terça-feira, 20 de agosto de 2013

Acabo de saber que o João Serra, afinal, seria exonerado sem chegar a assumir o cargo de director provincial das Edições Novembro


LHE FIZERAM UM GRANDE PECADO

Acabo de saber que o João Serra, afinal, seria exonerado sem chegar a assumir o cargo de director provincial das Edições Novembro em Benguela. Para quem regressava a Angola, com uma promessa de trabalho que lhe resolveria a vida, após estar a passar por algumas dificuldades na Tuga, em face da crise, é um golpe muito forte. Isto é um grande pecado. Desconfio que um seu compatriota, que parece se ter tornado no «manda-chuva» das Edições Novembro, é quem deve ser o autor dessa «filhadaputice» enorme ou deve ser o instigador-môr. Isso não se faz.
A seguir, posto a última crónica que o João Serra assinou no SA, nomeadamente na edição 521.

O cliente tardio

Eléctrico, entrou na discoteca à hora mais tardia da noite, quando muitos outros, já de conta paga e coração aberto para o infinito, baioneta-calada nos instintos inebriados da carne, lábios de marfim, combinas feitas, começavam a sair em conspiração amorosa para os imponderáveis segredos previsíveis da madrugada.
Os caminhos nocturnos da cidade, mediúnicos beijos de Luanda, acendem-lhe na alma mistérios que a rotina diária, frenética, longa e mecânica apaga sem explicações.
Vem de caminhos longos, ínvios. Entra e fica ao balcão, está aparentemente tranquilo. Mas dança-lhe nos olhos em cada gesto que faz uma ansiedade incontrolável. A morfina do desejo envenena-lhe o sangue jovem e quente, fauno de inquietos cios.
Os sintomas, porém, são benignos: apenas sonha demais. Porque traz pássaros na língua, mastiga beijos azuis, desenha medos e números impossíveis na sua lista de riscos. Recostado na penumbra do bar, olhar de lince, predador, vasculha minuciosamente a sala com setas de impaciência em busca de vítimas.
Levanta o copo e sorri. Os seus olhos, de uma cor indistinguível no escuro relativo da discoteca, são uma vela acesa no crepúsculo da sala, um livro aberto para quem queira ler neles a solidão e a tristeza, um vento de passagem, um punhal, um medo.
O cliente tardio faz um sinal ao empregado, como nos filmes. Nos seus sonhos ainda é noite. Porém, lá fora o dia já acordou, os pássaros observam das árvores com indisfarçada inveja os casais em fuga, os machimbombos iniciam as primeiras carreiras, Luanda acorda na versão de uma aguarela que o artista, com fulgor, pintou majestosa e bela. Como na célebre canção.
Ele, afinal, já trazia a música no ouvido. Silenciosa e húmida. A música desta discoteca é um sedativo a que recorre quase todas as noites sem prescrição médica antes de regressar a casa para adormecer na volúpia de pensamentos que terminam de manhã quando o telefone do escritório apita, neurótico e cru.
Hoje, reincidente, voltou à mesma discoteca de quase sempre, a do fim de percurso nocturno. No peito, uma seta. De angústia. Nos seus pulsos os glóbulos vermelhos coloram de alegria temporária as pulsações de um sangue invulgar, impetuoso e veloz que lhe corre nos intermináveis percursos das veias. É a adrenalina que rebelde lhe galopa frenética nas artérias.
E estas, insensatas, dizem-lhe: voa!
Quando deveriam segredar-lhe: pára!
É, sem dúvida, um solitário. Um poeta nocturno. Um espontâneo em busca de algo que talvez ele próprio não saiba explicar devidamente. Na sua lógica, poesia rima com amor. Barcos com remos. Beijos, que são versos redondos, com batom, navegam nos seus gritos de amor como pássaros subtis, viscerais, rubis.
A rima é uma dor de dentes!
Um carro usado.
Uma mulher.
Bonita.
Nua.
O cliente solitário está sentado ao balcão. No canto mais musical da discoteca, onde tudo pode acontecer. E à frente dele há uma mulher vestida de sílabas, em cujos olhos dançam ditongos, nevrálgicos. Nos movimentos dela há sinais de angústia: uma evidente fome de afecto, um brilho a disputar esplendor e energia aos reflexos multicores e intermitentes das luzes do bar, num óbvio pedido de socorro. Não atendido, quase todos os homens presentes estão ocupados.
Ele, no balcão, ingeriu a primeira bebida. Beijou-a sem pressa, como se a morte não tivesse urgência. Tipos como ele só conhecem a aritmética do amor com setas, na geografia de uma mulher com cio. Porque a paz de um homem é, talvez, um corpo de fêmea humana em estado de guerra, um punhal, um risco.
Ao balcão, bebeu a primeira, a segunda, a terceira e todas as outras bebidas. Ao quinto ou sexto copo, louco de impaciência, emborcou de chofre a inesperada leveza final do álcool. Sentiu-se bêbado, mal teve tempo para observar mais uma vez o colorido do local, os azuis, as cruzes, o fluxo. Em queda livre, os seus olhos piscavam ao ritmo dos projectores multicores que acendiam e se apagavam numa melodia de luzes que só homens como ele, os últimos poetas desta noite, parecem entender.
Olhou de frente para a sala. Sorriu, enigmático: cada mulher que se despe é um verso vadio. Os seios são ninhos de pássaros. A pele é um vício. Os (a) braços delas são rios. Os beijos, música, risos, sonhos por vezes inacessíveis.
O último cliente da discoteca ainda reflectiu vagamente sobre o suicídio, um verbo só conjugável na terceira pessoa do plural futuro, passado ou presente imprevisível. Ele nunca se mataria, apesar de já ter pensado nisso. Mas aguentou-se e tomou de repente uma decisão: fugir dos olhos das mulheres que ainda havia na sala, que, aliás, já eram poucas, feias e com dono, como é normal nos antros nocturnos a essas horas tardias, flores sem seiva nem clorofila.
Mas finalmente teve ouvidos para a música. O piano. O baixo. A viola de ritmo. Os tambores. E, sobretudo, os violinos, essa espécie musical em vias de extinção, as ciganas húngaras, os brincos, o fogo, Cármen em Luanda, os cães que ladram às estrelas como espingardas e navalhas, um gesto em falso, um riso, risco de morte, um rio.
Tinha pela frente uma melodia difícil de executar. Nunca lhe tinham pedido para tentar ser feliz, tudo o que fizera antes foi pura encenação. E nem quis tentar. Mulher alheia, respeita-se. Mesmo quando a inveja se arrisca num olhar gatuno.
Ao sexto copo, o protagonista virou os olhos para a parte mais escura do lugar. Descobriu uns olhos de vítima brilhando no escuro, talvez na derradeira oportunidade de ser morta com uma espada de mel no coração.
El Classico Radialistae, reincidente e indesistível caçador de ilusões, anteviu os troféus: a pele macia, os dentes de marfim, o olhar luminoso, a ternura de um sexto sentido, a emoção de abraços, palavras doces, veladas promessas aveludadas.
Apontou a arma. Tirou a folga ao gatilho, sem tremer. Estava pronto para o tiro. A vítima já apenas esperava pelo beijo de espingarda do coração deste predador solitário, rendida à música magnífica dos seus olhos. Mas ele foi incapaz de disparar, apesar de possuir excelente munição: versos filhos irresistíveis, inventados no repente dessa hora tardia. Mas no seu coração morreu uma vogal sem avisar. As consoantes, tidas por tristes, procuraram consolo nos ditongos, em especial orais porque os outros, sempre de luto na alegria temporária e efémera da linguagem, são promiscuamente nasais.
Ele, que irrompera na discoteca com uma estranha esperança, a suspeita de uma mulher com fome de ternura, uns olhos sim, outros olhos não, começou a acreditar na geometria da lógica: era mais uma noite perdida. A fé estava por um fio. Tinha a presa sob o ponto de mira. Mira que guapas son las mujeres, gemia no choro de bolero um cantor romântico latino-americano em música de fundo da discoteca, a última, de despedida. Baixou a espingarda de versos, de repente apiedado da presa: a sua munição eram ditongos, consoantes e vogais, complementos directos, verbos e vírgulas, a juntar ao relâmpago da conquista do desconhecido nome predicativo da sujeita.
Mas àquela hora a esperança era tardia. Já tudo estava perdido. Trôpego, subiu as escadas de regresso ao exterior da discoteca. De repente, estava de novo na rua. Um outro dia começava, inevitável.
Mas, ao menos, estava em Luanda.
Ao raiar da manhã.
In Salas Neto. Facebook

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