quinta-feira, 7 de maio de 2015

Luanda. Demolição esquisita do «Twa Pandula» deixa centenas de famílias ao relento


Kim Alves
Semanário Angolense

As várias famílias que viram as suas casas barbaramente demo­lidas no Bairro Twa Pandala, um dos doze aglomera­dos populacionais constituídos há muitos anos na região da chamada Burgalheira, município do Dande, na província do Bengo, continu­am à chuva e ao sol, mais de três meses depois da acção devastado­ra de um camartelo alegadamente desconhecido pelas próprias auto­ridades municipais.
Segundo o presidente da Co­missão de Moradores, Domingos Manuel Muenleputo, estão nessa condição cerca de 600 famílias, to­das identificadas e documentadas, mas que nada puderam fazer na altura em defesa dos seus direitos e dos seus bens diante da equipa de­molidora, que se fazia acompanhar de um aparato militar fortemente armado.
Domingos Manuel Muenleputo diz que, no dia 2 de Dezembro do ano passado, foi surpreendido por alguém que se intitulou como sen­do um alto funcionário da Unida­de Técnica do Bengo, identificado apenas por «Sr. Carvalho», que lhe disse que no dia seguinte, um gru­po de militares e máquinas deviam chegar ao «Twa Pandula», pedindo­-lhe então para que avisasse a po­pulação a não resistir ao que eles iriam fazer.
«Por mais que insistisse, o sr. Carvalho recusou-se a dizer qual seria a missão desses militares, re­comendando-me apenas para que avisasse a população a não se opor fazer, senão iria haver um banho de sangue. Falei com alguns populares e ficamos à espera. No dia seguinte, 3 de Dezembro, por volta das 9 ho­ras, chegou um grande aparato mi­litar, que, sem aviso, começou logo a derrubar as casas. Primeiro foi a escola das crianças, construída pela população. Mesmo diante do choro delas, não tiveram pena e derruba­ram tudo, até pequenas casotas de chapa. Não deixaram que tirásse­mos os nossos haveres, nem nada e ainda fomos ameaçados de morte», contou, lastimoso.
Domingos Muenleputo afirma que ele e um dos seus colaborado­res, por terem questionado um co­ronel que acompanhava a tropa so­bre a razão da demolição do bairro, foram levados para uma ribanceira onde seriam ameaçados de morte.
No dia seguinte, recorreu às au­toridades municipais do Dande, onde lhe foi explicado que o dito Carvalho os enganara pura e sim­plesmente porque não tinha au­torização nem competência para ordenar a demolição de um bairro e muito menos para mandar ocu­par os terrenos por quem quer que fosse.
«Mandaram-nos aguardar calmos, porque iriam resolver a situação, mas só que até agora, passados mais de 90 dias, não nos dizem nada. Passamos dias e dias a viver ao relento com os nossos filhos e netos. ,Perdemos o bocado que tínhamos, os nossos filhos não podem estudar, mal nos alimen­tamos, mas as autoridades conti­nuam insensíveis», diz Domingos Muenleputo, estranhando, no en­tanto, com o facto dos problemas só terem surgido assim que a cir­cunscrição passou a estar ligada administrativamente à província do Bengo. «Quando pertencíamos à comuna da Funda, município de Cacuaco, as nossas preocupações eram logo atendidas», queixa-se o presidente da comissão de mora­dores do «Twa Pandula».


As autoridades municipais do Dande continuam sem nada decidir sobre a sorte dos desa­lojados do «Twa Pandula», que vivem desde então ao relento. A situação agravou-se com a chegada das chuvas. Para se resguardarem da inclemência do tempo (chuva e sol), cada família foi im­provisando pequenas casotas com as cha­pas e papelões que sobreviveram da barbá­rie de que foram alvo.
A hora em que a equipa de reportagem do SA chegou ao Twa Pandula, na semana passada, dezenas de crianças, com batas brancas, estudavam debaixo de uma árvo­re, próxima dos escombros do que fora a sai escola. Um quadro preto estava encos­tado ao tronco do embondeiro. Os jorna­listas foram recebidos pelas crianças com gritos: «Queremos a nossa escola!».
Este jornal soube que, para além da es­cola, o que aflige mais a população é a falta de um centro médico na região, sobretudo em casos de maternidade. Segundo uma das nossas fontes, há dias, houve o caso de uma parturiente que teve que ser evacua­da numa carrinha para a maternidade em Cacuaco. Mas, o parto aconteceu pelo ca­minho, tendo bebé entrado em sofrimento devido aos solavancos. E mesmo depois de socorrida na maternidade Augusto Ngan­gula, as complicações resultaram na inva­lidez da criança.
A nossa fonte diz que a comunidade também se ressente da falta de uma uni­dade policial devido essencialmente aos «abusos cometidos por pessoas provenien­tes de outras zonas que pretendem expro­priar as terras das populações locais.
Os populares, para além do «famoso» sr. Carvalho, acusam uma tal de Dona Joia, detentora de uma herdade na re­gião, na qual se dedica à criação de gado bovino, de estar também por trás do acontecimento.
Não é a primeira vez que ela manifesta apetência por terras alheias. Um dos nossos cicero­nes dá o exemplo de uma disputa entre ela e um brigadeiro na re­serva identificado por Paulo, que se viu obrigado a deixar o actu­al espaço onde ela ergueu a sua herdade, indo instalar-se mais abaixo.
«A Dona Jóia gaba-se de ter cos­tas largas. Aliás, só assim se com­preende que ela tenha conseguido desalojar até um oficial-general das Forças Armadas», explica a nossa fonte.
Talvez pela sua posição, ao sr. Paulo foi, no entanto, concedido uma outra parcela de terra, situa­da mais abaixo, onde agora já nin­guém o chateia, por ter tudo bem definido.
«Mas, o bairro Twa Pandula, fundado em meados dos anos 80, também tem os seus limites bem definidos. E sempre vivemos em paz, pelo que não compreendemos a razão dessa fúria toda que agora se abate sobre nós», lamentou uma das nossas fontes.
Rufino Kibuila, 80 anos de ida­de, é um ancião que vive naquela zona há muito tempo que até se es­queceu precisamente desde quan­do. Os moradores consideram-no, ao lado do também ancião Chico Malanjinho, como o fundador do bairro. Ele conhece a história toda da região, inclusive os detalhes so­bre a chegada das pessoas que se foram instalando, como é o caso da Dona Jóia, que diz tê-la recebi­do em 1986.
«Quando ela cá chegou e ma­nifestou o interesse de ter um es­paço para criar gado, fomos nós que a recebemos e ajudamos. Ela começou com um espaço de cer­ca de 200 metros quadrados, mas agora está a reivindicar 750 hec­tares e diz que nós é que invadi­mos e ocupamos os terrenos dela, Como assim, se fomos nós que a recebemos?!», explica, questio­nando-se o velho Rufino Kibuila.
Por outro lado, os populares acusam abertamente alguns «ge­nerais» de estarem a ocupar de­zenas e dezenas de hectares de terreno naquela área, como de­monstram as extensas vedações. O problema porém é que, ainda assim, ao invés de implementa­rem projectos úteis, eles proce­dam às ocupações e usurpações das terras para depois venderam­-nas a estrangeiros.
«Os ‘generais’ deviam de­fender o povo. Mas aqui, é o contrário: para eles o povo está abaixo dos animais. Eles escor­raçam-nos das nossas terras, ocupam-nas para as vender aos estrangeiros. Eles estão a enrai­zar-se com a ajuda dos nossos dirigentes. Daqui a pouco, nesse andar, eles vão mandar em tudo, enquanto nós, os donos da ter­ra, até o pequeno espaço onde temos as nossas casas nos estão a recebe à força, atirando-nos ao relento com as nossas famílias», lamentou um dos anciãos.
«Isto é um crime, porque até os bois têm currais para se abri­garem», concluiu, altamente re­voltada, a nossa fonte.
os bois têm currais, mas nós estamos ao relento por causa de gente maldosa que está a vender o país aos estrangeiros, o povo que se lixe
A comissão de moradores que represen­ta os habitantes de todos os bairros da região da Burgalheira foi convocada há dias pelo governador provincial do Bengo, João Bernardo Miranda, para um encon­tro que se realizou no passado dia 23.
Na base da convocatória estava um documen­to despachado pela Secretaria de Estado dos Di­reitos Humanos para o Governo Provincial do Bengo, depois de denúncias sobre violações aos seus direitos apresentadas pela população àquele departamento, assim como à Assembleia Nacio­nal.
O governo provincial do Bengo esteve repre­sentado no encontro, realizado na sua sede, em Caxito, pelo vice-governador José Sebastião Ma­jor e por Paka Miguel, assessor social de João Mi­randa
No fim da reunião, os representantes dos mo­radores da Burgalheira não gostaram nada do que ouviram, embora tivesse havido promessas de in­demnização e transferência para uma outra zona, que não sabem qual, para todos os que viram as suas casas demolidas no Twa Pandula.
«O problema é que não fixaram datas», lamen­ta um dos cinco representantes dos moradores bairro demolido em conversa com o SA, apre­ensão que tem a sua razão de ser, uma vez que a situação por que passam as 600 famílias atiradas ao relento por acção daquele camartelo estranho exige uma resposta de carácter emergente. «É que já lá vão mais de três desde que nos destruíram as casas e nunca vimos o apoio de ninguém, quando nem sequer temos lugar para dormir», sublinha a fonte.
Entretanto, o Semanário Angolense soube de fonte do Governo Provincial do Bengo que o caso das pessoas desalojadas no bairro Twa Pandula começa a ser solucionado dentro de uma semana. «As preocupações foram já levadas às entidades de direito, pelo que se vai preparar as condições e de seguida vai-se resolver tudo de formas que ninguém fique mal», garantiu a fonte do governo local.
A região da Burgalhei­ra, antes ligada ad­ministrativamente à comuna da Funda, município de Cacuaco, provín­cia de Luanda, faz agora parte do município do Dande, província do Bengo. É uma zona onde se extrai inertes (sobretudo burgau, pedra e areia) para a construção civil. Contudo é uma região rica em água, sendo atravessada pelo rio Bengo, além de possuir várias lagoas.
É propícia para a pesca arte­sanal do cacusso e bagre e para a agricultura, actividades exercidas por populações de camponeses e pescadores lá estabelecidas desde os tempos mais remotos.
Durante o tempo de guerra, foi uma zona militar estratégica, uma vez que servia de tampão às inves­tidas dos então guerrilheiros do Galo Negro contra Luanda, sendo a conduta de água que abastecia a capital a partir da Estação Kifan­gondo o alvo principal.
Alguns dos militares que en­tão prestaram serviço militar ali, provenientes de várias regiões do país, optaram por estabelecer-se por lá, com as famílias que acaba­ram por constituir, juntando-se às populações que já habitavam a região desde há décadas.
Ao invés de esperar apenas pe­los subsídios e pensões militares, quase todos preferiram dedicar­-se à agricultura e à pecuária, enquanto outros optavam pela pesca e piscicultura nas pequenas propriedades que foram conse­guindo.
Há ainda os que trabalham nas empresas que exploram inertes ou nas quintas agro-pecuárias erguidas nas região. «Preferimos não pedinchar ao governo como muitos o fazem e ganhamos a nossa vida com trabalho. Não somos pedintes e até aliviamos o governo que já deve ter-se es­quecido de nós», declarou um ex­-militar.
Em meados do ano passado, 2014, o SA publicou uma repor­tagem sobre a «Burgalheira», cuja população estava a ser ameaçada por militares, que ao queria desa­lojar para ocupar os terrenos.
Lá postos, os militares abri­ram uma enorme vala que di­vidiu os bairros e as lavras, servindo como uma espécie de fronteira. Os que ficaram para lá da vala não a podiam atravessar para cá e vice-versa, criando-se assim enormes constrangimen­tos às populações de cada lado.
Os populares tentaram con­tornar as limitações colocadas na sua circulação colocando pontes rudimentares de madeiras sobre a vala divisória, mas quem fos­se pelos militares aí destacados era severamente castigado pela ousadia. Contudo, depois da pu­blicação do caso no Semanário Angolense, os militares foram retirados e passou-se a viver com algum alívio.
Mas foi sol de pouca dura, já que, pouco depois, uma tal de «Família Tavares», intitulando­-se detentora daquelas vastas terras, passou a infernizar no­vamente a vida dos populares da região.
Esta família seria demovida pela reportagem publicada pelo Semanário Angolense.
Mas, como disse uma fonte do próprio governo provincial do Bengo, a zona da Burgalheira é complicada por haver muitos in­teresses em jogo. E é verdade. De tal sorte que cá tivemos mais esta triste história de desalojamen­to, que certamente será seguida de muitas outras. Nem é preciso apostar

Semanário Angolense, 609, de 04 de Abril 2015

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