Em Maio, estive na Zâmbia, onde assisti a uma conferência de desenvolvimento da província noroeste deste país, que faz fronteira com Angola.
Aquela província tinha, de repente, passado a ser uma região com vastas reservas de cobre e outros minerais, e os indígenas queriam que uma boa parte das receitas vindas destes recursos permanecesse na sua zona.
A certo momento, alguém levantou-se e disse: «Temos que seguir o exemplo de Angola. Em Angola hoje há cidades melhores que Nova Iorque!». O homem pegou numa imagem da Cidade do Kilamba e disse a todos: «Isto aqui não é nos Estados Unidos; isto é Angola! Vocês sabem porque é que quando os angolanos batem com o murro na mesa e os brancos tremem? Os angolanos quando compram aviões não compram avionetas da Checoslováquia que andam com petróleo; eles vão à Boeing e dizem: ‘Queremos vinte dos vossos últimos aviões já, senão, vamos para a Airbus’. Temos de aprender sonhar alto como os angolanos!».
Notei, durante a conferência que a publicidade que o governo de Angola tinha encomendado na CNN – Luanda com ruas limpíssimas e atraentes graças a efeitos especiais de computadores - tinha marcado mesmo muita gente. Naquele meio zambiano, Angola era vista como um país para se admirar.
Depois, durante a mesma conferência, uma senhora levantou-se e disse que Angola era exactamente o exemplo que a província noroeste da Zâmbia deveria evitar. Uma das coisas que sempre admirei nos zambianos é a sua abertura de espírito: os participantes na conferencia ouviram atentamente a senhora que estava a fazer críticas duras ao governo angolano, tomando notas e, no fim, fazendo-lhe ainda mais perguntas.
A essência do argumento da senhora era de que certos aspectos do desenvolvimento actual de Angola baseavam-se mais num desejo de querer dar nas vistas, sem cuidarem de elaborar uma profunda avaliação da sustentabilidade, a longo prazo, de tais projectos.
Na semana passada, falou-se muito, em vários canais da diáspora angolana, da nova cidade no Kilamba Kiaxi. Ao ver imagens e ouvir sobre esta localidade, lembrei-me da intervenção da senhora zambiana naquela conferência.
Há muito que os angolanos poderiam mesmo aprender dos zambianos. De 76 a 1984 vivi na Zâmbia. Em Lusaka, morávamos sempre nos bairros mais pobres – Marapodi, Kaunda Square, Mutendere – onde alugávamos quartos, sendo as casas de banhos partilhadas por centenas de pessoas. Eram locais onde a música alta não parava de tocar, onde o cheiro de repolho a ser cozinhado misturava-se com o cheiro de esgotos. O meu sonho era um dia poder sair daquela fetidez. Sonhávamos com o Kabwata Estate, um bairro construído para profissionais médios - professores, contabilistas, oficiais do exército, etc.. O Kabwata Estates era tão atraente que havia mesmo pessoas que chamavam aquilo de Berverly Hills da África - Beverly Hills é uma zona em Hollywood onde certas vedetas vivem.
Naqueles dias, o governo municipal de Lusaka fazia tudo para garantir que os jardins públicos e as estradas fossem bem cuidados. Lembro-me que havia famílias que viviam nos nossos bairros horríveis que iam ao fim-de-semana passar algum tempo nos parques do Kabwata Estate. Para muitos de nos, isto era um outro mundo bastante agradável.
Estive ausente da Zâmbia por quase vinte anos; ao regressar a Lusaka, tive um verdadeiro choque quando, perto do Instituto Nacional de Administração Pública, as casas que eu sempre admirei, construídas no estilo «bungalô», haviam desaparecido. Lembro-me que havia vezes, durante a minha infância, que ia naquela área só para a apreciar as casas feitas por gente que acreditava que uma residência poderia, também, possuir qualidades estéticas. Onde existia relva e flores havia agora lavras de batata-doce. É que essas casas tinham sido construídas para quadros superiores que tinham na mente que teriam empregados; havia, então, uma secção para empregados. Os empregados trouxeram, então, as suas numerosas famílias que, para sobreviverem, começaram mesmo a cultivar no parque. E onde havia narcisos amarelos passou, de repente, a haver plantações de mandioca. Na vizinhança havia, agora, o que os zambianos chamam de «ntembas» ou pequena lojas, tipo quiosques, onde se vende massa de tomate, pastilhas, sardinhas, cremes para clarificar a pele, preservativos, antibióticos, cartões para telefones celulares, entre outras quinquilharias.
O Kabwata Estates tinha, também, se transformado numa autêntica aldeia desorganizada. A certo momento, o governo municipal de Lusaka vendeu as casas aos seus inquilinos a um preço muito baixo. Isto era uma forma do partido no poder, o MMD, angariar votos. Os donos dessas casas deixaram de cuidar delas. O que era um bairro requintado transformou-se em algo altamente desagradável.
Lembro-me que quando vivíamos em Kaunda Square, havia a tradição de se festejar o momento em que uma menina começasse a menstruar (ukuwa ichisungu, como se diz). Esta cerimónia resultava em batucada e dança que durava toda a noite. Os que gostavam de beber na nossa área tinham sempre uma escolha – havia as cerimónias de chisungu e os óbitos. Na Zâmbia, a noção de «pato» não existe; todos eram bem-vindos para comer e beber. Os zambianos que viviam no Kabwata Estate – professores, oficiais do exército, altos funcionários públicos etc. – já não se davam a essas cerimonias com as suas batucadas nocturnas. Para eles, antes as festas tinham de ser feitas num salão como a Nakatindi Hall. Hoje, na KabwataEstate, há batucadas nocturnas. Os lindíssimos apartamentos do passado estão degradados; onde havia janelas de vidro passou agora a haver papelões. Os jardins já não existem. E há lavras por todo o lado. Muitas casas não são pintadas há anos. O alcatrão já não existe em certas estradas que estão cheias de buracos.
Numa noite, quando estive recentemente na Zâmbia, levei de carro o meu amigo que estava bêbado ao edifício em que vivia no Kabwata Estate. A esposa dele, que estava a me dar instruções ao telefone, disse-me para eu parar mesmo em frente do edifício perto da entrada porque a lavra de milho que havia por lá era perigosa já que certos gatunos se escondiam nela para assaltarem as pessoas. Isto no Kabwata Estates, local em que, em1979, era tão chique que até directores de grandes multinacionais viviam lá. Espero que a Cidade do Kilamba, da qual se está a falar tanto, não ser transforme, eventualmente, num Kabwata Estate.
Temos aqui, porém, uma coisa que não é tão desagradável. Os bens sucedidos na Zâmbia evitam locais como o Kabwata Estate e vivem agora em vivendas com vastíssimos terrenos. Em Lusaka, passei uma tarde com a senhora Maureen Delhi Bhuku, que foi amiga da minha falecida irmã, a Noémia, com quem cresci na Zâmbia. A Senhora Maureen vivia no Kabwata Estate, mas agora tinha deixado aquele bairro e comprado uma vastíssima vivenda em IbexHill, perto da gigantesca embaixada americana.
Na vivenda da Senhora Maureen, havia relva, muitas flores, e um jango lindíssimo. O jardineiro da Senhora Maureen tinha muito orgulho no seu trabalho. Ela disse-me que muitos casais jovens gostavam tanto da vivenda dela que vinham lá para casar; outros vinham só para tirar fotografias, já que havia lá um ambiente que não parecia ser africano. A senhora Maureen disse-me que havia muita gente que queria alugar os anexos na sua vivenda, mas que sempre se recusou porque queria evitar o fenómeno do Kabwata Estate, em que uma zona com bastante qualidade se transformou num bairro de grande confusão.
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