publicou uma reportagem sobre a «Burgalheira», cuja população estava a ser
ameaçada por militares, que ao queria desalojar para ocupar os terrenos.
Lá postos, os militares abriram uma
enorme vala que dividiu os bairros e as lavras, servindo como uma espécie de
fronteira. Os que ficaram para lá da vala não a podiam atravessar para cá e
vice-versa, criando-se assim enormes constrangimentos às populações de cada
lado.
Os populares tentaram contornar as
limitações colocadas na sua circulação colocando pontes rudimentares de
madeiras sobre a vala divisória, mas quem fosse pelos militares aí destacados
era severamente castigado pela ousadia. Contudo, depois da publicação do caso
no Semanário Angolense, os militares foram retirados e passou-se a viver com
algum alívio.
Mas foi sol de pouca dura, já que, pouco
depois, uma tal de «Família Tavares», intitulando-se detentora daquelas vastas
terras, passou a infernizar novamente a vida dos populares da região.
Esta família seria demovida pela
reportagem publicada pelo Semanário Angolense.
Mas, como disse uma fonte do próprio
governo provincial do Bengo, a zona da Burgalheira é complicada por haver
muitos interesses em jogo. E é verdade. De tal sorte que cá tivemos mais esta
triste história de desalojamento, que certamente será seguida de muitas
outras. Nem é preciso apostar
Semanário Angolense, 609, de 04 de Abril
2015
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