Maputo (Canalmoz) - Paulo Granjo, antropólogo português que há muito vem trabalhando em Moçambique, publicou no jornal Público o artigo “A Razão e o Sentido de Dois Motins”, sobre a situação em Maputo. Para ler com atenção, em articulação com o texto que colocou no seu blog: “Novos Motins em Maputo e Maria Antonieta na Costa do Índico“. Face a este último texto, mais completo (o jornal tem limites de espaço), tenho duas notas: uma irritação profunda; e uma discordância.
A irritação. Ao saber da proposta da substituição do pão (base da alimentação urbana) pela batata-doce e outros produtos imediatamente me lembrei da história de Maria Antonieta. Para quem não a saiba aqui a resumo: diz a história, muito provavelmente apócrifa e que contra ela foi usada na altura, que esta rainha de França tendo sido defrontada pelos pobres com pedidos de pão lhes terá respondido “se não têm pão que comam brioches”. O dito, por mais falso que tenha sido, ficou como símbolo da insensibilidade governativa – até pelo triste fim que a rainha veio a ter (guilhotinada após a revolução de 1789). E Paulo Granjo antecipou-se na “postagem”, inutilizando-me um proto-post, coisa que os bloguistas encartados raramente perdoam.
A discordância. Granjo avança como explicação para os acontecimentos a ideia da existência de uma particular concepção de poder, “tradicional” e “africana” que ancora o contrato social [para interessados no texto tem uma ligação para um artigo académico em que desenvolve o tema]. Ou seja, considera que pela vigência dessa ideia de “poder” “só em casos extremos deverá ser posto em causa o poder instituído; mas pressupõem, também e em contrapartida, que quem ocupe esse poder tem a obrigação de salvaguardar um mínimo de bem-estar e de dignidade das pessoas que governa. Pode (e tem o direito de) «comer mais», mas não de «comer sozinho» e à custa da fome dos outros.”.
A minha discordância não se prende com questões sobre a hipotética especificidade (e como tal da sua dinâmica explicativa), da realidade ou abrangência dessa proposta concepção “tradicional” ou “africana” de poder. Num registo destes (in-blog) o que me parece é que esta proposta interpretativa está presa a discursos locais (não “aos” discursos locais) – não o digo como defeito, digo-o como característica. E se assim é, se estamos face a discursos locais [às vezes a gente chama-lhes émicos] permite uma resposta nos mesmos termos. Através do dito popular, tantas vezes repetido de norte a sul, e significando (criticamente) a prática do poder: “os cabritos comem onde estão amarrados“. Entenda-se, o voraz cabrito onde amarrado come, não contratualiza.
(José Flávio Pimentel Teixeira, antropólogo, residente em Maputo)
2010-09-06 07:49:00
Imagem: http://opais.sapo.mz/
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