O local de trabalho ficava a escassos metros do nosso lar. Os sócios eram dois portugueses. Viviam da pretensão, ou melhor, da ilusão de absorverem todas as empresas devido ao facto de existirem poucos contabilistas. Parecia uma nova modalidade de serviços de contabilidade industrializados. Eram doze máquinas mecanográficas NCR para fazerem lançamentos. O chefe da secção de pessoal era o Bento Salomão, natural do Bié, que após saber que a Tina falava umbundu manifestou-me desejo de a conhecer. Então, passou a almoçar frequentemente connosco e sentindo-se em família confidenciou-nos:
- Sou primo directo do Savimbi, estou aqui em Luanda para cumprir uma missão.
- Que missão? – Perguntei-lhe assim como que alguém de repente se sente na presença de um espião em missão altamente secreta.
- Contactar com as pessoas da minha família que andam por aí dispersas. O MPLA quer acabar com os umbundus… especialmente esse Lúcio Lara que é uma grande víbora.
- Sei que a UNITA tem bons quadros e muito inteligentes...
- Sim, por exemplo, Jerónimo Wanga é um dos melhores matemáticos que existe em Angola, mas como é da UNITA o MPLA não lhe dá valor.
- Olha, pessoalmente lamento esta guerra sem sentido.
- O MPLA nunca nos conseguirá aniquilar, nós vamos vencer. Olha, quero pedir-te um favor.
- Não tens problemas, podes falar à vontade.
- De vez em quando vou deixar aqui uns sacos com coisas para entregar à minha família. Agradeço que ninguém lhes mexa, e que fiquem bem escondidos para que não os roubem.
- Podes ficar descansado que ninguém lhes vai mexer ou roubar.
Bento Salomão continua a carregar e a transportar sacos de plástico vulgares. Alguns são pesados. Apetece-me abri-los mas estão bem embalados. Se o fizesse, facilmente descobriria que foram violados. Pergunto à Tina, o porquê de alguns sacos serem tão pesados.
- Não sei.
- Com este peso só se for comida de chumbo.
Os sacos iam e vinham. Bento Salomão queixa-se frequentemente de dores de estômago, e a sua magreza a cada dia evidenciava-se. A todo o momento apoiava uma das mãos na barriga como se isso o aliviasse ou lhe diminuísse as dores. Achei imperativo recomendar-lhe:
- Vai fazer uma consulta.
- Não é necessário, são problemas do sistema nervoso.
Havia uma rede bombista em Luanda. As explosões eram frequentes. O terror era evidente. Ninguém podia prever onde seria a próxima explosão. A vivência do nosso dia a dia era se seria no nosso prédio, no emprego ou noutro local. As autoridades mostravam a sua incapacidade. O nosso quotidiano corria o risco de afectar seriamente o que restava das estruturas económicas.
Entretanto, a única rádio e televisão do Estado Marxista-leninista anunciam que prenderam uma grande rede bombista. A Tina entra a gritar com um exemplar do único jornal que circulava no país:
- Ai meu Deus! Ai meu Deus! Vou desmaiar.
- O que é Tina?!
- Vê as fotografias que estão no jornal.
Abri-o e entre várias fotos estava a do Bento. Salomão. Então compreendi tudo. A nossa casa serviu para armazenamento de bombas. Estavam também explicadas as dores de estômago. O meu receio era se ele tinha confessado onde guardava as bombas, e sermos acusados de coniventes, o que como é óbvio, seria difícil de explicar aos serviços de segurança.
E foram mais angolanos fuzilados em nome da liberdade e da revolução. Tina passava a vida a olhar para a fotografia e comentava-me:
- O Bento Salomão era tão bonito, tão simpático e inteligente.
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