sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Cavaleiro do Rei (II)


A boçalidade natural e o investimento no analfabetismo, criam seres inimagináveis. É atroz, desumano, viver quotidianamente com tais almas fugitivas do inferno. É o regresso ao primitivismo alucinado, sem paralelo na História.


Valente, garboso, destemido, assim se move o protegido do rei. Epocal como Lancelote, faz época o cavaleiro Epok. Agrada-se, galanteia-se para a rainha. A soberania estende-se astral no camarote real, aguardam pelo torneio medieval.


Os corpos da plebe agitam-se como plantas ventosas em matagais. Expressam-se descontentes porque esperavam grande maratona de comes e bebes. Grandes, graves trombetas anunciam a justa. Parecem-se com o troar de canhões, que ecoam até ao Paço. E a populaça assusta-se, relembra tempos idos. Convictos que o reino retornou à guerra, ao passatempo habitual da corte, que é guerrearem-se por causa dum líquido negro. Que anda muito cobiçado por poderosos reinos, que constantemente enviam embaixadas e navios carregados com moedas valiosas e um novo dinheiro de papel.

Então, os acólitos reais afirmam categoricamente que o reino é um dos mais desenvolvidos do mundo, apesar de ninguém querer explicar o porquê da ralé estar tolamente, totalmente desempregada. Evidentemente que no reino ninguém trabalha. Vem tudo de fora. Importação é a palavra que mais se pronuncia, como se fosse um dicionário com uma só palavra.


O reino Jingola submete dezassete vice-reinos, governados por vice-reis. Limita-se a norte pelo condado do Cacuaco, a sul pelo condado da Nova Vida, a oeste pelo Mar de Kalunga, e a leste pelo condado de Viana. A arraia-miúda ocupa-se principalmente em vender qualquer coisa, incluindo se necessário, as filhas. A ocupação secundária do povo deste reino, são as maratonas de comes e bebes que chegam a durar três dias e três noites, ou semanas. As lutas e desavenças são constantes, mas os mosqueteiros do rei estão sempre atentos.


Qualquer manifestação da populaça é contrariada por cavalos e cães, habilmente treinados pelos mosqueteiros. Muitos arruaceiros já experimentaram mosquetadas e dentadas caninas, mais que afiadas.As trombetas reais quando sopradas, parecem tempestade de trovões, confundindo-se com canhões. Um cavalo empina-se, o cavaleiro despede-se da montada e encontra a vulgar sela convidativa do solo. A ralé frenesia-se, lembra-se da cruel violência recentemente terminada dos irmãos desavindos. Surgem as imprecações:

- Fujam! Não ouvem o barulho dos canhões?!
Uma velha aldeã com um pesado fardo de feno para alimentar os cavalos tropeça, cai. Levanta-se a coxear, corre como pode, arrasta a perna ferida e o peso da idade. Grita:- Aiuéééé!!! É outra vez mais guerra! Vêm aí guerra!- Desta vez é aonde? Aonde?


Fingem-se assustados, desorientados, aparvalhados. A multidão de esfomeados e esfarrapados ruma na direcção do coche e liteira reais. Conseguem descascar pedaços de oiro. Como piranhas, em poucos segundos os veículos reais quase desaparecem. Restam-lhes os esqueletos. Sobraram pedaços de uma roda. As ferraduras dos cavalos não escaparam. Servirão de amuletos para os feitiços.O rei engole em seco, descruza as pernas, recompõe o casaco, transpira o peito desconsolado, comprime os lábios, impacienta-se, e chama o chefe dos mosqueteiros.

Gil Gonçalves
Foto: Angola em fotos
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