MICHEL LAMY
Aliás, isso levantava um problema terrível: não deveria considerar-se que existia incompatibilidade entre as funções de monge e as de soldado? Não deveria ver-se nas noções de procura da santidade e procura cavalheiresca duas éticas radicalmente opostas? Demurger escreve, a este propósito: Para as conciliar, era necessária uma evolução espiritual considerável, a mesma, aliás, que permitiu a cruzada. A Igreja teve de modificar a sua concepção da teologia da guerra. Teve de aceitar a cavalaria e arranjar-lhe um lugar na sociedade cristã, na ordem do mundo desejada por Deus.
O cristianismo primitivo é representado amiúde como condenando toda a guerra e toda a violência. Preconizava, como única resposta, o amor e apenas o amor, mesmo em caso de agressão. Segundo Mateus, quando Pedro puxou da espada para cortar a orelha do criado do Grão-Sacerdote, não lhe disse Cristo: «Embainha a tua espada, porque aqueles que matam com a espada morrerão pela espada»?
Numa abordagem destas, não há lugar para a batalha, mesmo de modo defensivo. Mas as coisas não são assim tão simples. Em primeiro lugar, a censura feita a Pedro é relatada de uma forma muito diferente pelos outros evangelistas. Marcos não relata esta frase e Lucas contenta-se com pôr Jesus a dizer: «Basta» e com fazê-lo curar a orelha ferida.
Quanto a São João, atribui a Jesus esta reflexão: «Embainha a tua espada. Não beberei eu o cálice que o meu Pai me deu?», o que é o sinal da aceitação do seu destino, por Cristo, da sua submissão ao necessário sacrifício, e não de uma censura a São Pedro. Por outro lado, noutra ocasião, o próprio Mateus refere uma outra palavra de Cristo: Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada. Do mesmo modo, encontramos no evangelho apócrifo de São Tomás: Por certo que os homens pensam que vim para lançar a paz sobre o Universo. Mas eles não sabem que vim para lançar, sobre a Terra, as discórdias, o fogo, a espada, a guerra.
Paul du Breuil vê aí uma alusão de Cristo à extrema subversão de toda a verdade.. Os teólogos não estavam, pois, desprovidos de recursos para justificar atos guerreiros. No entanto, era necessário escorar, mediante uma verdadeira teologia da guerra, escolhas que teriam podido lançar a perturbação nos espíritos. Evitou-se, portanto, considerar o fenômeno em si mesmo, para, atribuindo apenas interesse às suas razões, se chegar a uma noção de guerra justa. Bater-se para se apoderar das riquezas de outrem ou por simples bravata não podia ser admitido, mas bater-se para se defender ou salvar os seus, para manter o direito e a ordem, tornou-se legítimo, desde que todos os outros métodos estivessem esgotados.
Santo Agostinho foi, sem dúvida, o primeiro a elaborar uma teologia da guerra justa:
São chamadas justas todas as guerras que vingam as injustiças, quando um povo e um Estado, a quem a guerra deve ser feita, descurou de punir os delitos dos seus ou de restituir o que foi roubado por meio dessas injustiças.
Escrevia também: O soldado que mata o inimigo, tal como o juiz ou o carrasco que executam o criminoso, em meu entender, não pecam, porque, ao agirem assim, obedecem à lei.
Santo Agostinho dizia também: «Devemos querer a paz e fazer apenas a guerra por necessidade, porque não procuramos a paz para preparar a guerra, mas fazemos a guerra para obter a paz. Sede, pois, pacíficos, mesmo ao combaterdes, a fim de trazerdes, pela vitória, aqueles que combateis à felicidade da paz.» Demurger assinala que, no século VIII, Santo Isidoro de Sevilha acrescentou, a esta definição, uma precisão capital: É justa a guerra que é feita após advertência para recuperar bens ou para repelir inimigos.
Isto irá permitir justificar as cruzadas, enquanto recuperação dos lugares santos. Era preciso, a todo o preço, mesmo que fosse o de uma guerra, manter na terra a ordem desejada por Deus. Recusar a violência teria tido como conseqüência um recuo do cristianismo e teria feito o jogo do demônio, entregando-lhe populações cujas almas se teriam perdido.
A partir de então, passou-se rapidamente da noção de guerra justa à de guerra santa. Tratava-se de defender o único Deus verdadeiro e a fé do seu povo. O guerreiro batia-se por Cristo, defendendo o cristão contra o infiel. Devia até permitir que os povos pudessem receber o ensinamento da «verdadeira fé» e converter-se, uma vez destruído o poder dos seus antigos amos.
Imagem: http://i.s8.com.br/images/books/cover/img3/1085923_4.jpg
Aliás, isso levantava um problema terrível: não deveria considerar-se que existia incompatibilidade entre as funções de monge e as de soldado? Não deveria ver-se nas noções de procura da santidade e procura cavalheiresca duas éticas radicalmente opostas? Demurger escreve, a este propósito: Para as conciliar, era necessária uma evolução espiritual considerável, a mesma, aliás, que permitiu a cruzada. A Igreja teve de modificar a sua concepção da teologia da guerra. Teve de aceitar a cavalaria e arranjar-lhe um lugar na sociedade cristã, na ordem do mundo desejada por Deus.
O cristianismo primitivo é representado amiúde como condenando toda a guerra e toda a violência. Preconizava, como única resposta, o amor e apenas o amor, mesmo em caso de agressão. Segundo Mateus, quando Pedro puxou da espada para cortar a orelha do criado do Grão-Sacerdote, não lhe disse Cristo: «Embainha a tua espada, porque aqueles que matam com a espada morrerão pela espada»?
Numa abordagem destas, não há lugar para a batalha, mesmo de modo defensivo. Mas as coisas não são assim tão simples. Em primeiro lugar, a censura feita a Pedro é relatada de uma forma muito diferente pelos outros evangelistas. Marcos não relata esta frase e Lucas contenta-se com pôr Jesus a dizer: «Basta» e com fazê-lo curar a orelha ferida.
Quanto a São João, atribui a Jesus esta reflexão: «Embainha a tua espada. Não beberei eu o cálice que o meu Pai me deu?», o que é o sinal da aceitação do seu destino, por Cristo, da sua submissão ao necessário sacrifício, e não de uma censura a São Pedro. Por outro lado, noutra ocasião, o próprio Mateus refere uma outra palavra de Cristo: Não julgueis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a paz, mas sim a espada. Do mesmo modo, encontramos no evangelho apócrifo de São Tomás: Por certo que os homens pensam que vim para lançar a paz sobre o Universo. Mas eles não sabem que vim para lançar, sobre a Terra, as discórdias, o fogo, a espada, a guerra.
Paul du Breuil vê aí uma alusão de Cristo à extrema subversão de toda a verdade.. Os teólogos não estavam, pois, desprovidos de recursos para justificar atos guerreiros. No entanto, era necessário escorar, mediante uma verdadeira teologia da guerra, escolhas que teriam podido lançar a perturbação nos espíritos. Evitou-se, portanto, considerar o fenômeno em si mesmo, para, atribuindo apenas interesse às suas razões, se chegar a uma noção de guerra justa. Bater-se para se apoderar das riquezas de outrem ou por simples bravata não podia ser admitido, mas bater-se para se defender ou salvar os seus, para manter o direito e a ordem, tornou-se legítimo, desde que todos os outros métodos estivessem esgotados.
Santo Agostinho foi, sem dúvida, o primeiro a elaborar uma teologia da guerra justa:
São chamadas justas todas as guerras que vingam as injustiças, quando um povo e um Estado, a quem a guerra deve ser feita, descurou de punir os delitos dos seus ou de restituir o que foi roubado por meio dessas injustiças.
Escrevia também: O soldado que mata o inimigo, tal como o juiz ou o carrasco que executam o criminoso, em meu entender, não pecam, porque, ao agirem assim, obedecem à lei.
Santo Agostinho dizia também: «Devemos querer a paz e fazer apenas a guerra por necessidade, porque não procuramos a paz para preparar a guerra, mas fazemos a guerra para obter a paz. Sede, pois, pacíficos, mesmo ao combaterdes, a fim de trazerdes, pela vitória, aqueles que combateis à felicidade da paz.» Demurger assinala que, no século VIII, Santo Isidoro de Sevilha acrescentou, a esta definição, uma precisão capital: É justa a guerra que é feita após advertência para recuperar bens ou para repelir inimigos.
Isto irá permitir justificar as cruzadas, enquanto recuperação dos lugares santos. Era preciso, a todo o preço, mesmo que fosse o de uma guerra, manter na terra a ordem desejada por Deus. Recusar a violência teria tido como conseqüência um recuo do cristianismo e teria feito o jogo do demônio, entregando-lhe populações cujas almas se teriam perdido.
A partir de então, passou-se rapidamente da noção de guerra justa à de guerra santa. Tratava-se de defender o único Deus verdadeiro e a fé do seu povo. O guerreiro batia-se por Cristo, defendendo o cristão contra o infiel. Devia até permitir que os povos pudessem receber o ensinamento da «verdadeira fé» e converter-se, uma vez destruído o poder dos seus antigos amos.
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