quarta-feira, 21 de maio de 2008

O Reino Perdido


Inicialmente publicado no Jornal O Observador

Governar é muito fácil, basta ter um povo analfabeto.

Desempoeirava os arquivos na lisbonense Torre do Tombo quando encontrei um manuscrito surpreendente.
A corte do Rei D. João V de Portugal que reinou de 1706 a 1750, vivia luxuária com as naus que chegavam e descarregavam ouro e diamantes brasileiros. Era o rei dos deuses. O Convento de Mafra tangou 120 milhões de cruzados. O dízimo à igreja de Roma ultrapassou 200 milhões. O Aqueduto das Águas Livres?.. o povo pagou. Um rei que influencia reis actuais, copiam-no, suplantam-no. Insatisfeito, D. João V queria mais riquezas, o que prova que quanto mais se têm mais se quer, e ordenou os preparos de três embarcações, com destino à Africa Ocidental, na deriva da rapina, no saque de mais ouro e diamantes.

Acabou-se a aparelhagem das naus que almiranteadas por D. Fuenteovejuna, desacostaram numa manhã sedativa. Usaram a prática de apenas os capitães conhecerem o destino da viagem. Chegaram às ilhas de Cabo Verde, fizeram a Volta ao Largo, depois ficaram à mercê dos bons ventos rumando para sul. Muito navegaram e bordejaram até ao encontro de uma grande tempestade que dir-se-ia os aguardava. As vagas não vagavam as naus que descombinadas perdiam o desejo, o ser de boa paz. Chuva e ventania intensificavam-se, o que forçou as naus a largarem-se as mãos, e saírem da rota como países mal governados. Dias aziagos sucederam-se com esforços para não se afastarem, para continuarem como namorados, mas em vão, a nave capitã perdeu-lhes os vultos. O almirante do mar oceano Fuenteovejuna, não se surpreendeu quando se mareou que andava à deriva. Como os homens que fazem guerra, o mar também se cansa e amaina. Seguiu-se a dança do universo visível e um estafado marinheiro soltou algo parecido com um grito:
- Terra à vista!
- Louvado seja Deus Nosso Senhor! - Exclamou o capitão que acrescentou:
- Vamos consertar a devastação da tempestade, renovar os viveres e saber onde acostámos.

Exaustos, deitaram-se na areia fina do imaginário paraíso. A vegetação adensava-se e o sol rompia com a sua fornalha, o que levou Fuenteovejuna a profetizar:
- Chegámos ao país do sol!
Saboreava-se o amável convite da Natureza para bater sorna, mas o deleite não foi demorado porque das sombras da vegetação surgiram alguns seres humanos escuros, achocolatados. Um destaca-se, ergue a mão em sinal de cumprimento e Fuenteovejuna pergunta-lhe:
- Onde estamos, quem são?
- Watula! (já chegámos) saudaram os nativos na sua língua.
Fuenteovejuna, à James Cook na Austrália, sabiamente esclarece os seus homens:
- Meus senhores… estão no reino dos Watulas!
Viu a inutilidade da sua conversa porque os nativos não o entendiam. Esboçou-se, esforçou-se e marimbou-se. De repente surge uma jovem, uma natividade de extraordinária beleza que faz uma afirmação desconcertante:
- Eu entendo a tua prosa.
Fuenteovejuna olhou guloso para a jovem natividade, como alguém que não comia nada há muito tempo. Admirou-se, admirou-a, despiu-a mentalmente, aparentava vinte e cinco anos. Cor de chocolate claro, lembrava uma estátua de deusa perdida, à muito procurada pelo argonauta, uma lenda das maravilhosas ilhas encantadas, que nenhum escultor ainda esculpira. Como um sonho nunca viajado, encontrado, nunca revelado. Os seios nus, erectos e mamilos de endoidecer qualquer hominidio, sugeriam que acabavam de aportar no paraíso perdido. A cobrir-lhe o sexo já publicitava, estampava a maravilhosa invenção da tanga. Fuenteovejuna esqueceu-se de Deus porque sentiu um arrepio de paixão terrena passar-lhe pelo centro do corpo. Rouquejou:
- O meu nome é Fuenteovejuna, como é que sabes a minha língua?
- Chamo-me Kufundisa, (fazer justiça) e a tua prosa aprendi nos computadores dos Dólares.
- Como se chama este reino, e quem são os Dólares?
- Este reino, agora chama-se Ajimbila, (ficam perdidos) e os Dólares governam-nos, oprimem-nos... os Dólares chegaram aqui nalgumas naves especiais, com pessoas brancas, a que o nosso povo estupidamente chama deuses e que conluiados com o rei absoluto, Ka Ubu (o eterno) nos zeraram as almas. Os nossos filhos precocemente sabem que a vitória da morte é certa. Não temos comida, não temos nada…somos zeros … para sobrevivermos bazámos para a selva. Todas as riquezas do nosso reino são para os Dólares, para Ka Ubu e a sua tribo.
- E vocês não se revoltam?
- Não dá, porque Ka Ubu e os Dólares têm muitos guardas, um exército poderoso e muitas armas sofisticadas. Quando nos apanham, e como somos da oposição, fazem tais feitiços que desaparecemos e os assassinos nunca são descobertos. Também extraem um líquido, a que chamam ouro negro, e é com ele que movem as máquinas dos Dólares, e da tribo de Ka Ubu. Também extraem muitos diamantes. Somos alguns milhões e morremos de fome… infindavelmente condenados às galés infortunadas. Os do Ka Ubu estão sempre em festas, e tem umas máquinas que se chamam rádios, e estendem-nos a tentação dos convites para as maratonas deles. Nesses dias bebemos muito e comida nicles. O nosso povo nesses dias usa o passatempo da bebedeira. Os únicos que lutam ao nosso lado, que nos apoiam muito são os Ecléticos. Eles têm uma rádio, mas é quase clandestina. Apoiam os nossos ideais de justiça e igualdade para todos. São uma verdadeira rádio de Kalunga. Espalham o embrião revolucionário da evangelização, a fraternidade, o amor, e noticiam… clamam, proferem sempre a verdade. As atrocidades dos Dólares e de Ka Ubu são oportunamente denunciadas, mas não deixam que o sinal da rádio vá muito longe. Quando os Ecléticos tentam longinquar o sinal e passar o direito à informação para todos, acusam-nos de malfeitoria, prendem-nos, ameaçam-nos, e se necessário libertam-nos para o universo paralelo da morte. Também contratam muitos estrangeiros aventureiros do piorio… malfeitores para nos perseguirem, nos explorarem. Ka Ubu desinteressa-se das nossas vidas. Sobrevivemos mergulhando na prostituição. Ka Ubu aprecia muito a minha beleza, consegui-lhe fugir do harém mas a qualquer momento receio ser recapturada… ele quer que eu seja sua esposa, mas não aceito, não gosto dele… ninguém lhe gosta!

Fuenteovejuna, depois de ouvir tudo o que a bela Kufundisa disse, guardou um profundo silêncio, depois nublou-se e desanuviou:
- Minha beleza espectacular…
- Ah! Muito obrigada…
- … Kufundisa, apoiamos-te a restabelecer a paz, harmonia, justiça, para que não haja mais fome neste reino.
- E como o farás?
Fuenteovejuna não se sentia bem. A fofinha perturbava-lhe a mona. Tinha outras intenções. Depois da aventura, se terminasse a contento comeria, sugaria, todo o corpo, a beleza da Kufundisa. Decidiu-se:
- Vamos parlamentar com os Ecléticos, para que espalhem a sua rádio por todo o reino, isso é o mais importante… e quanto às armas que eles utilizam… tens alguma ideia?
- Sim! Falarei com o papá Akakakula, (dar o primeiro alimento a uma criança) era o nosso rei… continua muito bondoso, o nosso povo gosta muito dele. Foi destronado devido às ambições de Ka Ubu, e dos seus amigos Dólares.
- Kufundisa, temos que espiar as instalações dos Dólares e Ka Ubu. Alguns homens vão contigo, depois idealizaremos um plano de ataque.
- Sim! Guardarei eterna gratidão por tudo o que fazes pela nossa liberdade, pelo nosso povo… mas por favor não te exponhas demasiado!
Olharam-se durante um profundo momento no universo dos seus olhos. Sentiram o feitiço inevitável que atrai as duas raças, as duas cores maravilhosas. O efeito do feitiço foi rápido, abraçaram-se, beijaram-se num ímpeto de quedas de kalandula, avassalador de desejos perdidos, a aguardar o futuro prometido, ferido na angústia de tantas esperas.

Mais tarde, Kufundisa confundindo-se com a selva, reuniu-se com seu pai Akakakula, e o chefe dos Ecléticos, Mutongi (lutador). Akakakula apresentou a Fuenteovejuna algumas armas usadas pelos guardas de Ka Ubu e dos Dólares. Entretanto, os espiões enviados por Fuenteovejuna também se lhes reuniram, e deram o ponto da situação.
Depois de Kufundisa conseguir instruir devidamente o manejo das armas, e de Mutongi prometer apoio na sua rádio com palavras em código aos resistentes, assentou-se que os alvos primordiais seriam o líquido, chamado de ouro negro. Sem este líquido, Ka Ubu e os Dólares chorariam amargurados.

Efectuaram-se vários ataques com sucesso. Ka Ubu e os Dólares preocuparam-se, porque viam as imensas riquezas fugir-lhes como areia ao vento. Ka Ubu convocou de imediato um dos muitos vice-reis, e demandou-lhe:
- Não sabes quem está por detrás disto?
- Não, meu rei, não sei!
- Que morbidez…
Ka Ubu tinha que demonstrar a sua zanga, insatisfação, e o melhor para um rei é ver a cólera no seu rosto, gritar, e gritou:
- …seu mórbido, só pode ser essa maldita da Kufundisa, e do seu pai, esse meia-armador Akakakula.
- Sem dúvidas meu rei! O Mutongi dos Ecléticos está a passar uma mensagem na rádio dele da Kufundisa… ela diz que há muita corrupção no reino, e que vai tomar o poder com a ajuda de estrangeiros.
- Estrangeiros!? Quem, os Dólares!?
- Não meu rei, não são Dólares, são outros câmbios.
- Outros!?.. Quem!?.. Confisca-me a Kufundisa e o maldito pai dela. Vai-te e torna-te com ela… maldita azarada!

Com o auxílio dos Dólares facilitou-se imenso o chefe dos guardas de Ka Ubu, capturar a fofinha, tenrinha Kufundisa. Já na presença da tirania, ressoa-se o fadário:
- Já nada me alumia… por causa de vocês donzelas caiem reinos, impérios… agora no meu reino nasceu uma revolucionária. Tu e o teu Toussaint l’Ouverture! Dar-te-ei uma bolinação que jamais esquecerás.
- Ai é! E que bolinação é essa?
- Kufundisa, não me omitas, sabes que te desejo, que tenho todas as mulheres que quero. És a eleita, a privilegiada, a princesa do meu harém! Neste reino todas as mulheres me pertencem, e tu não és excepção!
- Não!!! Como disse um antepassado: até que as leoas tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador. Somos corpos à espera no teu matadouro!
- Guardas, tirem-me daqui este tsé-tsé! Prisão com ela! Que o chicote a acaricie!
Na prisão, as encantadoras costas de Kufundisa ardem com o fogo das chicotadas. O sangue da injustiça escorre-lhe porque sempre existirão muitos oceanos injustos e quase nenhuns riachos justos. Mas Kufundisa era muito sacana porque nem lamento, gemido, pedido de misericórdia osculou.
Entretanto, Fuenteovejuna e os seus amigos tomam conhecimento da prisão de Kufundisa. A revolta alastra-se, alcança o auge. Os Ecléticos com a ajuda dos populares estendiam o sinal da rádio a todo o reino, e denunciavam que Ka Ubu e os seus amigos Dólares se aprestavam à rendição. A situação desfavorecia o chefe dos Dólares que tentou negociar com os revoltosos, mas em vão. Ka Ubu, sentindo-se só, raspa-se para lugar de incertezas, para o exílio habitual de um reino amigo. Um grupo de pressão chefiado por Fuenteovejuna assola a prisão e liberta Kufundisa. Os dois agora amantes aproveitam-se da situação, saltam-se, abraçam-se, beijam-se interminavelmente. Kufundisa está de rastos.
- Meu amor conseguiu! Oh! Como te amo!
- Também eu… sem a tua coragem nada disto seria possível!

Repôs-se Akakakula no trono. Mutongi rei dos Ecléticos viu a sua rádio definitivamente entronizada. Cânticos, louvores e batucadas a Kalunga foram proclamados, entoados, ritualizados. Uma época de trevas terminara, e uma informação para os sem voz recomeçara. A educação, o progresso do reino democratizaram-se. Akakakula proclamou o novo reino com o nome Azériua. (são felizes).

Fuenteovejuna foi-se, era um aventureiro, deixou Kufundisa com um filho. Foi para as Américas rastreando Francisco Pizarro, Fernando Cortês, do elixir da longa vida de Ponce de León… onde houver el dorados, misteriosas cidades do ouro, lá estaremos e nunca de lá sairemos.
Não tardou que aportassem a Azériua as naus com os missionários da evangelização, da espada da delapidação. Aventureiros e pistoleiros sucediam-se na busca incansável da pergunta: «onde está o ouro?» e os nativos respondiam: «aqui não, mas lá muito, muito longe tem» a África Negra é, será o destino dos eternos aventureiros. Ainda hoje na densidade das selvas do Golfo da Guiné, alguns mais-velhos quentes das fogueiras nas noites frias, contam às crianças a lenda do povo de Azériua.
Civilizar é destruir com o petróleo do nosso descontentamento, das nossas desgraças, misérias, fomes.
Gil Gonçalves

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