Rafael Marques de Morais,
MAKAANGOLA
Um punhado de activistas tentou manifestar-se no
Largo da Independência sem sucesso.
O paradeiro de nove activistas, detidos ontem quando tentavam realizar uma manifestação em solidariedade aos 15 presos políticos, está a tornar-se num jogo do gato e do rato.
Abordado pelo Maka Angola, o comandante
provincial de Luanda, comissário-chefe António Sita, começou por esclarecer que
“não detivemos ninguém. [Os activistas] estavam a ser recolhidos e a ser
direccionados para a casa do [activista] David Salei [no município de Viana]”.
Adão Bunga “MC Life”, Adolfo Campos, Agostinho
Epalanga, Kika Delegado, Laurinda Tavares, Manuel José Afonso “Feridão”, Mário
Faustino, Raúl Mandela e Valdemiro Piedade continuam incontactáveis desde a
altura em que foram “recolhidos” pela Polícia Nacional no Largo da
Independência.
O comandante Sita afirma que os activistas
“querem criar um facto político. Estão a fazer um jogo sujo. Desligaram os
telemóveis e estão escondidos no Quilómetro 30 [em Viana], em casa do Papo-Seco”.
O comandante informou também que, para tirar a situação a limpo, já enviou uma
patrulha policial “para vê-los”.
Ao todo, segundo o que o Maka Angola apurou, a
Polícia Nacional deteve ontem – ou, nas palavras do comandante Sita, “recolheu”
– 33 activistas e quatro jornalistas, que foram soltos passado algumas horas.
Resta saber por onde andam nove dos libertados.
O Maka Angola apresenta aqui uma
reconstituição do que se passou ontem.
A história repetiu-se. Uma tentativa de manifestação antigovernamental foi reprimida pela Polícia Nacional, enquanto outra, promovida pelo MPLA no Largo da Independência, mereceu a protecção das autoridades.
A história repetiu-se. Uma tentativa de manifestação antigovernamental foi reprimida pela Polícia Nacional, enquanto outra, promovida pelo MPLA no Largo da Independência, mereceu a protecção das autoridades.
Assalto à casa de David
O primeiro acto conhecido de repressão da
manifestação teve lugar em casa do activista de David Salei, na zona da
Estalagem Km 14A, no município de Viana, a mais de dez quilómetros do Largo da
Independência. Cerca de 15 jovens encontravam-se na referida residência a
preparar cartazes de solidariedade para com os 15 prisioneiros políticos suspeitos
de preparação de um golpe de Estado. A manifestação estava marcada para as
15h00, mas a essa hora já o Largo da Independência havia sido ocupado por uma
contramanifestação do MPLA.
Perto das 14h00, uma coluna de quatro viaturas
policiais, sob comando pessoal do comandante municipal da Polícia Nacional em
Viana, Francisco Notícia, tomaram de assalto a residência e detiveram 11
activistas. Entre os detidos encontravam-se Emiliano Catumbela, Paulo
Evangelista, José António Luís “Katró”, Laurindo Francisco Tomás “Tenaz”,
Afonso Raúl, Baixa de Kassanje, Gildo dos Santos, Baptista, Joaquim Francisco
Lugamba, Edgar Lapitia, Domingos Kandela.
“Eu consegui fugir porque estava lá fora a
controlar o movimento. Vi os dois patrulheiros da polícia e dois carros brancos.
Reconheci o comandante Notícia, mas não tivemos tempo de avisar os manos. Nós
fomos traídos por um infiltrado no grupo, que denunciou a nossa posição”, disse
Manuel José Afonso “Feridão”, de 25 anos.
“Nós fomos traídos”, vociferava Emiliano
Catumbela após a sua libertação. O jovem manifestou estranheza pelo facto de
David Salei, António Kissanda “Beimani Residentível” e Coronel Fuba se terem
retirado da residência a tempo de escaparem à investida da polícia, por não
terem dado conhecimento aos outros do seu paradeiro e por terem desligado os
telefones.
“Os polícias não entraram pelo portão. Cercaram
o quintal e saltaram o muro. Apontaram-nos as armas às cabeças. Tive de pedir
ao comandante Notícias para que não nos torturassem. O Baixa de Kassanje já
está muito mal de saúde com as pancadas da polícia”, afirmou Emiliano
Catumbela. Ainda de acordo com o seu depoimento, o comandante Notícias
assegurou a integridade física dos detidos. Os jovens foram então transportados
até à 44ª Esquadra, no Km 9A, em Viana, onde estiveram sob custódia até às
19h00, tendo sido depois libertados.
Para além das detenções, os agentes policiais
revistaram a residência de David Salei, à procura de provas de crime, assim
como as casas de dois vizinhos, apenas por se encontrarem localizadas no mesmo
quintal. O Maka Angola soube que os agentes policiais não exibiram
quaisquer mandados de busca às residências.
Paulo Evangelista, um dos detidos, referiu que o
comandante alegou ter recebido “ordens superiores” para detê-los, porque “nos preparávamos
para realizar uma manifestação ilegal”.
Já na 44ª Esquadra, Paulo Evangelista sentiu
alguma solidariedade por parte de agentes policiais. “Alguns disseram-nos em
segredo que tinham ordens para nos maltratarem, mas que não o fariam porque têm
os salários em atraso e que nós tínhamos o direito de reivindicar”, afirmou o
interlocutor.
“No fim, o comandante Raúl Mandavela disse-nos
que havia outras ‘ordens superiores’ para sermos libertados e pediu desculpas
pelo inconveniente da nossa detenção”, acrescentou.
O mesmo activista denunciou ainda o facto de o
comandante ter ordenado que quatro dos 11 detidos regressassem a casa em tronco
nu, porque vestiam camisolas com “citações criminosas”. Trata-se de camisolas
impressas com as inscrições “32 Anos é Muito”, alusivas às manifestações de
2011, quando o presidente celebrou 32 anos de poder, e “Zé Du Ditador Nojento”.
“Estava frio e pedimos para virar as camisolas
do avesso, para não circularmos em tronco nu, mas o comandante recusou.
Perguntei-me se estávamos numa selva ou num Estado de direito”, lamentou Paulo
Evangelista.
Em sua defesa e do grupo ora suspeito, Beimani
Residentível disse ao Maka Angola que esse grupo restrito foi
alertado sobre a existência de um infiltrado entre os activistas concentrados
na residência de Salei. “Como cabeças da organização, decidimos fazer a
retirada sem alarde ou denunciar o suspeito”, esclareceu.
Detidos na Unidade Operativa de Luanda
Pouco tempo depois, David Salei, Beimani
Residentível e o Coronel Fuba encontravam-se já numa viatura policial quando
o Maka Angola contactou o último por via telefónica.
“Fomos transportados para a Unidade Operativa de
Luanda [da PN]”, explicou o Coronel Fuba.
Na referida unidade, segundo informação prestada
por Beimani Residentível, o chefe da Direcção Principal de Contra-Inteligência
Militar, do Serviço de Inteligência e Segurança Militar (SISM), tenente-general
José Afonso Peres “Filó”, e o comandante provincial da Polícia Nacional em
Luanda, comissário-chefe António Sita, conversaram com os três detidos numa
sala, por meia hora.
“O tenente-general Filó apresentou-se dizendo
que é o general conhecido como o ‘matador’, mas que é boa pessoa e estava ali a
conversar connosco e não para mandar matar”, recordou Beimani.
De acordo com o interlocutor, o tenente-general
Filó queria saber quem são os líderes das diferentes células do autodenominado
Movimento Revolucionário, que congrega alguns grupos de manifestantes
anti-regime. Beimani Residentível afirmou ainda que o general tinha particular
interesse em saber sobre a liderança do grupo do Rocha Pinto.
“Eu disse que nós não tínhamos líderes, que
desconhecia os líderes dos outros grupos. O general mostrou-nos fotos nossas de
um encontro que mantivemos com o presidente da UNITA, Isaías Samakuva. Nesse
encontro, só os dirigentes da UNITA tiraram fotografias”, informou.
Beimani Residentível revelou ainda que, durante
a “conversa”, o tenente-general Filó atendeu uma chamada telefónica do chefe do
SISM, general Zé Maria, a quem transmitiu abertamente que “a situação está sob
controlo e só faltam dois”. O activista indicou Raúl Mandela como um dos dois
manifestantes que a inteligência tinha todo o interesse em ver detido.
“Pediram-me para telefonar ao Mandela para que ele viesse ao meu encontro para
o prenderem, mas recusei. Ele acabou por ser detido à mesma.”
“Mesmo diante de nós, na cela, o general Filó
dava ordens [por via telefónica] para a polícia bater nos manifestantes”,
reiterou Beimani Residentível.
Por volta das 18h00, os detidos tiveram de ser
transportados para a unidade policial junto ao Comando-Geral da PN. Como num
livro de Kafka, o chefe de missão, desviou-se da rota, com os detidos na
viatura, para recolher a sua filha, que terminara as aulas num colégio privado,
junto ao Zé Pirão. “A filha [do chefe de missão], de 14 ou 15 anos, recusou-se
a subir no Toyota-Land Cruiser, por ser um carro da polícia. O pai pediu-lhe
então para aguardar por outro transporte, enquanto nos levava para o comando”,
testemunhou um dos detidos.
Porrada frente à casa do Abel
No Largo da Independência, os efectivos
policiais utilizaram a brigada canina para dispersar os manifestantes
anti-regime. Líbano Albano, de 30 anos, foi um dos activistas que escaparam do
largo, mas foi interceptado pela polícia a mais de um quilómetro, na zona do
Alvalade. “Fui apanhado por volta das 16h30, frente à casa do Dr. Abel
Chivukuvuku [presidente da CASA-CE]. Os polícias atacaram-me com porretes,
pontapés e não me largavam mesmo quando sangrava”, disse Líbano Albano.
Segundo o activista, a polícia apenas cessou a
pancadaria quando o líder da CASA-CE saiu da sua residência e interveio
pessoalmente contra o acto de violência que testemunhava. “O Dr. Abel orientou
ao motorista dele para que me levasse para o hospital, onde fui assistido e
levei quatro pontos na cabeça. Graças à intervenção dele não fui detido e o
pior não aconteceu.”
Jornalistas “ilegais”
Por volta das 18h00, dois agentes armados
interceptaram o correspondente da Reuters, Herculano Coroado, no Largo das
Heroínas, quando este caminhava para casa. Os agentes juntaram Herculano
Coroado a mais três jornalistas da Rádio Despertar, Daniel Portácio,
Lacerda da Costa, detidos anteriormente no Largo da Independência, onde
procediam à cobertura da tentativa de manifestação. Os jornalistas foram
conduzidos para a esquadra da Madeira, no Bairro Cassequel, onde permaneceram
retidos por duas horas, na companhia de sete activistas que tentaram participar
da manifestação e de quatro transeuntes.
“A polícia reteve os telefones de todos os
detidos para rever os conteúdos e apagar imagens da manifestação”, disse
Herculano Coroado.
O jornalista anotou também a detenção de um
funcionário do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural que, “ao
passar pelo largo, de forma inocente, parou para ver o que se passava”.
Três turistas da província do Kuando-Kubango,
que se encontravam em Luanda em visita a familiares, também tiveram azar.
“Estavam a fazer selfies [fotografias] no largo sem saberem o que se passava e
foram detidos”, contou Herculano Coroado.
“O comandante Pedro dos Santos, da 5ª Esquadra,
apareceu no local, reconheceu os excessos da polícia, pediu desculpas aos
jornalistas e transeuntes e ordenou a libertação imediata de todos os detidos
por causa da manifestação”, afirmou o jornalista.
*Os nomes dos activistas então desaparecidos
foram actualizados a posteriori.
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