quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Ocidente do Paraíso (78). Mandaram-me efectuar sentinelas de noite na prisão do São Paulo.


E na empresa conforme instruções do senhor Figueira, falei com o administrador sobre a minha situação, sobre o meu futuro. Garantiu-me que estava a tratar disso. Mas os dias passavam e nem uma palavra de esperança me dirigia. Depois meteu-se numa negociata com a VW do Brasil. As comissões eram avultadas. Corrompeu algumas gentes. Alguém denunciou a corrupção ao governo. Antes de ser preso conseguiu fugir rumo a Portugal. Vi que não tinha mais qualquer oportunidade e apresentei a minha demissão. Era o início da corrupção em Angola. Um novo colonialismo mais terrível que o anterior se iniciava.

A minha principal preocupação agora era garantir as condições de sobrevivência da Tina e da Dina. Estudava intensamente para sairmos da miséria. A barriga da Tina aumentava. Dentro de poucos meses teríamos mais uma boca para alimentar. Os alimentos escasseavam. A Tina teve que lutar muito para conseguir comprar alguns carapaus pequenos no mercado do São Paulo.

A nossa salvação foi a mãe da Tina. Morava próximo do Futungo de Belas e tinha uma lavra na fazenda abandonada do Gomes & Irmão. Mandava os meus jovens cunhados pescarem peixe e apanharem mabanga. Na lavra colhia-se jimboa, jindungo, tomate, alface, etc, que também nos enviava. Se não fosse essa preciosa ajuda provavelmente morreríamos de fome.

Surgem as lojas do povo. Para ter acesso era necessário um cartão. Às quatro ou cinco da manhã a Tina ia para a bicha. Os controladores da bicha davam chicotadas nas mulheres. De vez em quando a Tina também apanhava. Depois de uma longa espera e sofrimento, conseguia trazer alguma coisa para comermos. E desabafava:
- Quem não quiser ficar na bicha dá a vagina aos guardas, ou namora com eles. Ou se der a vagina aos responsáveis da loja ainda é melhor. Entram pela porta do cavalo, fazem sexo e rapidamente atendem-nas. Até levam tudo o que quiserem. Estava assim inaugurada a prostituição generalizada, e o carregar tudo nas cabeças.

Agostinho Neto dirá mais tarde que quem quiser vir para Angola lhes garante o pão com manteiga. Nas reuniões do Comité Central, Agostinho Neto deixa toda a gente falar. No fim diz que acha que é melhor assim e assim, e pergunta se estão todos de acordo. Claro que respondem que sim. Aqui revela a sua inteligência de líder incontestado. Quem cometesse o mínimo erro era imediatamente afastado. Apesar de tudo sentíamo-nos tranquilos. Ele impunha respeito. Bastava a sua presença e ninguém se sentia à vontade. Foram tempos muito difíceis.

Surgiu a directiva do EMG das FAPLA, da resistência popular generalizada. O Lucas pediu-me os meus dados pessoais e recensearam-me. Se fosse para uma das frentes acho que não sairia de lá vivo. Mas como era técnico ficava a apoiar a retaguarda. Mandaram-me efectuar sentinelas de noite na prisão do São Paulo. Custava-me a entender que antes, no colonialismo era prisão, e agora continuava a sê-lo. Deveria ser transformada em museu. O camarada Sacrifício era o chefe. Subiu até ao terraço, aproximou-se de mim e cumprimentou-me:
- Boa-noite camarada.
- Boa-noite camarada Sacrifício.
Esteve uns momentos em silêncio e depois surpreendeu-me com o que me pareceu uma provocação.
- Jesus Cristo foi um grande revolucionário.
Pus-me à defesa, porque não entendia onde ele queria chegar:
- Sim… de facto foi o maior revolucionário de todos os tempos.
- Mas, foi um grande revolucionário ou o maior reaccionário de todos os tempos?!
Tentei argumentar mas ele de repente desceu. Pensei que a questão colocada era um teste sobre o que eu pensava sobre religião. Bastava colocar um pé em falso, para ser conotado como contra-revolucionário, ou agente do imperialismo. Havia muita boa gente que lia um manual e já se considerava mais revolucionário que os verdadeiros revolucionários. Na verdade há sempre uma igreja nos nossos corações. «E só a verdade nos liberta».

Imagem: http://pissarro.home.sapo.pt/memorias23.htm

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