sexta-feira, 1 de junho de 2012

Justiça Adiada. Guebuza é o principal acusado

 

Processo de Nachingwea (1ª Parte): Comissão Africana de Direitos Humanos divulga decisão sobre queixa contra Estado moçambicano

O actual o presidente da República de Moçambique, Armando Guebuza, no Governo de Transição para a Independência Nacional, na qualidade de ministro da Administração Interna intimou José Eugénio Zitha a comparecer a uma reunião de Grupos Dinamizadores, órgãos tutelados pela FRELIMO. Soldados da FRELIMO, armados e fazendo-se transportar em viatura militar, foram à residência de José Eugénio Zitha, na Matola, sem o amparo de qualquer mandado judicial, e levaram-no ao local da reunião. Aqui seria “humilhado e acusado de traição”. Guebuza ordenou depois a prisão e detenção no antigo quartel-general das tropas coloniais em Boane. “A família, incluindo o filho, Pacelli Zitha, não foi posta ao corrente do sucedido”. Longe dos tribunais moçambicanos, e privado do elementar direito de defesa universalmente consagrado, Zitha foi submetido na Tanzania a um “julgamento” sui generis em que o líder do Partido Frelimo – Samora Moisés Machel – assumiu-se como juiz em causa própria. Desde então, desconhece-se o paradeiro do cidadão José Eugénio Zitha.

Maputo (Canalmoz) – A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos considerou de “inadmissível” uma queixa apresentada contra o Estado moçambicano por duas das vítimas do “Processo de Nachingwea”. Numa decisão divulgada através do seu portal electrónico (www.achpr.org), a Comissão Africana afirma que as vítimas José Eugénio Zitha e Pacelli Zitha não haviam recorrido, em primeira instância, ao sistema judicial moçambicano.
Nos termos do Artigo 6 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, “queixas relacionadas com direitos humanos serão consideradas pela Comissão Africana caso tenham sido enviadas após ter-se esgotado os mecanismos de Direito nacionais, excepto se for óbvio que este processo seja indevidamente prolongado”. (ver texto do Artigo 6 em caixa separada nesta edição)
Em última análise, a decisão da Comissão Africana dos Direitos Humanos reconhece como válidos os argumentos avançados pelo Estado moçambicano, segundo os quais as referidas vítimas não haviam recorrido ao sistema judicial de Moçambique para dirimir a questão. Segundo alegou o Estado moçambicano, “nas instituições legais moçambicanas não há registo de quaisquer denúncias ou requerimentos para a comparência de pessoas perante um juiz, para habeas corpus ou para outras diligências apropriadas na ordem jurídica, que tenham sido endereçados quer pelos membros da família da primeira vítima, quer pelos seus representantes legais”.
A decisão da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos não especifica quem agiu em defesa do Estado moçambicano junto desse órgão da União Africana face à queixa apresentada em nome de José Eugénio Zitha e Pacelli Zitha. Todavia, o Procurador-Geral da República, Dr. Augusto Paulino, em 2010 informou a Assembleia da República de que a instituição que dirige havia defendido o Estado moçambicano junto da Comissão Africana. Num informe datado de 6-7 de Maio de 2010, o Procurador-Geral da República refere que “na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o Ministério Público interveio em dois processos em defesa do Estado moçambicano tendo apresentando a sua defesa com fundamento na inadmissibilidade das petições, face ao não esgotamento dos mecanismos legais internos”.
Para além de ter induzido a Comissão Africana em erro quanto ao alegado “não esgotamento dos mecanismos legais internos”, a instituição que Augusto Paulino dirige argumentou ainda que a Comissão Africana “não era competente” para ouvir a Queixa de duas das vítimas do Processo de Nachingwea. Para tal, a PGR evocou o facto das alegadas violações de direitos humanos terem ocorrido antes do Estado moçambicano ter ratificado a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
O “Processo de Nachingwea” remonta a 1974, ano em que a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) assumiu a chefia do Governo de Transição no nosso país, rumo à independência. Uma das medidas decretadas pela FRELIMO e executada pelo Governo de Transição por si dirigido, visou a neutralização de todas as forças de oposição em Moçambique, incluindo pessoas suspeitas de discordarem da linha seguida por essa formação política. Era o prelúdio do Estado totalitário que a FRELIMO viria a instituir no nosso país a 25 de Junho de 1975.
Lê-se na Queixa, que entre os cidadãos detidos na onda de prisões arbitrárias ordenadas pelo Governo de Transição liderado pela FRELIMO contava-se José Eugénio Zitha, estudante da Faculdade de Medicina da antiga Universidade de Lourenço Marques, hoje designada de Universidade Eduardo Mondlane. Tal como várias figuras políticas moçambicanas, o cidadão José Eugénio Zitha foi enviado para uma base militar da FRELIMO em território estrangeiro, designadamente em Nachingwea na República Unida da Tanzânia. Longe dos tribunais moçambicanos, e privado do elementar direito de defesa universalmente consagrado, o cidadão moçambicano José Eugénio Zitha foi aí submetido a um “julgamento” sui generis em que o líder da formação política atrás referida – Samora Moisés Machel – assumiu-se como juiz em causa própria. Desde então, desconhece-se o paradeiro do cidadão José Eugénio Zitha.

Os pormenores da Queixa

De acordo com a decisão da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que temos vindo a citar, a Queixa contra o Estado moçambicano deu entrada no Secretariado da Comissão Africana em Julho de 2008. A Queixa foi apresentada pela Professora. Dra. Liesbeth Zegveld, advogada holandesa de direitos humanos, em nome dos cidadãos moçambicanos José Eugénio Zitha (Primeira Vítima) e Pacelli Zitha (Segunda Vítima).
Nos termos da Queixa, a Primeira Vítima é descrita como tendo nascido em Magude, na província de Maputo, a 15 de Abril de 1939. À data da sua prisão, por ordens do então Ministro da Administração Interna do Governo de Transição para a Independência de Moçambique, Armando Emílio Guebuza, a Primeira Vítima era estudante de medicina na Universidade de Lourenço Marques.
A Segunda Vítima nasceu em Maputo a 19 de Outubro de 1961, e actualmente reside na Holanda onde exerce a profissão de professor de Produção de Petróleo e Gás na Universidade de Delft.
Acrescenta a Queixa contra o Estado moçambicano que no dia 26 de Outubro de 1974, cerca de um mês após o actual o presidente da República de Moçambique ter sido empossado como membro do já citado Governo de Transição, a Primeira Vítima foi intimada por Armando Emílio Guebuza a comparecer a uma reunião de Grupos Dinamizadores, órgãos tutelados pela FRELIMO. Para o efeito, soldados da FRELIMO, armados e fazendo-se transportar em viatura militar, foram à residência de José Eugénio Zitha na Matola. Sem o amparo de qualquer mandado judicial, os soldados levaram a Primeira Vítima para o local da reunião. Aqui, a Primeira Vítima seria “humilhada e acusada de traição”, refere a Queixa.
Diz a Queixa que Armando Emílio Guebuza ordenou depois a prisão e detenção da Primeira Vítima no antigo quartel-general das tropas coloniais em Boane. Salienta a Queixa que “a Primeira Vítima não foi informada das razões da sua prisão” e que “a família, incluindo o filho, Pacelli Zitha, não foi posta ao corrente do sucedido”, adiantando que “só ao fim de cinco dias de intensas buscas é que os familiares da Primeira Vítima conseguiram localizá-la nesse quartel”.
Semanas depois, porém, a Primeira Vítima desapareceria da prisão de Boane. Passados alguns dias, a Segunda Vítima soube que o pai, ou seja, a Primeira Vítima, havia sido transferido para a antiga Cadeia Judiciária em Maputo. Nos princípios de 1975, a Segunda Vítima encontrou-se com a Primeira Vítima pela derradeira vez nesse estabelecimento prisional. Muito mais tarde é que os familiares da Primeira Vítima viriam a tomar conhecimento, através da comunicação social, de que ela havia sido enviada para Nachingwea.

Estado Moçambicano violou a Carta Africana dos Direitos Humanos

O Estado moçambicano aderiu à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 1986, tendo procedido à sua ratificação em 1988. A Queixa apresentada pela advogada Liesbeth Zegveld alega que, relativamente à Primeira Vítima, o Estado moçambicano violou os Artigos 2, 4, 5, 6 e 7(1) (d) da Carta.
O Artigo 2 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos estipula que “toda a pessoa tem direito ao gozo dos direitos e liberdades reconhecidos e garantidos na presente Carta, sem nenhuma distinção, nomeadamente de raça, etnia, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação”.
O Artigo 4 determina: “A pessoa humana é inviolável. Todo o ser humano tem direito ao respeito da sua vida e à integridade da sua pessoa. Ninguém pode ser arbitrariamente privado desse direito”.
Vem disposto no Artigo 5 da Carta Africana que “Todo o indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. São proibidas todas as formas de exploração e de degradação do homem, em particular a escravatura, o tráfico de escravos, a tortura, e os castigos e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.
O Artigo 6 declara que “todo o indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa. Ninguém pode ser privado da sua liberdade salvo por motivos e nas condições previamente determinados pela lei; em particular ninguém pode ser preso ou detido arbitrariamente”.
O parágrafo 1, alínea d, do Artigo 7 da Carta Africana afirma que “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada”, o que inclui “o direito de ser julgada num prazo razoável por um tribunal imparcial”.
Em relação à Segunda Vítima, Liesbeth Zegveld considerou que houve também violação do Artigo 5 da referida Carta.

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Artigo 6

Nos termos do presente artigo, a apresentação de queixas junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos tem de cumprir com sete requisitos fundamentais para poderem ser consideradas. Assim, as queixas:
1. Devem indicar a identidade do autor, mesmo que este solicite o anonimato à Comissão.
2. Devem ser compatíveis com a Carta da Organização da Unidade Africana ou com a presente Carta.
3. Devem ser redigidas em linguagem não depreciativa ou insultuosa para com o Estado impugnado, as suas instituições ou a Organização da Unidade Africana.
4. Não se devem basear exclusivamente em notícias difundidas através da comunicação social.
5. Devem ser posteriores ao esgotamento dos mecanismos de Direito nacionais, caso existam, a menos que seja manifesto para a Comissão que o processo relativo a esses mecanismos seja indevidamente prolongado.
6. Devem ser apresentadas dentro de um prazo razoável, a partir do esgotamento dos recursos ou instâncias de Direito interno ou da data marcada pela Comissão para abertura do prazo da admissibilidade perante a própria Comissão.
7. Não devem dizer respeito a casos que tenham sido resolvidos em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização da Unidade Africana ou com as disposições da presente Carta.

A advogada holandesa

A Professora Dra. Liesbeth Zegveld, é de nacionalidade holandesa.
A advogada Liesbeth Zegveld especializa-se em casos envolvendo violação de direitos humanos. Prestou assessoria jurídica às viúvas de Rawagedeh (Indonésia), cujos maridos foram executados por soldados holandeses em 1947. Representou vítimas do genocídio de Srebrenica em 1995. Tem-se evidenciado na defesa dos direitos do povo palestino. Desempenha desde Setembro de 2006 as funções de professora de Direito Humanitário Internacional na Universidade de Leiden. Em Julho de 2008, como membro do Departamento de Direito Internacional e Direitos Humanos da firma de advogados Böhler Advocaten, com sede em Amesterdão, apresentou a queixa em nome dos cidadãos moçambicanos José Eugénio Zitha e Pacelli Zitha junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos no âmbito do Processo de Nachingwea em que o Estado moçambicano foi acusado de graves violações dos direitos humanos.

A Segunda Vítima é engenheiro de Petróleos e Gás

O Prof. Dr. Pacelli L. J. Zitha, nascido em Maputo em 1961, dirige actualmente a disciplina de Engenharia de Produção de Petróleo e Gás no Departamento de Geotecnologia da Universidade de Delft, Holanda. É assessor sénior da empresa petrolífera Shell. Estudou na Inglaterra, tendo mais tarde obtido o estatuto de refugiado em França. Foi neste país, como estudante da Universidade Pierre et Marie Curie, que obteve o mestrado em ciências e o doutoramento em Física de Matéria Condensada. É autor de mais de 65 artigos científicos e técnicos, tendo editado dois livros. Deu início e geriu diversos projectos internacionais de produção de petróleo e gás. Interessa-se presentemente por projectos de capacitação em países em desenvolvimento e pela promoção de sistemas sustentáveis de energia. (Redacção / continua n próxima edição / Canal de Moçambique / Canalmoz)

1 comentário:

Fernando Gil disse...

Vejam
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2014/11/filho-quer-saber-onde-est%C3%A1-o-pai-preso-pela-frelimorepeti%C3%A7%C3%A3o.html