sexta-feira, 30 de maio de 2008

Ciclone


O vento semeava a poeira das catedrais de construções flutuantes. New Deal, nova corrida ao homem dourado. Muito dinheiro, muita redundância bancária. Destruir, construir, destruir. Construir uma árvore é mais difícil, é mais fácil construir um prédio. Senti começo de inflamação das conjuntivas. Com apetite fármaco entrei numa farmácia. No fundo do balcão, o farmacêutico conversa molemente com uma cliente. São jovens, parecem namorar. Percorro o mostruário até conseguir ouvir a conversa. A jovem activa o corpo, sobe o tom da voz.
- Não tenho direito ao emprego, porquê?
- Sabe…
- Sei o quê!? Passei nos testes de admissão. Mandaram-me apresentar ao serviço hoje, e aqui estou.
- Você não entende as coisas.
- Repito! Não tenho direito ao emprego, porquê?
- Sabes, se fosses mais clarinha, terias o emprego.
Ela levantou uma mão na intenção de despedir uma chapada. Vacilou, arreou, ausentou-se espantada. A lacrimejar na porta de saída, esforçou as cordas vocais.
- Essa não! Essa não!
Aviei-me com o medicamento e reencontrei-me na rua. Soltei-me das ilicitudes dos ventos contrários.
- Que Deus nos acuda! Outra vez Nero incendiará Roma, e culpará os Cristãos!
No cume de uma antena quatro aves de rapina aguardam maré de rosas. Alguns pombos distraídos voam perto. Duas rapinadoras alçam voo, preparam arraial alado. Pairam sorrateiras, os columbiformes detectam-nas e janelam.
As zungueiras em fila indiana espalham fervores nos seus andores. São jovens apetitosas que estudam nas ruas das universidades paralelas. Carregam livros de ouro, líquidos nas suas panelas.
Imensas filas de viaturas esperam, desesperam. As estações de fornecimento de combustível são insuficientes. Aproximo-me do grande esgoto.
Nota-se que era uma rua extensa. Está um imenso estendal, lodaçal. Bem nutrido, alimentado sem encargos régios. Bóiam restos de lixo. Colónias de lagartas colonizam, fazem ambiente. A grata entomologia promove o desenvolvimento social das espécies. Um camião recém-chegado estacionou com as rodas traseiras ao léu. Conseguiu engolir-se no espólio crateriforme. O seu condutor aprendeu com o rei David: «o abismo chama o abismo». A engrenagem parecia um dos rios dos Infernos.
- Meu Mentor, é a versão do Apocalypse Now?
- Não… é o nosso mar da existência.
- Sem ondas? Sem pescadores?
- A rua foi saneada quatro vezes. Instruíram como se deve morar num prédio. Os locatários fazem ouvidos de mercador. Os saneadores cansaram-se, abandonaram-nos à sorte. Falta ignição para estas coisas e loisas. São vernáculos, venatórios primevos. Utilizam-se disso como estratagema de vingança. Fruem o prazer mórbido da destruição.
Gil Gonçalves

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