Bulengo foi em 1994, o acampamento do Exército ruandês hutu que invadiu o Congo depois de perpetrar a matança de centenas de milhares de tutsis no país vizinho. Agora é o eixo de um complexo de 16 campos de deslocados e refugiados que com a ajuda da União Europeia e das organizações humanitárias dá refúgio a umas treze mil pessoas. Estas pertencem a diferentes grupos étnicos que convivem aqui sem asperezas. Ainda que Bulengo esteja muito mais assentado e organizado que o de Hewa Bora, a qualidade de vida é ínfima.
As cabanas e locais, muito precários, estão atestados e em qualquer lugar noticia-se desnutrição, miséria, sujidade, desânimo. A nota de vida a põem muitos meninos, que jogam, perseguindo-se. Vários deles são mutilados. Converso com um jovem de uns 10 ou 12 anos que, pese a ter uma só perna, salta e brinca com muita agilidade. Conta-me que os soldados entraram na sua aldeia de noite, disparando, e que a bala alcançou-o quando fugia. A ferida gangrenou-se por falta de assistência, e quando a sua mãe o levou à Assistência Pública, em Goma, tiveram que amputá-la.
Em Bulengo há 48 famílias de pigmeus, que, apesar dos protestos que ouvimos em Hewa Bora, aqui queixam-se de que a escola é muito cara: cobram 500 francos congoleses mensais por aluno. A educação pública é, em teoria, gratuita, mas, como os professores não recebem salários, privatizaram o ensino, uma medida tacitamente aceite pelo Governo em todo o país. Em muitos lugares são os pais de família que mantêm as escolas – constroem-nas, limpam-nas, protegem-nas e asseguram um salário aos professores –, mas aqui, nos campos de refugiados, todos são insolventes, de modo que se vêem obrigados a pagar pelos estudos, ou os seus filhos deixarão de ir à escola ou esta ficará sem professores.
No campo há muitos desertores das milícias rebeldes. Um deles conta-me a sua história. Foi sequestrado na sua cidade com vários outros jovens da sua idade quando os homens de Laurent Nkunda o apanharam. Deram-lhes instrução militar, um uniforme e uma arma. A disciplina era feroz. Entre os castigos figuravam as chicotadas, as mutilações de membros (mãos, pés) e, em caso de delação ou intento de fuga, a morte à catanada.
Confirmou-me que muitos soldados do Exército congolês vendiam as suas armas aos rebeldes. Escapou-se uma noite, farto de viver com tanto medo, e esteve uma semana na selva, alimentando-se de ervas, até aqui chegar. Na sua cidade, onde era camponês, tinha mulher e quatro filhos, de que não voltou a saber nada porque a cidade já não existe. Todos os vizinhos fugiram ou morreram.
Pergunto-lhe que gostaria de fazer na vida se as coisas melhorarem no Congo, e responde-me, depois de pensar um pouco: "Não sei". Não é de estranhar. Em Bulango, como em Hewa Bora e nos campos de deslocados de Minova, a atitude mais frequente nos que ali estão confinados, e passam as horas do dia deitados na terra, sem se moverem quase pela debilidade ou a desesperança, é a apatia, a perda do instinto vital.
Já não esperam nada, vegetam, repetindo de maneira mecânica as suas queixas – plásticos, medicamentos, água, escolas – quando chegam visitantes, sabendo muito bem que isso tão-pouco lhes servirá para nada. Muitíssimos deles estão já mais mortos que vivos e, o pior, sabem-no. Os campos são indispensáveis, sem dúvida, mas só funcionam como um trânsito para a reincorporação à vida activa, com oportunidades e trabalho.
Se não, quem os povoam estão condenados a uma existência atroz, parasita, que os desmoraliza e anula. E isto é quiçá o mais terrível espectáculo que oferece o Congo oriental: é o de dezenas de milhares de homens e mulheres aos que a violência e a miséria reduziram a pouco menos que à condição de zombies.
EL PAÍS
As cabanas e locais, muito precários, estão atestados e em qualquer lugar noticia-se desnutrição, miséria, sujidade, desânimo. A nota de vida a põem muitos meninos, que jogam, perseguindo-se. Vários deles são mutilados. Converso com um jovem de uns 10 ou 12 anos que, pese a ter uma só perna, salta e brinca com muita agilidade. Conta-me que os soldados entraram na sua aldeia de noite, disparando, e que a bala alcançou-o quando fugia. A ferida gangrenou-se por falta de assistência, e quando a sua mãe o levou à Assistência Pública, em Goma, tiveram que amputá-la.
Em Bulengo há 48 famílias de pigmeus, que, apesar dos protestos que ouvimos em Hewa Bora, aqui queixam-se de que a escola é muito cara: cobram 500 francos congoleses mensais por aluno. A educação pública é, em teoria, gratuita, mas, como os professores não recebem salários, privatizaram o ensino, uma medida tacitamente aceite pelo Governo em todo o país. Em muitos lugares são os pais de família que mantêm as escolas – constroem-nas, limpam-nas, protegem-nas e asseguram um salário aos professores –, mas aqui, nos campos de refugiados, todos são insolventes, de modo que se vêem obrigados a pagar pelos estudos, ou os seus filhos deixarão de ir à escola ou esta ficará sem professores.
No campo há muitos desertores das milícias rebeldes. Um deles conta-me a sua história. Foi sequestrado na sua cidade com vários outros jovens da sua idade quando os homens de Laurent Nkunda o apanharam. Deram-lhes instrução militar, um uniforme e uma arma. A disciplina era feroz. Entre os castigos figuravam as chicotadas, as mutilações de membros (mãos, pés) e, em caso de delação ou intento de fuga, a morte à catanada.
Confirmou-me que muitos soldados do Exército congolês vendiam as suas armas aos rebeldes. Escapou-se uma noite, farto de viver com tanto medo, e esteve uma semana na selva, alimentando-se de ervas, até aqui chegar. Na sua cidade, onde era camponês, tinha mulher e quatro filhos, de que não voltou a saber nada porque a cidade já não existe. Todos os vizinhos fugiram ou morreram.
Pergunto-lhe que gostaria de fazer na vida se as coisas melhorarem no Congo, e responde-me, depois de pensar um pouco: "Não sei". Não é de estranhar. Em Bulango, como em Hewa Bora e nos campos de deslocados de Minova, a atitude mais frequente nos que ali estão confinados, e passam as horas do dia deitados na terra, sem se moverem quase pela debilidade ou a desesperança, é a apatia, a perda do instinto vital.
Já não esperam nada, vegetam, repetindo de maneira mecânica as suas queixas – plásticos, medicamentos, água, escolas – quando chegam visitantes, sabendo muito bem que isso tão-pouco lhes servirá para nada. Muitíssimos deles estão já mais mortos que vivos e, o pior, sabem-no. Os campos são indispensáveis, sem dúvida, mas só funcionam como um trânsito para a reincorporação à vida activa, com oportunidades e trabalho.
Se não, quem os povoam estão condenados a uma existência atroz, parasita, que os desmoraliza e anula. E isto é quiçá o mais terrível espectáculo que oferece o Congo oriental: é o de dezenas de milhares de homens e mulheres aos que a violência e a miséria reduziram a pouco menos que à condição de zombies.
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