Rafael Marques
de Morais,
MAKAANGOLA
Um requerimento em nome do juiz
presidente do Tribunal Constitucional, enquanto representante de uma sociedade
anónima, para a aquisição do direito de superfície de milhares de hectares de
terra, no Kwanza-Sul, levantou suspeitas de conduta ilegal. A Constituição
proíbe os magistrados de exercer outras funções públicas ou privadas. O
presidente do TC esclarece o assunto, numa breve e amena conversa com Maka
Angola.
Eis a narrativa.
No que resta da parede decrépita de uma
antiga casa colonial invadida por vegetação daninha, alguém escreveu: “Seja
bem-vindo [Cartaz com a fotografia estampada do presidente dos Santos] ao
Lonhe”. A comuna faz parte do município da Quibala, na província do Kwanza-Sul.
Esta cortesia, numa localidade onde o
tempo há muito parou para os seus habitantes, é bastante apreciada por altas
figuras do Estado angolano.
De acordo com documentos obtidos por Maka
Angola, o juiz Rui Ferreira e dois dos seus filhos estão em processo
avançado de aquisição do direito de superfície de uma extensão total de 24,812
hectares, na comuna do Lonhe. A área total requerida é maior do que 26 cidades
do Kilamba juntas e três vezes maior do que a famosa Manhattan, em Nova Iorque.
Por sua vez, A província do Kwanza-Sul tem uma extensão territorial de 55,660
quilómetros quadrados.
Em requerimento datado de 4 de Dezembro
de 2012, a Fazenda Ulunga S.A., representada por Rui Ferreira, requereu
pareceres institucionais para a legalização de 9,767 hectares na Anhara do
Calundo, comuna do Lonhe. Os requerimentos foram submetidos ao ministro da
Agricultura e do Desenvolvimento Rural, Afonso Pedro Canga, ao governador
provincial do Kwanza-Sul, general Eusébio de Brito Teixeira, entre outras
entidades.
No mesmo dia, 4 de Dezembro de 2012, o
filho do presidente do Tribunal Constitucional, Nilson Roberto Manita Ferreira,
de 27 anos, seguiu os mesmos procedimentos para a legalização de 7299 hectares,
na Anhara do Tchilesso. Trata-se de uma propriedade contígua à nordeste das
terras requeridas pela Fazenda Ulunga S.A.
Por sua vez, outro filho do magistrado,
Rui Miguel Manita Ferreira, de 26 anos, também requereu às mesmas entidades, no
mesmo dia, a legalização de 7,646 hectares na área de Caumbundo. Essas terras
são contíguas, à sul, às terras solicitadas pelo pai e pelo irmão Nilson.
A 21 de Março de 2013, a Fazenda Ulunga
S.A., representada “pelo senhor Rui Constantino da Cruz Ferreira”, escreveu
novamente ao ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, Afonso Pedro
Canga. Invocou a necessidade “de adquirir o direito de superfície” dos 9767
hectares.
No requerimento, o representante da
Fazenda Ulunga solicita ao ministro para que “se digne emitir o seu parecer e
mandar passar o referido documento em conformidade”.
Em resposta, o ministro Afonso Pedro
Canga respondeu favoravelmente aos três pedidos e deu instruções para que os
processos de aquisição sejam céleres, conforme informações fidedignas obtidas
por este portal.
Maka Angola visitou recentemente a Fazenda
Ulunga. Ao longo da estrada, numa rocha junto à primeira casa dos
trabalhadores, está inscrito, em letras enormes, com tinta branca, “Fazenda RF”
[Rui Ferreira].
Na nova área de infra-estruturas,
situada numa zona de densa cobertura florestal, encontra-se a autocaravana de
campismo “do patrão Rui”, como é tratado pelos empregados. Com um alpendre a
fazer de varanda, a caravana tem uma vista bucólica, com um pequeno lago à
frente, o bebedouro para o gado. Paralela à caravana, há uma cobertura de
chapas de zinco que serve de armazém para os equipamentos de trabalho. Debaixo
dessa cobertura, perfilam-se três tendas singulares para os trabalhadores que
lá se encontram.
O magistrado esclarece
Segundo o advogado Albano Pedro, “o
magistrado está proibido de exercer quaisquer outras funções públicas ou
privadas, excepto as de docência e investigação científica na área jurídica”.
De acordo com o advogado, “o Artigo 179.º, 5.º, da Constituição é claro. O juiz
não pode ser representante de uma sociedade comercial em negócios com o Estado,
nem solicitar propriedades ao Estado, para fins comerciais e de enriquecimento
pessoal”.
Mas, em Angola, muitos estão acima da
Constituição.
A sala de reuniões junto ao gabinete do
presidente do Tribunal Constitucional, no Palácio de Justiça, está gelada. O
responsável do seu gabinete ajusta a temperatura e abre a janela para permitir
a entrada de algum calor. Poucos minutos depois, Rui Ferreira, cordial e
directo, esclarece ao Maka Angola o imbróglio.
Começa primeiro por referir a posse, há
10 anos, da fazenda da família, no município do Waku-Kungu, com cerca de 2000
hectares. Chama-se “Sete Quintas” e, neste momento, já é pequena para a sua
criação de gado e produção de cereais.
“O meu gestor [da Fazenda Sete Quintas]
chegou à conclusão de que a área é pequena e sugeriu-me uma associação com
outras pessoas para a aquisição de mais terras”, explica.
Sobre os requerimentos em seu nome,
enquanto representante da Fazenda Ulunga, o magistrado esclarece que “foi o meu
gestor quem preparou o processo da Fazenda [Ulunga]”.Adianta que “já foi feita
a instrução para se corrigir a situação, porque, como magistrado, não posso
assumir outras funções”.
Rui Ferreira informa que “não há ainda
um pedido formal” para a aquisição do direito de superfície.
“Eu não serei requerente de um pedido
oficial de terras ao governador ou ao ministro. Confirmo que há, de facto,
intenção para a aquisição dessas terras, mas não fui eu quem a endereçou”,
continua.
“Quando tomei conhecimento de que havia
requerimentos em meu nome, pedi que se corrigisse a situação”, reitera o
presidente do Tribunal Constitucional.
Rui Ferreira fala dos seus planos no
papel de fazendeiro. “Tenho interesse nessas áreas [terras no Lonhe]. Estou com
outras pessoas e quero expandir.” Neste momento, está a proceder à substituição
do gado importado do Brasil, devido aos prejuízos que tem registado com a raça
Nelore proveniente deste país sul-americano, por outras raças importadas da
Namíbia e da África do Sul.
Conta que já adquiriu uma parcela
considerável da área requerida ao Sr. Pedro, ex-proprietário da Fazenda Ulunga,
e que “a outra está em negociação”.
Rui Ferreira menciona também o seu lado
benfeitor. “Fizemos uma grande ponte de madeira [para acesso à sua e a outras
fazendas], paga do meu bolso, e a estrada [da comuna da Sanga à sede municipal
do Waku-Kungu] foi arranjada com a nossa intervenção”. Segundo o magistrado, o
governador Eusébio de Brito Teixeira já planificou para breve a asfaltagem da
referida estrada.
Um magistrado, sob anonimato, adianta
que “o caso pode ser impugnado, podendo depois o juiz formalizar, de outra
maneira [a aquisição do direito de superfície]”.
“O que não entra pela porta, entra pela
janela”, diz ironicamente o magistrado.
Por sua vez, o delegado provincial da
CASA-CE no Kwanza-Sul, Domingos Francisco Sobral, refere que “a atribuição de
mais de 24 000 hectares de terra a um pai e dois filhos é mais do que um
exagero”.
“Nós conhecemos bem a área do Lonhe e
temos registado a expropriação de terras a milhares de camponeses que sempre
viveram nessa área, há várias gerações. Os camponeses já não têm terras
próprias para cultivarem para a sua subsistência”, explica o político.
Segundo Domingos Francisco Sobral, “essa
situação poderá gerar conflitos dentro de vários anos, por causa da exclusão da
maioria. É importante revermos essa situação”.
“Hoje, todo o dirigente, incluindo o
presidente da República, tem uma fazenda no Kwanza-Sul. Há alguns que têm
quatro ou cinco”, sublinha.
Por via das suas investigações, Maka
Angola, já tem contabilizados mais de 300,000 hectares de terras em
posse de altos dirigentes angolanos e seus familiares só na província do
Kwanza-Sul.
O representante da CASA-CE recorda um
famoso poema do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, segundo o qual
“hoje a África é como um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu
pedaço”. Sobral enfatiza que, hoje, “o Kwanza-Sul é a província onde cada
abutre vem retirar o seu pedaço de terra”.
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