Rafael Marques
de Morais
MAKAANGOLA
Há uma queixa na procuradoria
local contra o secretário da administração municipal do Cuango, na
província da Lunda-Norte, por pedofilia. O pai da vítima – uma
criança então de 13 anos – acusa o procurador de estar a
proteger o secretário e o chefe local do Serviço de Inteligência e
Segurança de Estado(SINSE) de tentar abafar o caso.
O histórico
Em Setembro do ano passado, a
administração municipal organizou uma feira de comes e bebes [politicamente
denominadas maratonas culturais em todo o país] na vila do Cuango. Um dos
responsáveis pela organização, o secretário da administração municipal Cândido
Daniel Sampaio ofereceu-se, durante a feira, para comprar gelados a
duas primas que fazem parte do seu grupo de oraçãona Igreja
Adventista do Sétimo Dia. O local da venda de gelados ficava a uma certa
distância, e Cândido sugeriu que fossem de carro, na companhia
de mais um colega. Na via, desviaram-se da rota e foram ter à estação de
captação de água, onde os dois homens decidiram separar-se, cada
um com uma “irmã”. Uma delas fazia 13 anos naquele mês. Ficou no
carro com Cândido Daniel Sampaio, de 37 anos.
A prima, mais crescida, resistiu aos
avanços do colega do secretário. Mais tarde, quando chegaram a casa,
contou ao tio José Adelino Txizungo que o secretário violara a
sua filha.
José Adelino Txizungo e Cândido Daniel
Sampaio são colegas de turma, no 3º ano do Curso de Pedagogia, na
especialidade de Educação de Infância, no Instituto Superior
Politécnico do Cuango. Também frequentam a mesma igreja,
como fiéis da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Assomado pela fúria, José
Adelino Txizungo solicitou um encontro com o
suspeito, para se certificar do depoimento da sobrinha, que
a filha confirmou. “Perguntei-lhe se ele já alguma vez se tinha
metido com a minha filha. Nervoso, ele disse que sim”, conta o
pai.
No dia seguinte, a 5 de Outubro de 2013,
chegou a casa e não encontrou a filha. Soube que o secretário a tinha
levado, sem o consentimento dos pais.
Passados dois dias, o secretário –
que é a terceira mais alta hierarquia da administração municipal, logo a
seguir ao administrador e seu adjunto – deslocou-se à residência da
família ofendida, sem a menina, com uma delegação oficial.
Fizeram parte desta
delegação o secretário Sampaio, o delegado municipal
do SINSE, José dos Santos Tanqui “Zeca”, os oficiais do SINSE
Paulino Mutondeno e Carlos Casanguie, a secretária da
administração municipal, conhecida apenas por Tecas, e o
principal fiscal da administração do Cuango, Paciência Jacinto.
“Em primeiro lugar, o chefe do SINSE, o
Zeca, disse-me que tinham vindo tratar de um caso simples entre um
homem e uma mulher”, recorda o pai.
José Adelino Txizungo conta ter ido ao
quarto buscar o bilhete de identidade da sua filha, para mostrar ao
responsável da segurança de Estado a data de nascimento da vítima –
22 de Setembro de 2000.
“Disse-lhe que as suas palavras eram
abusivas. A minha filha era uma menina, uma boneca, e não uma mulher.
Perguntei-lhe se isso era assunto de mulher ou de violação?”, refere José Adelino
Txizungo.
Segundo o pai, o delegado do SINSE pediu
desculpas. “Depois, o chefe do SINSE pediu-me o favor,
insistindo, para que eu não apresentasse queixa à polícia ou à
procuradoria, porque o secretário assumiria a menina.”
Em conversa telefónica com o Maka
Angola, o delegado do SINSE, José dos Santos Tanqui “Zeca”,
desmentiu ter participado no referido encontro. “Ele [José Adelino
Txizungo] está a falar à toa. Sendo ofendido, ele tem as autoridades por onde
se queixar. Ele foi aconselhado ou coagido? Eu não estive nesse encontro.”
O sargento Sawa, efectivo do Comando
Municipal da Polícia Nacional, esteve presente na reunião, na
qualidade de amigo da família. Confirma a presença do delegado do
SINSE, assim como de dois operativos do SINSE e de outros dois
membros da administração municipal: “Foi o Sr. Zeca quem primeiro tomou a
palavra. O Txizungo praticamente ficou murcho com a presença do delegado do
SINSE na casa dele.”
Segundo o testemunho do
sargento Sawa, após a intervenção do delegado do SINSE, o prevaricador leu
um memorando que trouxera escrito: “O Sr. Dani [Cândido Daniel Sampaio]
comprometeu-se voluntariamente a assegurar a educação da criança
e o casamento. Disse mais: ‘vou comprar uma casa até unirmos os
nossos lares’”.
Nessa altura, segundo este agente da
Polícia Nacional, corroborado por outras testemunhas, o delegado do SINSE
explicou ao pai ofendido que “já não havia razões para ficar nervoso”.
“Eu estava muito, muito nervoso e
o Sr. Zeca disse que tinha sido melhor a ideia do Sr.
Sampaio levar a menina para uma outra casa até eu me acalmar. O secretário
alugou uma casa do outro lado do rio, praticamente no mato, onde albergou a
menina como sua amante e com a protecção do SINSE”, denuncia o pai.
Inconformado, passados vários meses,
José Adelino Txizungo foi recuperar a sua filha, alegando as péssimas condições
em que estava alojada e o seu isolamento durante a gravidez.
Dirigiu-se ao administrador
municipal-adjunto do Cuango, João Bernardo, para denunciar o secretário e
clamar por justiça. “O senhor Bernardo aconselhou-me a apresentar uma queixa
junto da procuradoria”, diz o pai.
Tentou, sem sucesso, cortar todo e
qualquer contacto entre o alto funcionário da administração local e a sua
filha.
Em reacção,
Cândido Daniel Sampaio disse ao Maka Angola, via
telefónica, que o “caso está na procuradoria, fomos chamados algumas vezes
e lá estivemos. Na semana passada [primeira semana de Outubro] deu-se mais
um avanço na resolução do problema”. O interlocutor não especifica os
avanços alcançados. Todavia, confirma a sua relação com a
menina: “Eu assumi o caso desde a primeira hora.”
Entretanto, Cândido Daniel
Sampaio considera-se vítima. “O pai fez-me uma chantagem que não dá
para querer. Não dá para falar ao telefone”, diz o secretário municipal, terminando
assim a conversa.
José Adelino Txizungo destila
indignação: “Nunca lhe pedi nada. Esse homem [Sampaio] é malandro e
muito mentiroso. Eu nem sequer lhe falava, devido ao meu estado de
nervosismo. Foi o procurador quem me exigiu para passar a cumprimentá-lo.”
A Pressão do SINSE e a Queixa
Contrariando a pressão do SINSE, a
19 de Março, Txizungo apresentou queixa formal e foi ouvido, em auto de
declarações, pelo procurador municipal, Pedro Ribeiro.
A 10 de Junho, o procurador
ouviu simultaneamente Cândido Daniel Sampaio e o queixoso, acompanhado de
suas esposas e da filha.
“Depois de eu falar, o procurador
perguntou ao Sr. Cândido Daniel Sampaio se tinha algo a desmentir. Ele
[Sampaio] disse que não e confirmou que tudo o que eu falei é
verdade”, conta Txizungo.
Por sua vez, a menina descreveu os
factos a partir do convite para irem comer gelados e a consequente gravidez.
O procurador municipal, Pedro
Ribeiro, revelou ao Maka Angola que o
processo está na fase final de instrução e, em breve, “vamos encaminhá-lo ao
tribunal”.
De acordo com Pedro Ribeiro, a
procuradoria tem acautelado provisoriamente “a protecção da criança que nasceu
dessa relação e da própria mãe, que também é menor”.
Entretanto, a 8 de Agosto, o
secretário voltou a reunir-se com a adolescente. “A minha filha,
instigada por ele [Sampaio] com a ideia de que já tinha construído uma
casa para ela, pôs-se a ofender a mãe por impedi-la de o ver”, narra o
pai.
Na sequência da altercação, a mãe,
tomada pela fúria, pegou na filha e na neta e levou-as à casa do secretário.
Txizungo reprovou a acção da
esposa e dirigiu-se à casa do
secretário para recuperar a filha e a neta.
“Ele [Sampaio] chamou a polícia e disse que eu queria agredi-lo. O
comandante da 2ª Esquadra, inspector-chefe Joaquim Tchilóia, pediu-me para sair
da residência do senhor, para ir dormir e que, no dia seguinte, a polícia
pediria ao secretário para entregar a menina.”
No dia seguinte, às 6h00, o pai
compareceu na 2ª Esquadra. Aguardou até às 9h00, altura em que o secretário apareceu
no local para, com o testemunho da polícia, proceder à entrega da
adolescente e filha. De seguida, foram todos ter com
o procurador.
No entanto, o
procurador apresenta uma versão diferente do sucedido. “Depois de eu
ter conversado com eles [pai e suspeito], o pai foi deixar a filha e a neta à
porta do Sr. [Sampaio]. O mesmo não se encontrava em casa. Como ele tem a sua
família, o Sr. Sampaio alojou a menina e a sua filha em casa de familiares”,
explica.
O magistrado sugere que José
Adelino Txizungo “está a dramatizar a situação”.
Segundo Pedro Ribeiro, durante a
audiência que mantiveram na procuradoria, o pai exigia ao alegado violador que
casasse com a sua filha: “Esclareci que isso não poderia acontecer porque
o casamento depende da vontade dos dois e, como se trata da relação com uma
menor, tal só poderia acontecer quando ela completasse 18 anos”.
“Excepcionalmente, uma jovem pode ser
desposada aos 15 anos, de acordo com a Lei da Família, com a autorização dos
pais desta”, adianta.
O procurador esclarece ainda que
qualquer entendimento entre o suspeito e a família da ofendida não anula a
existência do crime de estupro.
No encontro de Agosto, o procurador
decidiu que o secretário passaria a pagar provisoriamente uma pensão alimentar
de 15,000 kwanzas e nada mais. A 25 de Setembro, Cândido Daniel
Sampaio entregou, através da procuradoria, o primeiro pagamento da pensão
alimentar.
Parecer Jurídico
Uma jurista contactada pelo Maka
Angola considera o caso como sendo de crime continuado de
estupro. “A menina não tem idade e discernimento para decidir sobre a relação
com um adulto, segundo a lei”, diz a jurista, preferindo o anonimato.
“Mesmo que seja uma relação
consentida com um adulto, desde que a menor tenha entre os 12 e 16
anos, essa relação é considerada de estupro”, enfatiza.
Por já não haver o caso de flagrante
delito, a jurista explica que o suspeito pode continuar em liberdade.
A jurista considera estranho, perante
tanta evidência, o caso ainda não tenha chegado a
tribunal. Mais, adianta existir a agravante de o
estuprador se ter aproveitado do facto de conhecer previamente a sua
vítima, na igreja que ambos frequentam, assim como os pais, para a seduzir.
“O pai deve reclamar sobre a lentidão do
processo. Precisa de um advogado e de fazer maior pressão para o caso ser
ouvido em tribunal”, aconselha a jurista.
De forma oportuna, a jurista lembra
que a legislação angolana não define especificamente o crime de pedofilia, que
é o que está em causa. “Não temos o crime que relaciona as idades. Temos o
conceito doutrinário, mas não encontraessa designação [de pedofilia] na
legislação actual.
Justiça Arbitrária
O sistema de justiça em Angola continua
a funcionar de forma arbitrária e, no caso da protecção da criança, à
toa.
Em Junho passado, o Maka
Angola reportou
uma operação de busca e captura por parte da Direcção Provincial
de Investigação Criminal de Luanda (DPIC), às primeiras horas da manhã, que
culminou com a detenção de seis menores dos 11 aos 13 anos. Os agentes da
DPIC detiveram os menores sem mandado de captura, baseando-se apenas numa
queixa segundo a qual, um mês antes, as crianças teriam supostamente incendiado
uma viatura há muito avariada.
Após uma semana de cárcere, a juíza do
Julgado de Menores, Paula Rangel Cabral, condenou-os,
impondo-lhes “medidas de prevenção criminal”. A audiência de
julgamento decorreu sem a presença ou o testemunho do queixoso. Apesar de
terem sido libertadas no mesmo dia, as crianças e os pais devem apresentar-se
novamente em tribunal, a 24 de Dezembro próximo, para prestarem “declarações
sobre o comportamento” dos condenados.
Na altura, o jurista Aires de
Almeida explicou que, por falta de provas contra os menores e por ausência
de queixoso, o processo deveria ter sido arquivado e os “réus” mandados em
liberdade sem quaisquer medidas de coacção. Notou também que a
polícia e a Procuradoria-Geral da República “incorreram numa ilegalidade ao
prender menores de 14 anos, pois não é permitido por lei”.
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