Cabinda - No dicionário político angolano ganhou plena carta
de cidadania a expressão ´´atípica´´ aquando da aprovação da primeira e actual
constituição angolana em 2010. Foi uma feliz intuição que ajudou a enquadrar o
conteudo e a forma da carta magna angolana no nosso léxico doméstico. Quando
dizemos que algo é atípico queremos de facto dizer que se trata de uma inovação
incomum, algo inaudito e talvez mesmo insólito. Faço-me pois tributário dos
mentores da mesma para contextualizar esta reflexão sobre os últimos
desenvolvimentos políticos em Cabinda.
Fonte: Club-k.net
No mês de Maio do
ano em curso, a comunicação social estatal reportou a chegada em Cabinda de um
grupo de vinte e nove ex-guerrilheiros da FLEC, supostamente capturados em
Cabinda no ano de 2011, provenientes de Benguela onde receberam uma formação
profissional de quatro meses. Na circunstância foi dado um amplo destaque a
este facto, sobretudo na rádio. Para usarmos uma linguagem metafórica, os
nossos irmãos foram recebidos com o tapete vermelho e com pompa e
circunstância. Panegíricos espampanantes não faltaram para enaltecer a política
humanista do governo de Angola a despeito dos seus detractores internos e
externos que o acusam amiúde de violador dos direitos humanos. Pudera! Capturar
´´terroristas´´ em pleno combate e brindá-los com tamanho carinho e favores é
uma obra digna de orgulho. Não há dúvida, o governo de Angola foi extremamente
magnânimo! A casa militar providenciou tudo para a reintegração social destes
nossos irmãos: emprego garantido, um montante financeiro de 500 mil kwanzas per
capita para começarem a a sua nova vida com as suas famílias e outros
quejandos. Até aqui não há motivos de libelo nem de queixumes. São os esforços
da pacificação da Província de Cabinda que estão em curso. Eia! Avante!
Entretanto, como não há bela sem senão, toda esta encenação não tardou a pecar quer pelas suas contradições quer pelas suas intenções. Tem-se dito que quando a esmola é demais até os santos desconfiam. Os ingleses dizem nothing for free. Como já disse acima, foi poupada a vida destes combatentes, deu-se-lhes oportunidade de aprenderem ofícios ligados a construção civil e mecânica, foi-lhes dado um substancial apoio financeiro e empregos. Mas tudo isso a troco de quê? That is the question. Convenhamos que estas coisas de pieguices (como a caridade, a generosidade, obras de misericórdia, etc) não domiciliam no dicionário político; o seu regaço acha-se na religião. Estamos, pois, diante de uma estratégia. Esta é um instrumento que visa alcançar os fins traçados pela política. Está ao serviço da política. No caso vertente, tendo em conta o protagonismo da casa militar do PR no Problema de Cabinda, a estratégia consiste exactamente neste pensamento de Liddel-Hart: «arte de distribuir e accionar os meios militares para cumprir os fins da política». Noutros termos, toda a estratégia tem como fim resolver um conflito onde existem dois oponentes. O conflito aqui é o diferendo de Cabinda que opõe uma vontade fusionista (integração) a uma vontade cisionista (separação). Paradoxalmente a estratégia que se pretende em Cabinda tem supostamente como fim a pacificação da província de Cabinda. Ora toda a estratégia está intrinsecamente ligada à coacção. O problema surge exactamente aqui: como se pode coagir para pacificar? Ou dito doutro modo, como se pode pacificar coagindo? Coação e pacificação são duas realidades disjuntivas. Não coabitam.
Estas premissas introduzem-nos no âmago dos últimos acontecimentos políticos em Cabinda. O regime está neste momento a cobrar aos nossos irmãos ´´redemidos´´ prova da sua lealdade através da renegação de todo o seu passado de resistência (quiçá através duma indução à amnésia colectiva!) e a sua cooperação indefectível na montagem de uma propaganda hostil que visa destruir a última reserva moral que jaz em Cabinda e silenciar definitivamente essas figuras que se recusam a vender as suas consciências por um prato de lentilhas.
O jornal de
Angola, aquele que devia ser um espaço de reconciliação e de pacificação das almas,
surge neste cenário como paladino da máquina propagandística montada pela casa
militar para agredir moralmente figuras representativas da sociedade cabindense
(Dr Manuel Raul Danda, Padre Doutor Jorge Congo, Padre Doutor Raul Tati, Dr
Alexandre Sambo, Dr Felix Sumbo, Dr Belchior Lanso Tati inter alia ). O afano
de salvar a pátria angolana (de Cabinda ao Cunene!) desses ´´incovenientes´´ é
tão extremado que já não há limites éticos: tudo vale! Daí todo o tropel de
calúnias, mentiras inverosímeis e maquinações que naquelas páginas insanas do
jornal só destilam perfídia e ódio… muito ódio mesmo!
Por conseguinte, os nossos irmãos recém-convertidos à ortodoxia política angolense estão a ser habilmente transformados em eminências pardas. Cumprido o catecumenato de um ano superiormente orientado por delfins estrelados do Kremlim, eis aí os neófitos prontos para serem arautos de um proselitismo político inusitado. Estes e outros irmãos nossos domiciliados há anos em tendas no acampamento do Yabi (a sul da cidade de Cabinda) são autênticos reféns do poder castrense angolano. Muitos, e provavelmente eles próprios, não entendem ainda porque é que não os deixam ir em paz. Silencio! É a pacificação em curso!… Uma paz fundada na rendição, na submissão, no depauperamento antropológico (renegação de si próprio) e no vexame. É a clássica pax romana.
À guisa de conclusão, penso que o governo de Angola está a perder soberbas oportunidades para definitivamente resolver o diferendo de Cabinda através dos instrumentos mais civilizados hodiernamente aceites na gestão e resolução de conflitos. Os interlocutores para um diálogo legítimo e construtivo com as autoridades angolanas existem e são conhecidos. A incitação de instintos felinos contra personalidades cabindesas, agredindo-as moralmente ou atentando contra a sua liberdade e integridade física, terá tão-somente o condão de selar definitivamente um epíteto colonialista ao governo angolano.
A actual estratégia da casa militar em açaimar os autóctones pode precipitar Cabinda num abismo inexorável. Felizmente, a opinião pública local tem estado a reagir com repugnância às matérias publicadas no jornal de Angola. Fica também aqui o Alerta para os partidos políticos angolanos, a começar pelo MPLA (que tem também gente boa e sensata no seu seio!) e a terminar pela oposição (UNITA, PRS, FNLA, BD, CASA-CE, etc): nós também somos gente e queremos viver como gente.
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