sexta-feira, 22 de julho de 2011

Lições para a cidade do Kilamba. Sousa Jamba



Em Maio, estive na Zâm­bia, onde assisti a uma conferência de desen­volvimento da província noroeste deste país, que faz fron­teira com Angola.

Aquela provín­cia tinha, de repente, passado a ser uma região com vastas reservas de cobre e outros minerais, e os indí­genas queriam que uma boa parte das receitas vindas destes recursos permanecesse na sua zona.

A certo momento, alguém levantou-se e disse: «Temos que seguir o exemplo de Angola. Em Angola hoje há cidades melhores que Nova Iorque!». O homem pe­gou numa imagem da Cidade do Kilamba e disse a todos: «Isto aqui não é nos Estados Unidos; isto é Angola! Vocês sabem porque é que quando os angolanos batem com o murro na mesa e os brancos tre­mem? Os angolanos quando com­pram aviões não compram avione­tas da Checoslováquia que andam com petróleo; eles vão à Boeing e dizem: ‘Queremos vinte dos vos­sos últimos aviões já, senão, vamos para a Airbus’. Temos de aprender sonhar alto como os angolanos!».

Notei, durante a conferência que a publicidade que o governo de Angola tinha encomendado na CNN – Luanda com ruas limpís­simas e atraentes graças a efeitos especiais de computadores - tinha marcado mesmo muita gente. Na­quele meio zambiano, Angola era vista como um país para se admi­rar.

Depois, durante a mesma confe­rência, uma senhora levantou-se e disse que Angola era exactamente o exemplo que a província noroes­te da Zâmbia deveria evitar. Uma das coisas que sempre admirei nos zambianos é a sua abertura de espírito: os participantes na conferencia ouviram atentamente a senhora que estava a fazer crí­ticas duras ao governo angolano, tomando notas e, no fim, fazendo-lhe ainda mais perguntas.

A essência do argumento da se­nhora era de que certos aspectos do desenvolvimento actual de An­gola baseavam-se mais num desejo de querer dar nas vistas, sem cui­darem de elaborar uma profunda avaliação da sustentabilidade, a longo prazo, de tais projectos.

Na semana passada, falou-se muito, em vários canais da diás­pora angolana, da nova cidade no Kilamba Kiaxi. Ao ver imagens e ouvir sobre esta localidade, lem­brei-me da intervenção da senhora zambiana naquela conferência.

Há muito que os angolanos poderiam mesmo aprender dos zambianos. De 76 a 1984 vivi na Zâmbia. Em Lusaka, moráva­mos sempre nos bairros mais po­bres – Marapodi, Kaunda Square, Mutendere – onde alugávamos quartos, sendo as casas de banhos partilhadas por centenas de pesso­as. Eram locais onde a música alta não parava de tocar, onde o cheiro de repolho a ser cozinhado mistu­rava-se com o cheiro de esgotos. O meu sonho era um dia poder sair daquela fetidez. Sonhávamos com o Kabwata Estate, um bairro cons­truído para profissionais médios - professores, contabilistas, oficiais do exército, etc.. O Kabwata Esta­tes era tão atraente que havia mes­mo pessoas que chamavam aquilo de Berverly Hills da África - Bever­ly Hills é uma zona em Hollywood onde certas vedetas vivem.

Naqueles dias, o governo mu­nicipal de Lusaka fazia tudo para garantir que os jardins públicos e as estradas fossem bem cuidados. Lembro-me que havia famílias que viviam nos nossos bairros horrí­veis que iam ao fim-de-semana passar algum tempo nos parques do Kabwata Estate. Para muitos de nos, isto era um outro mundo bas­tante agradável.

Estive ausente da Zâmbia por quase vinte anos; ao regressar a Lusaka, tive um verdadeiro cho­que quando, perto do Instituto Nacional de Administração Públi­ca, as casas que eu sempre admirei, construídas no estilo «bungalô», haviam desaparecido. Lembro-me que havia vezes, durante a minha infância, que ia naquela área só para a apreciar as casas feitas por gente que acreditava que uma re­sidência poderia, também, possuir qualidades estéticas. Onde existia relva e flores havia agora lavras de batata-doce. É que essas ca­sas tinham sido construídas para quadros superiores que tinham na mente que teriam empregados; ha­via, então, uma secção para empre­gados. Os empregados trouxeram, então, as suas numerosas famílias que, para sobreviverem, começa­ram mesmo a cultivar no parque. E onde havia narcisos amarelos passou, de repente, a haver planta­ções de mandioca. Na vizinhança havia, agora, o que os zambianos chamam de «ntembas» ou peque­na lojas, tipo quiosques, onde se vende massa de tomate, pastilhas, sardinhas, cremes para clarificar a pele, preservativos, antibióticos, cartões para telefones celulares, entre outras quinquilharias.

O Kabwata Estates tinha, tam­bém, se transformado numa au­têntica aldeia desorganizada. A certo momento, o governo munici­pal de Lusaka vendeu as casas aos seus inquilinos a um preço muito baixo. Isto era uma forma do parti­do no poder, o MMD, angariar vo­tos. Os donos dessas casas deixa­ram de cuidar delas. O que era um bairro requintado transformou-se em algo altamente desagradável.

Lembro-me que quando viví­amos em Kaunda Square, havia a tradição de se festejar o momento em que uma menina começasse a menstruar (ukuwa ichisungu, como se diz). Esta cerimónia resul­tava em batucada e dança que du­rava toda a noite. Os que gostavam de beber na nossa área tinham sempre uma escolha – havia as cerimónias de chisungu e os óbi­tos. Na Zâmbia, a noção de «pato» não existe; todos eram bem-vindos para comer e beber. Os zambianos que viviam no Kabwata Estate – professores, oficiais do exército, al­tos funcionários públicos etc. – já não se davam a essas cerimonias com as suas batucadas nocturnas. Para eles, antes as festas tinham de ser feitas num salão como a Nakatindi Hall. Hoje, na KabwataEstate, há batucadas nocturnas. Os lindíssi­mos apartamentos do passado es­tão degradados; onde havia janelas de vidro passou agora a haver pa­pelões. Os jardins já não existem. E há lavras por todo o lado. Muitas casas não são pintadas há anos. O alcatrão já não existe em certas es­tradas que estão cheias de buracos.

Numa noite, quando estive re­centemente na Zâmbia, levei de carro o meu amigo que estava bêbado ao edifício em que vivia no Kabwata Estate. A esposa dele, que estava a me dar instruções ao telefone, disse-me para eu parar mesmo em frente do edifício perto da entrada porque a lavra de mi­lho que havia por lá era perigosa já que certos gatunos se escondiam nela para assaltarem as pessoas. Isto no Kabwata Estates, local em que, em1979, era tão chique que até directores de grandes multi­nacionais viviam lá. Espero que a Cidade do Kilamba, da qual se está a falar tanto, não ser transforme, eventualmente, num Kabwata Es­tate.

Temos aqui, porém, uma coi­sa que não é tão desagradável. Os bens sucedidos na Zâmbia evitam locais como o Kabwata Estate e vivem agora em vivendas com vas­tíssimos terrenos. Em Lusaka, pas­sei uma tarde com a senhora Mau­reen Delhi Bhuku, que foi amiga da minha falecida irmã, a Noémia, com quem cresci na Zâmbia. A Se­nhora Maureen vivia no Kabwata Estate, mas agora tinha deixado aquele bairro e comprado uma vastíssima vivenda em IbexHill, perto da gigantesca embaixada americana.

Na vivenda da Senhora Mau­reen, havia relva, muitas flores, e um jango lindíssimo. O jardineiro da Senhora Maureen tinha muito orgulho no seu trabalho. Ela disse-me que muitos casais jovens gosta­vam tanto da vivenda dela que vi­nham lá para casar; outros vinham só para tirar fotografias, já que havia lá um ambiente que não pa­recia ser africano. A senhora Mau­reen disse-me que havia muita gente que queria alugar os anexos na sua vivenda, mas que sempre se recusou porque queria evitar o fenómeno do Kabwata Estate, em que uma zona com bastante qua­lidade se transformou num bairro de grande confusão.

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