segunda-feira, 20 de abril de 2009

Para que quis ser Papa?


O teólogo Ratzinger conduz a Igreja pela senda da intransigência e da polémica.

EL PAÍS
JUAN ARIAS 15/04/2009

Conheci em Roma, faz agora 50 anos, o então simples teólogo progressista, Joseph Ratzinger, quando era assessor do também progressista episcopado alemão. Era então como hoje: delgado, de mirada esquiva e misteriosa, o oposto do outro teólogo também assessor dos bispos progressistas, o suíço Hans Küng, todo ele alegria e vitalidade. Eram os tempos do Concilio Vaticano II. João XXIII, que falava por telefone com Kruschev em russo para intentar evitar a guerra dos mísseis de Cuba, lançou um repto ao mundo descrente e pediu que voltasse à Igreja. Abriu as portas aos episcopados mais avançados, gritou contra os "profetas de desventuras", ganhou-se a inteligência da Igreja de então. Vislumbrou-se a esperança.

Bento XVI nascimento: 16-04-1927 Lugar: Marktl

O teólogo Ratzinger conduz a Igreja pela senda da intransigência e da polémica

Durou pouco. Um cardeal espanhol que, como tal, formava parte de um dos episcopados mais obscuros do mundo, deu ao clero, ao voltar à sua diocese: "E agora é esperar que as águas voltem ao seu leito". Voltaram em parte, por obra sobretudo de Ratzinger, que mudou de pele e chegou a escrever um livro contra aquele Concilio, que na sua opinião foi um "erro". Foi premiado: Fizeram-no bispo, depois cardeal e mais tarde guardião da ortodoxia como Prefeito da Sagrada Congregação da Fé, a herdeira da antiga Inquisição.

Ratzinger usou mão de ferro contra a inteligência progressista da Igreja, apoiado em parte pelo Papa polaco Wojtyla. Condenou a todos os teólogos capazes de pensar, sobretudo aos teólogos da libertação, que intentavam devolver aos pobres da América Latina a esperança traída dos Evangelhos. Recordo a manhã do processo em Roma a um teólogo brasileiro o franciscano Leonardo Boff. Esperei-o quatro horas à porta do ex/Santo Oficio. Saiu cansado, mas seguro, digno. "Condenou-me. Não poderei seguir escrevendo", disse com tristeza e dor. Relatou-me algumas cenas do processo com Ratzinger. "Disse-me que estava mais bonito com o hábito de franciscano e eu adverti-o de que quiçá fosse verdade, mas que sim num autocarro, no Brasil, se fosse vestido assim, todos me deixariam o seu assento. Seria um homem de poder e não um servo de Jesus, pobre com os pobres", contou-me.

Silencioso e misterioso, impenetrável e sempre um duro suave mas inabalável, convencido do seu valor, Ratzinger quis mais: aspirou às chaves de Pedro. Usou o Conclave que deveria eleger o sucessor do carismático e quase santificado em vida João Paulo II, para eliminar a todos os possíveis candidatos menos conservadores que ele. Apoderou-se das reuniões dos cardeais reunidos em Roma para a eleição do novo papa. Proibiu-os de falar com os meios de comunicação. Convenceu-os de que a Europa se estava desintegrando, vítima do seu pecado de agnosticismo e rechaçou a Igreja. Faltava um salvador. Apresentou-se como tal num discurso do Conclave. Criou uma rede mundial de apoio à sua candidatura. Secretamente.

Foi eleito. Para quê? Acreditou que era ele quem levava razão ao dizer que o Concilio Vaticano II do profético e ancião João XXIII foi um equívoco. Perdoou aos rebeldes contra as aberturas do Concilio, aos seguidores do excomungado Lefevbre, aos que seguiam dizendo missa contra a parede, de costas aos fiéis, em latim. Esqueceu-se de restituir aos teólogos mais abertos a dignidade que ele mesmo lhes havia tirado. Equivocou-se. Aquele Concilio não morreu. As suas sementes seguem vivas nos cinco continentes e agora começam a brotar, com indignação, contra uma Igreja desorientada, onde, pela primeira vez em muitos séculos, se critica desde dentro ou, pior ainda, já não se escuta a voz do Papa.

Ratzinger ria-se benevolamente do pouco de teologia que, segundo ele, sabia o Papa polaco, que era o seu superior. Numa cena a que assisti em Roma, em casa de um periodista alemão, permitiu-se dizer que ele tinha que ler previamente os discursos do Papa para que não tivessem erros teológicos. Passaram muitos anos desde aquela cena. Hoje, o papa Ratzinger, o subtil e duro teólogo, não necessita que ninguém lhe leia os seus discursos para corrigi-los.

Os cardeais que o elegeram no segredo do Conclave, geralmente mais pastores que teólogos, deixaram-se encantar com a erudição académica do colega alemão. Pensaram que os seus altos estudos teológicos e a sua firmeza doutrinal iriam ajudar a endereçar a Igreja rebelde, herdeira do Concilio. Mas esqueceram-se de que nem sempre caminham a par da teologia e da diplomacia, a dureza dogmática e a capacidade de actuar politicamente e com flexibilidade frente aos problemas novos do mundo e os difíceis equilíbrios internacionais.

A teologia de Bento XVI chocou em África com a evidência da política e da cultura daquelas gentes. Chocou em quase todas as manifestações nas que preferiu antepor o seu saber teológico, de cunho intransigente e tridentino, com as esperanças dos que ainda seguem pensando que a Igreja Católica pode ser árbitro da paz, defensora da diversidade das culturas e esperança de liberdade.

Na verdade, não consegue ser recebido nem amado como o foi o Papa que não sabia teologia, que também era conservador, mas que não se envergonhava de escrever poesias nos seus momentos livres. Quiçá na solidão que o endurece nestes momentos Ratzinger se pergunta: "Para que quis ser Papa?".

Juan Arias é periodista e autor de A Sedução dos Anjos. Um antídoto contra a solidão (Editorial Espasa).
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Foto: «A ter em conta a sua semelhança com uma gamba grelhada, a senhora da imagem deve ser a Primeira-dama dos Camarões. É só mariscos!» Morro da Maianga

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