terça-feira, 15 de julho de 2008

Figura da Semana. Bettencourt Faria











Estava em Luanda com o meu amigo Carlos Alberto Tavares Ferreira, no café Paladium, na Avª dos Combatentes, quando ele me segreda: «Sabes quem morreu?» «Não!» «O Bettencourt Faria… porra meu… foi assassinado pelo Mpla.

Reviverei sempre com o nascer da Terra
Apesar de levar o meu sorriso de tristeza
No sono, no entardecer
Da mortal ideologia a fenecer
Na incerteza

Na certeza que:
Existe sempre um dia. O meu dia
Assim como existem e se ultrapassam anos
E tantos e tantos cometidos danos
E silêncios
Neste infinito nevoeiro do Tempo que se dissipa
E o Tempo se lembra de mim
Perdurará sempre um dia

Escrever é comunicar o que não pode ser dito
Não interessa nem um pouco,
se estamos vivos ou mortos
O importante é que viajámos e conhecemos o Tempo
Da vivência no circo, na feira do devo e não pago
E assim se enriquece. Viver para morrer,
viver para roubar sem exaustão
Na espera da morte, porque é a ilusão da vida
Por vezes consigo passar para outra dimensão.
Já não vejo as coisas como eram, mas como são.
Gil Gonçalves

Guardei dos tempos da faculdade – anos setenta – um recorte de jornal que fala sobre Bettencourt Faria, a propósito da sua morte. Considero um bom texto e uma boa homenagem a um Português ilustre, e por isso aqui o transcrevo; o título é "Vida e morte de Bettencourt Faria" e o subtítulo "CRIME BÁRBARO E NEFANDO PRATICADO NA PESSOA DE UM HOMEM PACÍFICO QUE MUITO AMOU ANGOLA E MUITO CONTRIBUIU PARA O SEU ENGRANDECIMENTO". É pena o texto não estar assinado, pois foi com certeza escrito por alguém que o conheceu muito bem.

«Vida e morte de Bettencourt Faria»

«Eu sou daqueles que acreditam neste país e nas suas gentes; sou dos que vieram para ficar; dos que deram os melhores anos da sua vida por um ideal ao serviço do povo angolano. As minhas actividades foram, são e serão sempre apolíticas, dedicadas ao bem comum, à elevação constante do nível cultural de toda uma comunidade». Estas palavras foram proferidas por Carlos Mar Bettencourt Faria em 8 de Dezembro de 1974, durante uma entrevista que concedeu a um jornal angolano. Ano e meio depois, é barbaramente assassinado enquanto dormia.

Quem conheceu este homem ou a sua obra sabe que este acto de selvajaria representa uma perda que vai além da morte física de um ser humano; ela é uma perda para a Humanidade porque corta cerce a vida e a realização de Bettencourt Faria que dificilmente terá continuadores para a sua extraordinária empresa.

O Centro Espacial da Mulemba, situado a 13 km de Luanda foi o sonho de um homem que nasceu génio. Construído com enormes dificuldades económicas, tornou-se uma realidade que causava a admiração e o apreço de muitos e o despeito de alguns. Carlos Mar Bettencourt Faria nasceu em Lisboa há 52 anos, em 13 de Fevereiro. Educado quase sempre pelos avós, viveu a sua infância na Ilha de S. Miguel, onde seu pai exercia medicina. O seu primeiro "êxito" científico teve-o quando um aparelho de fisioterapia de seu avô se avariou, impedindo que os doentes pudessem receber tratamentos. Na ilha não havia quem o reparasse. Isto preocupou o jovem Carlos Mar, que apesar dos seus dez ou onze anos se propôs repará-lo. Numa noite inteira de trabalho, montando e desmontando peças e mecanismos extremamente complexos, conseguiu pôr a funcionar o aparelho.

O seu espírito inventivo e a determinação que foi uma constante da sua vida, revelavam-se a par e passo nas suas brincadeiras de criança. Como gostava de música, aprendeu a tocar violino, mas o instrumento foi construído por ele. Tocava também piano, pintava e fazia pequenas esculturas. Nos primeiros anos de liceu, em que parece não ter sido muito brilhante nalgumas disciplinas, construiu uma telefonia que ofereceu ao liceu. Isto passou-se há cerca de quarenta anos, quando a rádio era uma invenção recente e complicada. Aos 14 anos o pai de Carlos Mar faleceu e ele interrompeu os seus estudos, ficando a viver com os tios. Teve empregos de ocasião, mas nas horas vagas dedicou-se intensamente ao estudo do que lhe interessava: electricidade, maquinismos, biologia, astronomia, e muitas outras coisas que formaram a sua enorme bagagem intelectual e científica. Com vinte anos vem para Lisboa prestar serviço militar, após o que ingressa no Alfeite, onde trabalha dois anos. Entretanto, prepara-se para um concurso na TAP em que se classifica em segundo lugar e é colocado nos Açores. Quatro anos depois regressa a Lisboa e aceita um convite para trabalhar na Diamang em Angola. Entretanto casara com uma sua prima afastada, Stela Maria Faria Patrício de quem teve dois filhos.

Na Diamang, além do excepcional técnico que se revela, tem ocasião de ir investigando e estudando os assuntos que mais lhe interessam: astronomia e biologia, especialmente marítima. Para o estudo de ambas as coisas necessita de aparelhagem adequada e isso fá-lo debruçar-se mais atentamente sobre o estudo da electrónica, matéria em que se torna tão competente que os dirigentes da refinaria Petrofina em Luanda o contratam para funções altamente especializadas.

Entretanto, vai arquitectando a forma de construir um observatório astronómico naquela região. Com grande esforço financeiro compra um terreno na Mulemba, num local isolado, mas que ele considerava tecnicamente de muito bem situado para os seus estudos astronómicos. O empreendimento tem por finalidade fazer estudos solares, nomeadamente: fotografias integrais diárias, contagem de manchas, heliografia, espectrografia e heliografia, recepção de ondas electromagnéticas; fazer qualquer espécie de astro-fotografia; proceder a estudos de radioastronomia e rastreios de satélites artificiais. Neste último trabalho, Bettencourt Faria foi o único português que registou e fotografou em aparelhagem apropriada os sinais emitidos pelo primeiro Sputnik russo. Note-se também que em todo o Continente Africano é este o único observatório que consegue este trabalho.

Muitos foram os países que relataram as actividades do Observatório da Mulemba e elogiaram o talento excepcional de Bettencourt Faria, mas os organismos oficiais portugueses, especialmente aqueles que mais directamente deveriam congratular-se com o êxito obtido por um cidadão português, observatórios e seus dirigentes, ficam estranhamente mudos. O triunfo de Bettencourt Faria faz sombra aos seus «colegas» de actividade. Em Angola, no Observatório Nacional os «especialistas» consideravam Bettencourt Faria uma espécie de aventureiro da ciência. Talvez o fosse, mas no melhor sentido da palavra. Há excepções muito honrosas de entidades que lhe deram apreço.

Está neste caso um dos actuais directores do Serviço Internacional da Fundação Gulbenkian, Dr. Mário António Fernandes de Oliveira, que trabalhou no Observatório Nacional de Luanda e teve oportunidade de conhecer Carlos Mar Bettencourt Faria, quando este procurava apoio nos serviços do Observatório de Luanda. «Era um homem extraordinário, tanto no aspecto humano como na sua qualidade de investigador e cientista», diz-nos o Dr. Fernandes de Oliveira – «vinha muitas vezes à biblioteca do Observatório Nacional buscar livros técnicos que ninguém ainda havia requisitado, talvez por serem "demasiado" científicos, mas para Bettencourt Faria nada era "demasiado", desde que relacionado ao saber. E ele não só os lia como os traduzia para português, pois quase sempre estavam escritos em línguas estrangeiras que ele dominava perfeitamente.

Ao traduzi-los, ia introduzindo-lhes anotações dos factos que ele próprio descobrira relacionados com a matéria. Dedicava-se a uma série de actividades que dariam para meia dúzia de sábios. Enfim era um trabalhador incansável e o seu espírito de iniciativa e a tenacidade com que lutava pelos ideais faziam dele um homem que não terá facilmente quem o substitua».

A NASA em Novembro de 1974 pede a colaboração do Centro Espacial da Mulemba, como viria ultimamente a chamar-se aquele Observatório. Baseando-se nos dados que recebe de Bettencourt Faria a NASA divulga-os a outros Centros Espaciais que se encontrem em condições de equipamento idênticas à Mulemba e que não conseguiram obter os mesmos resultados, o que surpreende agradavelmente a NASA, em relação à competência de Bettencourt.

Resta dizer que a maior parte das peças de equipamento que eram utilizadas naquele Centro provinham da recuperação de aparelhos que se consideravam incapazes e eram cedidos pelas mais diversas entidades, muitas vezes particulares e iam desde um velho frigorífico, à fuselagem de um avião abatido. O único apoio considerável recebido para equipamento, foi o de um subsídio da Fundação Gulbenkian no valor de quinhentos contos, mas que se considerava a título de empréstimo de equipamento, já que, por o Centro Espacial ser um organismo particular, a Fundação não podia conceder subsídio de outro cariz.

Recebeu também da mesma Fundação cinquenta contos para efectuar uma viagem de estudo à Alemanha, Inglaterra, Polónia e Itália. Os restantes apoios foram as palavras amigas e de encorajamento dalguns dos seus amigos e a dedicação e esforço com que a sua mulher partilhou as horas difíceis desse homem extraordinário. E nem sempre é fácil ser-se mulher de um génio. Hoje a viúva de Bettencourt Faria vive no Brasil com os seus filhos, pois seu marido obrigou-a a abandonar Angola o ano passado aquando dos tumultos sangrentos que ali se registavam.

Carlos Mar Bettencourt Faria era um português que recebeu dos estrangeiros o reconhecimento do seu mérito, enquanto os seus compatriotas o "tentavam" esquecer, amarrados à mediocridade de conceitos elitistas que se padronizaram pela obtenção de "canudos" e como Bettencourt era um autodidacta, não deveria ser reconhecido o seu mérito. No entanto, da National Environmental Satellite Service, recebeu Bettencourt Faria uma carta em que se diz: «Com o esquema do seu sistema APT, Bob Popham e Chuck Vermilliou do Centro de Voos Espaciais de GODDARD/NASA e eu, chegámos à mesma conclusão: você fez um excelente trabalho não obstante as frequentes dificuldades logísticas (de superintendência) que enfrentamos; ficámos particularmente satisfeitos em verificar a sua opção sobre elementos de lógica – usando, o que consideramos ser componentes seguros e comprovados. O seu Governo, tem muita sorte em dispor de alguém tão competente e dedicado como você na investigação tecnológica: AS NOSSAS FELICITAÇÕES».

Este foi o homem que em Luanda foi assassinado, vítima da desordem e do caos em que Angola foi lançada por inconscientes e traidores dos valores que deveriam ser a razão de ser do Homem, que em vez de Paz deixaram Guerra, que em vez de Civilização, deixaram Barbárie, em vez de Humanidade, Homicídio.

in «a ilustração» de 20 de Julho de 1976

Actualmente já há muito mais informação disponível na Internet em páginas feitas com muito gosto e empenho por um seu descendente Luís Filipe Bettencourt, por favor consulte: http://www.geocities.com/lfbettencourt/

In http://tvtel.pt/tvtel510/bettencourt_faria.html
Gil Gonçalves