segunda-feira, 27 de junho de 2011

O CAVALEIRO DO REI


Jingola é muito grande mas, mesmo assim não chega para todos.
Existem reinos, que por vontade própria regressam, vivem, revivem, convivem na Idade Média. Este é um desses reinos.
Reino Jingola, algures no Golfo da Guiné.

Capítulo I
O Cavaleiro Epok

Sempre para as mesmas almas, a Terra continuará plana, centro do Universo e com apenas seis mil anos de idade. São estas almas de nobreza quadrada, fugitivas do redondo, que conceberam um potente imã que atrai da terra Jingola todas as riquezas para seu exclusivo proveito. Protegidos por pretores que aniquilam as reivindicações dos servos da gleba, a escravidão há-de ser, eterniza-se, democratiza-se…propaga-se.
Enquanto nas ruínas dos prédios e dos casebres, os baldes de águas nojentas voam na mais perfeita anormalidade, e se espalham, derramam no solo as epidemias da contemplação visual, do desenvolvimento económico e social do futuro abismal, normal.
Arreda daqui, arreda dali, multidões esfomeadas revendem e furtam-se para sobreviverem. A eterna pandemia mundial, habitual, grassa-lhes como coelhos. Grassam também os modernos aventureiros escolares Francisco Pizarro, Hernan Cortes, e Diego de Almagro, atraídos pelo brilho das pedras preciosas, e pelos vapores petrolíferos.
O rei e a rainha desconcertaram-se do aconchego da corte celestial, rumando ao encontro dos seus súbditos no condado de Viana. Com eles avançaram festejados mosqueteiros em trajes de gala, muito rendados, montados em cavalos bem aparelhados. Reluzentes, luzidios arreios trabalhados em prata, onde se destacam alguns ornamentados a oiro.
Aperram-se os mosquetes, porque os súbditos desordenados teimam, desafiam o rei.
A secreta real receia que os insubmissos súbditos pretendam implantar os ideais republicanos da França e dos Estados Unidos da América. Os espiões reais têm fortes suspeitas que o revolucionário La Fayette navegue várias naus em apoio dos Jingola, que já tomaram pouso na incipiente democracia.
O casal real acaba de descer do luxuoso coche estilo D. João V. O soberano faz um leve gesto de cabeça. Aproximam-se alguns liteireiros que repousam uma liteira doirada, onde a rainha acostará. Da praxe floreiam-se inúmeras vénias e beija-mãos dos inúmeros marqueses, condes, condessas, duques, duquesas, enfim toda a nobreza.
O rei avantaja-se para a plebe muito curiosa, porque raramente vêem o soberano em público. Querem-no ver pessoalmente, provar que ele existe. Mas, a plebe constringiu-se a estar presente pelos zelosos mosqueteiros.
A plebe confunde-se, não sabe se dar boas-vindas. Há receios de qualquer gesto ficar incompreendido. Pelas traseiras, vários mosqueteiros agressivos picam-nos com as pontas das espadas.
A plebe uiva de dor. O rei entende que é saudação e retribui. Os críticos afiam as línguas, conspiram, murmuram.
- Não foi muito elegante sua alteza inaugurar fontanários, e fazer entrega das chaves de alguns casebres-estábulos a elementos escolhidos da plebe.
- É… esqueceu-se dos cavalos, da água e das velas. A água continuará a vir do reino carregada por aguadeiros. A luz de vela é um luxo, e só os protegidos do rei a ela têm acesso.
A boçalidade natural e o investimento no analfabetismo, criam seres inimagináveis. É atroz, desumano, viver quotidianamente com tais almas fugitivas do inferno. É o regresso ao primitivismo alucinado, sem paralelo na História.
Valente, garboso, destemido, assim se move o protegido do rei. Epocal como Lancelote, faz época o cavaleiro Epok. Agrada-se, galanteia-se para a rainha. A soberania estende-se astral no camarote real, aguardam pelo torneio medieval.
Os corpos da plebe agitam-se como plantas ventosas em matagais. Expressam-se descontentes porque esperavam grande maratona de comes e bebes. Grandes, graves trombetas anunciam a justa. Parecem-se com o troar de canhões, que ecoam até ao Paço. E a populaça assusta-se, relembra tempos idos. Convictos que o reino retornou à guerra, ao passatempo habitual da corte, que é guerrearem-se por causa dum líquido negro. Que anda muito cobiçado por poderosos reinos, que constantemente enviam embaixadas e navios carregados com moedas valiosas e um novo dinheiro de papel.
Então, os acólitos reais afirmam categoricamente que o reino é um dos mais desenvolvidos do mundo, apesar de ninguém querer explicar o porquê da ralé estar tolamente, totalmente desempregada e esfomeada. Evidentemente que no reino ninguém trabalha. Vem tudo de fora. Importação é a palavra que mais se pronuncia, como se fosse um dicionário com uma só palavra.
O reino Jingola submete dezassete vice-reinos, governados por vice-reis. Limita-se a Norte pelo condado do Cacuaco, a Sul pelo condado da Nova Vida, a Oeste pelo Mar de Kalunga, e a Leste pelo condado de Viana. A arraia-miúda ocupa-se principalmente em vender qualquer coisa, incluindo se necessário, as filhas. A ocupação secundária do povo deste reino são as maratonas de comes e bebes que chegam a durar três dias e três noites, ou semanas. As lutas e desavenças são constantes, mas os mosqueteiros do rei estão sempre atentos. Qualquer manifestação da populaça é contrariada por cavalos e cães, habilmente treinados pelos mosqueteiros. Muitos arruaceiros já experimentaram mosquetadas e dentadas caninas, mais que afiadas.
As trombetas reais quando sopradas, parecem tempestade de trovões, confundindo-se com canhões. Um cavalo empina-se, o cavaleiro despede-se da montada e encontra a vulgar sela convidativa do solo. A ralé frenesia-se, lembra-se da cruel violência recentemente terminada dos irmãos desavindos. Surgem as imprecações:
- Fujam! Não ouvem o barulho dos canhões?!
Uma velha aldeã com um pesado fardo de feno para alimentar os cavalos tropeça, cai. Levanta-se a coxear, corre como pode, arrasta a perna ferida e o peso da idade. Grita:
- Aiuéééé!!! É outra vez mais guerra! Vêm aí guerra!
- Desta vez é aonde?! Mais aonde?!
Fingem-se assustados, desorientados, aparvalhados. A multidão de esfomeados e esfarrapados ruma na direcção do coche e liteira reais. Conseguem descascar pedaços de oiro. Como piranhas, em poucos segundos os veículos reais quase desaparecem. Restam-lhes os esqueletos. Sobraram pedaços de uma roda. As ferraduras dos cavalos não escaparam. Servirão de amuletos para os feitiços.
O rei engole em seco, descruza as pernas, recompõe o casaco, transpira o peito desconsolado, comprime os lábios, impacienta-se, e chama o chefe dos mosqueteiros.
- Quem agitou, desambientou-se do ambiente?
- Ninguém, meu rei! Assustaram-se com o barulho das trombetas.
- Chama-me o trombeteiro real. Já o preveni que esse barulho é demais. Ele disse-me que desconfia do vírus das trombetas. No palácio não se sossega, quase não consigo repousar. Para audiências de embaixadas e embaixadores, ordenei construir um Petit Trianon. Esse louco trombeteia-me a cabeça.
- Que devo acrescentar meu rei?
- Acaba com a arruaça… caça os gatunos das carruagens reais. Quero o culpado. E até novas ordens estão suspensas as desordens das malditas trombetas. Substituam-nas por latas… por algo que não faça barulho.
- Meu rei, prosseguimos com o torneio?
- Sim, embora saibamos de antemão que somos sempre vencedores.
- Somos os melhores, meu rei!
- Ala-te, larga-te!
O cavaleiro Epok alista-se para a liça. É o cruel paladino, opressor das massas cinzentas, anti-manifestações, antídoto anti-tudo. Altaneiro, contempla a soberba nobreza, que suavemente o aplaude. A rainha anseia pelo seu estandarte pessoal. Uma princesa, filha dos reis acerca-se. Está de trombas. Senta-se bastante afastada dos pais. O cavaleiro Epok empertiga-se, sente-se dono da bola, cavaleiro de Carlos Magno. Impacienta-se, porque não vê nenhum adversário. Não descobre que faz figura de parvo, agenda sem consenso, comité de especialidade. Tem que mostrar que o seu partido é o melhor, sempre da maioria.
- Não há cavaleiro neste condado que me enfrente nesta justa?
Depois dos tumultos, coisa normal no reino, a multidão fez entrega do que roubou. Os mosqueteiros aproveitaram-se e roubaram-lhes tudo o que podiam carregar. Os paspalhões forçaram-se a regressar á plateia, antes que o rei se zangasse e exercesse mais represálias.
Não se ouviu viva-voz ao repto do cavaleiro Epok. Renascem-lhe insultos grandiosos.
- Alguns baladistas cantam que sois um povo heróico, generoso, corajoso e vitorioso…cambada de medrosos! Não tendes uma merda dum cavaleiro para defender a vossa honra e do condado nesta liça? Desafio o vosso conde. Conde… onde estais?!!!
Nem a leve aragem estremeceu, ninguém correspondeu. O cavalo de Epok habituado a armar e criar confusão, agita-se, enerva-se. Levanta demasiado as patas dianteiras. Epok surpreendido quase se desmonta. A multidão de idiotas faz ricochete.
- Arre, cavalo! Arre, cavalo!

Capítulo II
O Cavaleiro La Padep

Como vindo do nevoeiro surge um cavaleiro com armadura vermelha e preta. O tecido do cavalo tem as mesmas cores. A multidão pára, suspende-se. O rosto esconde-se no interior de um elmo. O rei comenta:
- Já vi estas cores… não sei donde.
A rainha atenta desperta-lhe a atenção:
- Meu senhor, estas cores são da nossa bandeira.
- Parece-me que já as havia mudado.
- Não meu senhor, continuam as mesmas... na mesma.
- Lembrai-me senhora minha, para as renovar. Estas cores são lúgubres. É por isso que o meu povo sempre se entristece, se revolta. São cores agressivas.

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