segunda-feira, 17 de maio de 2010

A Ocidente do Paraíso (60). Comecei a ficar com medo de dormir.


Nas duas primeiras semanas acordava sempre com o mesmo pesadelo. Que alguns inimigos subiam pela parede até ao segundo andar. Que já estavam a abrir a persiana, e vinham armados com punhais para me matarem. Despertava em alta gritaria e depois ficava muito cansado. Algumas vezes a cabeça ficava a zunir, e pensava que ia enlouquecer. Mas conseguia acalmar-me. Comecei a ficar com medo de dormir. O médico receitou-me calmantes que tomei durante uns dias e assim já conseguia dormir tranquilo.

Tinha que arranjar emprego. Respondi a um anúncio no Diário de Notícias, que pretendiam vendedores. Era condição fundamental saber inglês. Fui à entrevista, preenchi um questionário onde as habilitações mínimas exigidas eram o sétimo ano. Escrevi que tinha tais habilitações, que o meu inglês era razoável, e que na vida militar o meu posto foi alferes. Claro que era mentira. Davam uma reciclagem de inglês o que não me foi difícil. Não desconfiaram de nada. Integraram-me numa equipa de três elementos. A empresa intitulava-se Tematron Internacional. Vendia pequenos computadores para crianças. No visor o petiz encostava um lápis electrónico e respondia se era por exemplo um A. Se errado, aparecia no visor ERRADO, ou CERTO se fosse a letra certa. Também funcionava com números.

O aborrecido era o vencimento que consistia nas comissões das vendas. Os contactos com os clientes efectuavam-se ao meio-dia, ou à hora do jantar. Eram as horas ideais quando a família habitualmente se reunia. E as crianças gostavam do brinquedo, faziam pressão sobre os pais para o comprarem. Os contactos seleccionavam-se da lista telefónica. A preferência, claro, ia para engenheiros, médicos, advogados e similares. Porque o preço do brinquedo não era nada barato. Como não tinha transporte próprio, eu e outros colegas andávamos longas distâncias de autocarro ou a pé. Depois de vários dias não consegui vender nada. O cansaço já me dominava. Saía de casa de manhã, e almoçava uma sandes em qualquer lado. Com fome prosseguia a minha luta. O dinheiro começou a escassear e desesperado desisti.

O meu irmão, a seguir-me na ordem de nascimento tinha o péssimo hábito de ouvir música com o som muito elevado no seu gira-discos. Já lhe tinha falado para baixar o som, mas não prestava nenhuma atenção. O meu sistema nervoso começou a abalar-se. Ouvi a voz do meu pai a reclamar, que tinha estado de serviço de noite e que necessitava dormir. O meu irmão fingiu que não ouviu. Então, pensei que durante a minha ausência o lar entregou-se na anarquia. Disse-lhe para baixar o som. Ao contrário do que esperava… elevou-o. Vi com surpresa o meu irmão em posição de luta. Alto e forte, treinava carate. Sabia que ele já tinha protagonizado algumas surras. Mas não me intimidei com isso. Peguei no gira-discos, atirei-o ao chão e partiu-se em pedaços. Ele veio na minha direcção para me agredir, esquivei-me e dei-lhe dois socos na cara. Ficou a chorar. Primeiro a minha mãe, depois o meu pai, acorreram pensando que eu ia matá-lo. O meu pai repreendeu-me com dureza. Depois fiquei admirado com a minha violência. Decididamente a minha casa não era local saudável. Já pensava em ir-me embora, mas para onde?!

Imagem: http://iriscelta.multiply.com/photos/

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