sábado, 9 de abril de 2011

LUANDA, O TERROR OCULTO


Gil Gonçalves
28Mar11, 22.30 horas, imediações do Zé Pirão.
A tia Lwena está cansada de estar sentada, na desespera da espera que alguém lhe compre o seu uísque dos saquinhos, que dizem ser Good, (bom), mas é de facto Bad, (mau). Os seguranças são os seus principais clientes, bebem para lhes ajudar a esquecer os baixos salários e a dependência extrema, quase escravidão dos seus patrões. Costumam lamentarem-se: «Afinal lutámos para quê, para isto?!.» E bebem também para distraírem a fome que é a sua sempre infiel companheira. A tia Lwena acabou de vender uma embalagem do seu uísque e dois cigarros a um amante inveterado do alcoolismo e do tabagismo. Não adianta informar que a bebida e o tabaco lhes matam, lhes encurtam a vida porque a resposta é invariavelmente a mesma: «É pá, não chateia, eu quero morrer!» E a tia Lwena sente-se perseguida pelo sono, mas não convém desfalecer porque os ratos humanos rondam-lhe, ávidos que ela adormeça para lhe surripiarem qualquer coisa. Chegam dois jovens numa barulhenta moto-rápida, o habitual cenário de quem se sente impune para até já chegar ao nível bizarro, absurdo, de proporcionarem autênticos disparos com os escapes motorizados. Os jovens desmontam, puxam um saco, e dele retiram duas espingardas, dessas curtas. Nas calmas pegam em munições e carregam as suas armas. E logo de seguida partem para de certeza absoluta efectuarem mais um trabalho. Quem serão as vitimas só o diabo o saberá. Ou talvez alguma rádio noticie, ou é mais certo que não. Inicialmente a tia Lwena, aterrorizada, porque imaginou que eles se preparavam para assaltá-la, estava como estátua de pedra. Assim que a juventude heróica e generosa se baldou, ela carrega num ápice a sua bandeja, uma dessas de madeira de mais ou menos um metro de comprimento e meio de largura, dessas que se usam nas padarias, e mesmo com uma perna a coxear, prémio recebido pela idade que sempre envelhece mas nunca rejuvenesce. E só parou quando chegou à porta do seu quarto andar do que ainda resta do seu prédio, que pouco falta para desabar. Aliás vai caindo, tudo é assim. O tempo persegue as coisas até se cansar, e acaba com elas e connosco.
São vinte e três horas. Acerco-me da varanda e olho para a rua. Não se vê ninguém a pé, e os automóveis são poucos. Há terror, há recolher obrigatório em Luanda não decretado.
Quase meia-noite, o filho chega da sua missão de escoltar a sua noiva do serviço na Maianga até ali para os lados da Sagrada Família, e comenta: «Isto não está nada bom. Pelo caminho, e até aqui chegar, não vi ninguém na rua a andar a pé, carros muito poucos. Só se vêem seguranças a dormir.»
No outro dia, pelas dez horas da manhã, na rua da Liga Africana, um jovem conseguiu roubar um telemóvel de uma jovem estudante. A algazarra foi estrondosa, ouvia-se pelas redondezas. Muito rapidamente formou-se logo um grupo espontâneo de intervenção rápida, que perseguiram o audacioso gatuno. Mas em vão, ele conseguiu escapulir-se muito bem.
Há algo de terrificamente anormal. Toda a gente se lamenta: «Vou no óbito, ou, tenho um óbito. Acho que é oportuno alertar a OMS e os direitos humanos da ONU. E as nossas ONGs, Igreja e igrejas, que fazem? Não existe ninguém que denuncie este genocídio silencioso?» «É a parte que nos cabe neste latifúndio».
Ouvi na Rádio Ecclesia que fiscais espancaram selvaticamente um engraxador de sapatos, porque ele recusou-se a entregar-lhes os seus instrumentos de trabalho, que os fiscais lhe queriam espoliar. Depois de apanhar um violentíssimo pontapé carregado de desprezo e ódio, tinha que ser, nas costas, foi para o hospital onde ninguém lhe prestou assistência médica. Queixa-se de problemas respiratórios, provavelmente terá alguma lesão pulmonar. Disse que vai apresentar queixa contra os fiscais. Entretanto, os empresários entregam os seus balanços anuais adulterados, com documentação forjada para diminuírem os lucros e até apresentarem bastos prejuízos e nenhum fiscal os denúncia ou prende. E assim se espoliam e esbanjam biliões de dólares e nenhum fiscal lhes pontapeia.
Diariamente ouvem-se relatos do jornal diário popular da rua, o único que informa com verdade, sobre a situação na periferia de Luanda, que é de genuíno terror. O pânico instalou-se, não é aconselhável andar de noite. E todos se refugiam nas suas casas a rezarem e a invocarem os mais eficazes feitiços para que a epidemia dos marginais não lhes caia pelos tectos, pelas janelas, ou lhes arrombem as portas. E ai de quem se lhes opor. Creio que existe uma espécie de complô nos órgãos de informação para nos darem a entender, assim como a afirmação habitual não convincente da nossa Polícia de que sempre: «Está tudo sob controlo.» Há alguns noticiários ocasionais que narram um ou outro episódio nalgum local que está intensamente povoado de marginais. Provavelmente é de algum funcionário que vive nessas bandas. Por mais que pense, não consigo entender qual é a utilidade da TPA, Jornal de Angola, RNA e LAC.
As cores e os sons perseguem-nos no nosso universo interior. O vento, nestes novos tempos, mais forte, revelador da sua eterna perenidade, também nos exerce forte perseguição. E nós sempre na louca tentativa do convencer não se sabe a quem ou a quê, pavoneamo-nos da nossa infausta fortaleza. Oh! Como somos imensamente fracos perante as avassaladoras demonstrações dos poderes da nossa querida e amada Natureza. E como adoramos a permanência da soçobrada exibição pessoal do nosso domínio perdido nas areias desertas dos confins determinados. Tudo em nós é fraqueza, mas contudo temos por hábito fingir que somos muito fortificados e sofisticados.
O que nos sobra e nos suporta são sempre as revoluções. Há as de jasmins, e por aqui as dos vulcões das multidões. E nas ruas os espoliados dos poços petrolíferos descobrem novas jazidas de miséria. Cercados pelas inúmeras plataformas petrolíferas dos contentores do lixo, fazem pesquisa e prospecção com as mãos. Os barris do petróleo deles são os sacos de plástico que vão enchendo com os restos da pestilência do lixo, afastados do crude. É o que lhes resta nesta fazenda deste mundo sem vida. Entretanto, os contentores do lixo são as modernas refinarias dos vagabundos que já foram povo. Agora fazem, jazem cadavéricos na produção dos escombros dos desempregados.
Às cinco horas da manhã, ainda tive o tempo consagrado do chilrear do instrumental sempre afinado dos quartetos sinfónicos dos pardais, nos sem trigais da passarada humana esfomeada. Os trinados seguiam linhas melódicas que captadas pela nossa central cerebral, os interpretavam e lhes davam, premiavam nos nossos maestros neuronais. E repentinamente voaram, escaparam, refugiaram-se noutras andanças desumanas. É que a barbárie revigorou: a energia eléctrica alimentada, desconjuntada, dispara-nos mais um apagão. E o fumo dos geradores de tão intenso alarmou o festival sinfónico da pardalada, antes que fosse massacrada.
Olho para as folhas da planta amiga, que também me observa, me suplica que a salve da morte. E como está murcha, desfalecida, vai também ficar moribunda como as outras que rapidamente lá morreram antes dela. Consegui finalmente desvendar o segredo do colapso, do estertor final das inocentes criaturas. É o fumo do gerador do Banco Millennium Angola, nas traseiras da Pomobel, ao Zé Pirão, que envenena as plantas, as pessoas, como uma central nuclear dessas do Japão. O dinheiro desse banco está amaldiçoado, e será exorcizado no dia do seu juízo final. Esta e mais milhentas destas coisas despertam o descontentamento da população, porque há um empenho, um forte desprezo pelas nossas vidas. Porque o mais importante é facturar, e nós para matar.
Olhamos para as ruas da nossa cidade e parece-nos ver uma imensa colónia de formigas humanas que se movem aparentemente na mesma direcção. Este é o viver dos labirintos que nos impõem, o veneno que todos os dias nos são presenteados. Há muito que nos movemos sem sentido. A cidade evoluiu muito, agora tem gigantescos cemitérios de betão, e nós somos o cimento.
Estamos a ficar como as bananas podres, sem futuro.
Um exemplo? No dia 29Jan11, a Teixeira Duarte SA, destruiu a rua Rei Katyavala, em frente à Delegação Provincial da Juventude e Desportos. Quatro portugueses comandaram as operações de destruição. Até o trânsito encerraram. Queriam acesso à conduta principal de água que passa no meio da rua.
Mais um exemplo: as empresas de construção (?) destroem os cabos da energia eléctrica e não assumem as suas responsabilidades. Ou melhor esclarecido: Destroem Luanda na mais execrável pilhagem de todos os tempos.
E ainda mais outro: a Ilha do Mussulu está devidamente privatizada, na mais elementar selvajaria. Monstruosidades humanas com motas de água, motas rápidas, geradores, aparelhagens sonoras que quase, dir-se-á, provocam maremotos, num intenso colonialismo social e económico. Desordem total… legalizada. Os pescadores que ali viviam e ganhavam a sua vida honestamente? Correram com eles, claro, para o paraíso da miséria. Aliás, como se faz a tudo o que é povo angolano. Naturalmente que isto não poderá permanecer por muito mais tempo, é desejável e inevitável.
Decididamente, Luanda não é do povo, é dos senhores dos escravos. A miséria continua.
Há cerca de uma semana, para os lados do Talatona, uma figura pública, ele não quer que o seu nome seja divulgado, parou o seu carro para atender uma chamada no telemóvel. E acto contínuo ficou sem o seu computador portátil, o telemóvel, a pasta com os seus pertences pessoais, documentação profissional vária e tudo o mais que acharam interessante. Imaginem como estará a personalidade, a alma deste homem. É que há cerca de um ano foi assaltado na sua residência. Eram quatro, armados, abancaram quase toda a noite, serviram-se de comes e bebes como se estivessem na sua casa. Violentaram duas sobrinhas, a sua esposa teve muita sorte, não lhe abusaram. Perguntavam continuamente: «Onde está o dinheiro? Queremos o dinheiro!» Ameaçando-os constantemente de morte. Bazaram com todo o dinheiro, um computador portátil, outro de secretária, e duas botijas de gás.
Há quatro dias no Rocha Pinto, um professor também parou o seu automóvel para atender uma chamada. Ouviu fortes pancadas no porta-bagagem, olhou para o retrovisor e lá estavam eles, os do submundo já preparados para o assalto final. O professor instintivamente acelerou e safou-se, e viu o ar de desânimo de três párias da sociedade. São inumeráveis os relatos diários de tantos infortúnios. Uma coisa é certa: não são necessárias as tais manifestações do Norte. Nós aqui já estamos com elas.
As obras em construção, as paralisadas e as destoadas da servil especulação imobiliária transformam Luanda num monte de sucata civilizacional. São um óptimo reduto, posto de comando avançado, quartel-general dos que lutam pela sobrevivência nas universidades da gatunice. Obras a esmo que afinal fomentam a desordem e a intranquilidade.
Não se pode conceber a doutrina chinesa de não empregar angolanos, sob os mais variados argumentos. Até o de chegar ao ponto de dizerem que os angolanos não servem para trabalhar, pois só atrapalham o chinês. É um ardil mafioso para importar os milhões de chineses desempregados. Mas também um toque subtil para implantação das máfias chinesas que perigam o poder. É só continuarem como estão, e daqui a pouco tempo, Angola cair-lhes-á de bandeja nas mãos. Mas, é consenso já assente que o maior desastre de todos os tempos, tal como uma grande calamidade, foi o encerramento do mercado Roque Santeiro, que baixou à miséria extrema milhares, ou milhões de habitantes, que agora são assíduos frequentadores do roque dos caixotes do lixo. Caçadores de talentos que buscam nos contentores do lixo as sobras apátridas.
E sem livros, sem bibliotecas, sem hábitos de leitura, formam-se exércitos de analfabetos que marginalizados pelo sistema, só têm uma saída: a violência para sobreviver. E não há polícia que chegue, é impensável, irrealizável. Aliás, quanta mais polícia, mais desorganização. Imaginem por exemplo, um milhão de polícias em Luanda. Com as sabidas nossas deficiências e constrangimentos… a logística travar-se-ia, e não é o que já acontece?
Quem conseguir conquistar as populações, nunca perderá uma guerra.
upanixade@gmail.com




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