1º Facto: 42º aniversário do 25 de Abril
Na linha dos meus apontamentos
filosófico-humanistas, ocorre-me dizer – passados todos estes anos e perante as
experiências vividas nas ex-colónias portuguesas, nem sempre positivas – que
poderíamos, um dia, deixar a vaidade de pensar, nós, os ex-colonizados, que o
25 de Abril apenas a Portugal e aos portugueses diz respeito.
Porque se assim não fosse, pelo menos no caso de
Angola que conheço e me afecta, não teríamos esta discrepância tão gritante
entre um Portugal em que os libertadores entregaram o poder ao povo, com o povo
a ganhar uma sólida sociedade democrática e o meu país, onde os
libertadores se transformaram em carcereiros de jovens a procura de novos
caminhos. Mas a reavaliação do 25 de Abril que aqui se propõe só
seria possível no âmbito de uma revolução paradigmática de que também tenho
falado, em que no centro dos sistemas esteja o ser humano e não já a “carapaça”
institucional da soberania que serve apenas interesses restritos. Portugal e a
Europa, de forma geral, se redimiriam de sucessivos erros cometidos em relação
a África, particularmente, em relação aos seus povos e dariam sentido a muitos
não negligenciáveis aspectos positivos insuflados no chamado “continente
negro”. Preciso recordar que esta ideia é integrante do pensamento dos fundadores
da União Europeia, nomeadamente Robert Schumann e Jean Monet.
2º Facto: dos golpes militares aos golpes
jurídico-constitucionais
Kofi Annan, Nobel da Paz de 2001 e antigo
Secretário-Geral das Nações Unidas, que falava no Forum de Alto Nível de Tana, reunido
pela quinta vez, na Etiópia, referiu (tal como Obama já o havia feito) que os
líderes africanos deveriam observar a regra do regresso à casa, no fim dos
mandados constitucionais. E não deixou de frisar o que fundamenta a necessidade
de cumprimento dessa regra que deveria ser de ouro: evitar tensões quase sempre
agravadas com manipulações para afastar concorrentes políticos. Revelou que
fora ele a pedir que se excluíssem das instituições da União Africana (UA) os
Estados conduzidos por golpistas militares, o que – honra lhe seja feita – se
transformou numa regra mais ou menos respeitada. Nos resumos que li sobre essas
afirmações pertinentes, não sei o que mais disse Kofi Annan. Mas é mais do que
evidente que, tal como não é possível interromper o curso de um rio, o fim dos
golpes militares deu hoje lugar a golpes jurídico-constitucionais a que Kofi
também propõe colocar fim. Na nossa região, depois da Constituição “eduardista”
de 2010 em Angola, é o que vemos nos dois vizinhos Congos e no Burundi, cujos
golpes ou tentativas de golpes jurídico-constitucionais são acarinhadas pelo
regime angolano que, naturalmente, não se quer ver isolado. O fim da integração
do golpismo militar nas instituições da UA tornou-se agora um bom alibi para os
golpistas jurídico-constitucionais, para quem, o que as constituições
prescrevem só vale enquanto lhes interessar. Daí que, formas de luta legais de
concorrentes políticos ou de reivindicadores meramente sociais, sejam
imediatamente taxadas de tentativas de golpe de estado, decorrentes de
imaginárias e imaginosas conspirações internacionais. O que trato no livro que
me encontro, presentemente, a promover em Portugal, “Angola: estado-nação ou
estado-etnia política” é de, justamente, tentar contribuir para a solução do
problema que faz com que o Estado africano pós-colonial, de forma geral, seja,
por natureza, uma plataforma de conflitos acesos ou em lume brando. A pista que
deixo é que o problema reside na desadequação do Estado africano à sua base
antropológico-sociológica. Resumindo, porque é que ninguém (políticos) quer
estar fora do poder, em África? Lopo do Nascimento, como o sublinho, é lapidar,
no seu discurso de despedida da vida política, na Assembleia Nacional (embora
logo a seguir, até para demonstrar o quão estamos todos condicionados pelo
status quo, tenha logo reposto o seu alinhamento no sistema – seu partido-etnia
política MPLA – numa entrevista ao Expresso): “Em África, a maioria dos
partidos são muito assentes numa base étnico-linguístico-cultural, de modo que,
quando as eleições excluem um partido, não é uma organização política que está
a ser excluída, mas sim um grupo social e cultural.
………. ….. …… ……
A Nação não é de nenhum partido. É obra
de todos e pertence a todos. E quanto mais um país africano avançar na
construção da Nação, menor será a possibilidade de surgirem as crises que têm
afectado o nosso continente.”
Esta é a questão que na devida altura ninguém
quis abordar, para não ser apodado de “tribalista” e que deve ser reposta,
quiçá, com as devidas adaptações porque, entretanto a situação evoluiu. Por,
isso, no meu ponto de vista, a UA tem que ir até este fundo da questão. Com
Lopo apenas uma divergência de forma: o problema é que com este Estado, que
noutro lugar do discurso ele diz termos conseguido construir com sucesso, não é
possível contruirmos uma Nação para todos. Porque por si mesmo, este Estado,
pretensamente montado à imagem e semelhança do Estado euro-ocidental, em África
tornou-se, naturalmente, um instrumento de exclusão. Porém, esta questão
estrutural não nos deve afastar das nossas lutas de natureza conjuntural. Eu
não espero que as coisas mudem por si, dentro dos próximos 100 ou 200 anos,
como alguns sugerem, especialmente aqui, em Portugal.
3º Facto – Poder local autárquico ou “Comissões
de Moradores”?
A “etnia-política” no poder, que se
apoderou da impactante sigla “MPLA”, em Angola, não se detém no seu
descaramento de luta aberta pela consolidação de uma monarquia absolutista com
cara de república democrática. Vai daí, do prescrito estabelecimento do poder
local autárquico, cuja postergação sucessiva está hoje na base das calamidades
que se vivem nas cidades, que continuam a ser dirigidas a partir da Cidade
Alta, mais de uma década depois de estabelecida a paz da armas, apresentam-nos
agora a ementa das “comissões de moradores”. Em 2013, quando partidos políticos
da oposição se agitavam na perspectiva de eleições autárquicas, aliás,
prometidas para o ano seguinte, tendo em conta a experiência das “fintas”
anteriores, particularmente a da aprovação da Constituição de 2010, referi que
tudo indicava que as não haveria, enquanto o regime não se certificasse que
seriam montadas no âmbito dos seus interesses exclusivistas. Ora aqui temos. Querem
o controlo total de tudo, a partir das bases mais ínfimas do Estado,
para dar maior consistência a tal nação-partido-estado. Tudo para, mais uma
vez, sugerir que o que a oposição e toda a sociedade cívico-política tem de
fazer é, de forma pacífica mas vigorosa, não esperar pela realização de
eleições aos diversos níveis, mas antes promover a discussão sobre o sistema
que está a ser francamente pervertido à vista de todos. Eles realizam eleições
pervertidas (“atípicas”, como dizem) legislativo-presidenciais, porque estão
montadas de acordo com os seus familiares interesses, e, para fechar o círculo,
farão o mesmo com o poder local autárquico, se a sociedade não reage. É isso
que se tem de dizer aos que acreditam, piamente, que estamos perante a
continuação de uma longa mas segura transição para uma verdadeira democracia. O
que não quer dizer que recomende o não preparar-se para eleições.
4º Facto
Abel Chivukuvuku da CASA-CE e a TV-ZIMBO
protagonizaram um dos momentos que se deixassem de ser tão episódicos e fossem
transportados para as mais poderosas e acessíveis TPA (televisão Pública de
Angola) e RNA (Rádio Nacional de Angola), me levaria a retirar o que acabo de
dizer no fim do comentário ao facto anterior. Uma permanência na divulgação e
contestação das mensagens de todos os agentes políticos é o que um Estado que
não seja de exclusão deve promover. Ajuda a reforçar os mecanismos de
escrutínio e fiscalização do funcionamento do próprio Estado, que evitem que
roturas como a que vemos no sistema de saúde, em Luanda e outras localidades,
cheguem ao ponto em que chegaram, por comodidade e aproveitamento sinistro de
dignitários públicos, que não se sentem incomodados com nada deste mundo; e,
sobretudo, retiram essa ideia de que perante tão má ou boa governação não há
alternativas possíveis de gente ou de ideias. Mas, por tudo o que temos visto
atrás, num sopra aqui agora e morde acolá depois, só deixarei mesmo de ter o
meu pé atrás quando deixarem de ser presas pessoas que apenas tentam exercer
seus direitos; quando os debates da Assembleia Nacional forem públicos como em
todo lado onde se fala em democracia; quando houver um mínimo de separação de
poderes, com a justiça a jogar o seu papel com um mínimo de decência, porque o
permite o sistema, como se via até há poucos anos; quando a RNA e a TPA
deixarem de ser aqueles atávicos “angolas combatentes” ou “vorgans”, com
pequenos incidentes de abertura. Se o problema é o medo que alguns temos do
passado, o próprio Abel, mais uma vez, deixou a clara ideia da verdadeira reconciliação,
quando refere que necessitamos de um dia D para o recomeço, sem olhares para o
passado. O que não tem sido deixado de ser reiterado também pela UNITA de
Isaías Samakuva, como maior partido da oposição, assim como pelos
sistematicamente perseguidos homens e mulheres do Bloco Democrático.
Só não compartilho o optimismo daqueles que pensam que isso venha a ser
possível quando um desses partidos vier ganhar as eleições no quadro deste
sistema. Erro da maioria dos partidos africanos de oposição, depois do advento
da democracia formal do tipo ocidental, que preferem espernear no fim de
processos eleitorais, antecipada e notoriamente viciados.
5º Facto
Participei, aqui em Portugal, numa gala
cívico-cultural de solidariedade para com os jovens angolanos tão vilmente
condenados. Que criassem um tribunal especial para atingir os objectivos que
qualquer ser pensante vê quais são! Desmoralizar um sistema judicial desta
forma é que é completamente inaceitável. E, francamente, se é verdade que
dizemos a esses jovens que não temos ditadura em Angola, não entendo como
operadores do direito no país, se prestam a este papel miserável. É isso que
foi frisado nas intervenções e nas sátiras. Não se venha com a cantiga de
desrespeito à “soberania” de Angola, em Portugal. O Estado português,
democrático, este sim, teria de nos cercar com ninjas, cães e carros de
assalto? Tenham paciência.
6º Facto
Marcelo Rebelo de Sousa, em Moçambique, a
visitar o quarto onde dormia, quando o pai era governador da então colonia, no
agora Palácio Presidencial da Ponta Vermelha, fez-me pensar na existência de
alguns africanos modernos que são incapazes de perdoar o passado para deixar
seus países seguirem em frente, mesmo quando também lhes pendem rabinhos de
palha (ou talvez por isso mesmo). Bem se vê que para eles Marcelo nunca devia
chegar a Presidente do Portugal de Abril, porque “mona nyoka, nyoka[1] é”. Bem digo “alguns”,
porque Mandela e Tutu, por exemplo, ancorados na filosofia africana ubuntu,
passaram de lado e fizeram obra. Que Deus nos ajude, não venha a ser
destruída.
[1] Filho de cobra é cobra.
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