sexta-feira, 25 de julho de 2008

Ruínas do nosso PIB


O característico perdurar sonoro inconfundível faz aparição. Aparenta motim, humana borrasca de borracho destoado. As chapas crepitam com a corrente eólica do etanol. Vão saltando dos gonzos ogivais pregados. A voz é rouca, indecisa:
- Este vizinho está sempre a mudar as chapas da porta! Juro-lhe que hei-de encontrá-la!
Mentor apreende-se:
- Nunca mudei a porta, o álcool é que a muda.

O vizinho parece estar no labirinto a fugir do Minotauro. Desequilibra-se e aterra com a massa corporal na porta de entrada. A fragilidade do material obedece-lhe, e como um furacão, recebe-se na mesa que tenta fugir-lhe, limitando-se a mudar de posição. Faz tremendo esforço para se levantar, as pernas não obedecem vitimadas pelo vendaval, e os destroços espraiam. Ulisses zomba-lhe:
- Se os pés pensassem, não suportariam a dor do chão.
Entretanto, o vizinho consegue equilibrar-se no chão com a ajuda da parede. Tenta mostrar, ludibriar a sobriedade. Parecer que não está bêbado.
- Monitor… Mentor… és o único que visito aos tropeções!
Olha á sua volta, e vê os derrames do madeirame.
- Não venho só, trago-te alguns escombros… ruínas do nosso PIB. Estes lugares, estas ruas esburacadas enterram o trânsito democrático. A questão não é o ser, é o cinismo do ser. O navio do dilúvio da escravidão negreira está à deriva.
Mentor sente uma visão profética:
- Só falta acontecer um vulcão, um tremor de terra, e um ciclone… bebes, e não cumpres as regras do trânsito. Sinal vermelho é para parar.
- Oiço e vejo tudo vermelho, já não suporto o cinismo dessa agressividade.
- Cada vez que me visitas deixas a casa em pantanas.
- Pantanas?... Ah, … o pântano do poder não me deixa respirar. Trago o perfume dos jardins da Babilónia apagados… lembrados, do paganismo alcoólico.
- Embebes-te porquê?
- Os gatunos incendiaram-me a casa. Antes, os esgotos e a água das condutas rebentadas reuniram-se, e foram arrastando os poucos alicerces que possuía. Fiquei apenas com o habitual, o que resta da minha cabeça. O governo Petrolífero é conivente, não vale a pena. Isto é para destruir. Não é por acaso que o álcool persegue, prefere a população. Creio que não sobreviveremos muito tempo. É como no futebol, entrosado e acutilante. Fome, doenças, epidemias, alcoolismo, droga, feitiçaria… que extinguem um povo a curto prazo. Na prática já não existem, só restam as suas sombras. Quem os governa, prepara-lhes a solução final. Com palavreado perfumado, um cemitério apocalíptico espera-os, onde finalmente repousarão. É como a censura e o racismo, andam sempre solidários.
- O racismo mais violento é o preconceito intelectual…o crescimento económico esvai-se.
- O crescimento económico é um pai muito rico, com os filhos na fonte da fome.
- Sem livros, não há desenvolvimento, não há emprego.
- Por acaso há universidades para desempregados? É que, jogo sempre na equipa deles, meto muitos golos, e dizem-me que estou perdido. Não consigo jogar nessa equipa. Não pertenço à classe dos que recebem ordens superiores, porque significa que vivemos como inferiores. A minha Penélope já está velha, vende qualquer coisa para sobrevivermos. Os nossos dois filhos e a filha seguem a determinação do tintol. Sabes… em Petrofaminta a única liberdade que nos resta é acariciar, rodar com os dedos, copos com qualquer mistela que se beba. Entristece-me a certeza que nenhum letrado da pena escreve sobre os nossos feitos gloriosos. Nós…sim… nós… gloriosos alcoólicos, temos muitas odisseias para viver, para quem as queira narrar. Muitos, infindáveis livros seriam cheios... teriam que construir uma biblioteca do tamanho de uma grande cidade. O nosso dia-a-dia dá para escrever uma obra literária, onde o autor ganharia – de sombra e água fresca – o prémio Nobel da literatura.
- Devaneios de um alcoólico não são levados em conta.

Reapreciou-se o tilintar alaudado do medieval garrafal. Era a vizinha que aproveitou para abastecer a circunstância atenuante. O ébrio com a mente adjudicada, afortunou-se, imaginou princesa com xanto, e devaneia-lhe:

Princesa do saracotear, cervejar
Deixaram os punhais Setembrinos e Novembrinos enferrujar
As sementes dos teus olhos perderam-se
No triste adubo verde, sem livros
Estão sempre os teus olhos tristes
Sem medida cautelar
És probabilidade, defunta sem choro, figura decorativa
As noites delongam-se, mordentes noite e dia
Escravas, nas costas carregadas de garrafais crianças
Os teus lábios endureceram sem porvir
Só de fora para fora, de fora para dentro não
A minha tristeza voa, só vê desolação, na nação
Tudo esbanjado, partido, não repartido
Sem bater pés não andam, desandam
Está tudo entupido, carcomido
Tudo de fachada fechada, enregelada
A tristeza de contemplar poetas, de poesia engarrafada
Poemas de escravos independentes
Na pátria dos poetas mortais
Sempre as mesmas vozes se levantam
Cabisbaixas nas repetidas intenções

Gil Gonçalves

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