Rafael Marques de Morais
Camarada
presidente, para que serve a Constituição, para além de legitimar o seu poder?
Quem
o aconselha a empregar a Polícia de Intervenção Rápida (PIR), uma força de
elite, para torturar jovens manifestantes, jornalistas e políticos da oposição no seu comando central?
Dirijo-lhe
essas duas questões a propósito dos últimos actos de violência que essas forças
cometeram contra jovens que organizaram uma vigília em memória da chacina de 27
de Maio de 1977, no mesmo dia do ano de 2014.
O
senhor presidente desempenhou um papel extraordinário naquele evento histórico,
como protagonista de ambos os lados. Participou das reuniões preparatórias dos
fraccionistas, lideradas por Nito Alves e Zé Van-Dúnem, assim como esteve do
lado das forças leais a Agostinho Neto, que protagonizaram o massacre contra os
fraccionistas e dezenas de milhares de cidadãos. Mas isso é outra história.
A
absoluta falta de respeito, por parte do seu governo, pelos direitos
fundamentais dos cidadãos consagrados na Constituição não constitui, por si só,
motivo de referência. No entanto, apesar de a sociedade se sujeitar aos abusos
do seu poder como normal, há motivos de preocupação comum sobre a violência
política no contexto actual.
Camarada
presidente, as respostas às duas questões que lhe endereço podem ajudá-lo a
enxergar a realidade sobre os perigos dessa estratégia de violência política
para a sua própria segurança pessoal e para a estabilidade do seu poder.
Tudo
o resto é irrelevante para si, bem sei. Por isso achei por bem enumerar alguns
efeitos da luta que o seu regime tem empreendido, desde 2011, para acabar com
as manifestações de protesto contra o seu poder.
As
Contramanifestações do MPLA
Tudo começou com uma brincadeira de um jovem, que se autoproclamou como Jonas Roberto Agostinho dos Santos, usando os nomes dos três líderes dos movimentos de independência e do próprio camarada presidente.
Tudo começou com uma brincadeira de um jovem, que se autoproclamou como Jonas Roberto Agostinho dos Santos, usando os nomes dos três líderes dos movimentos de independência e do próprio camarada presidente.
Este
cidadão angolano, cujo verdadeiro nome se omite, convocou uma manifestação para
o dia 7 de Março de 2011, via internet, a partir da Namíbia, onde residia, sem
qualquer ligação a grupos angolanos. Estava a testar o que aprendera num curso
sobre a capacidade de mobilização através da internet.
Atemorizado
por essa brincadeira, o MPLA despendeu dezenas de milhões de dólares e recursos
do Estado na organização de uma contramanifestação, que ocorreu a 5 de Março de
2011. Foi chamada a marcha de um milhão a favor do presidente. Na altura, o
Bureau Político do MPLA acusou os serviços de inteligência do Ocidente, bem
como grupos de pressão em Portugal, Itália, França, Bélgica, Grã-Bretanha e
Alemanha, de serem as forças por detrás da convocação.
No
dia 7 de Março, apareceram cinco curiosos e três jornalistas, imediatamente
detidos, no Largo da Independência, em Luanda.
Em
Abril de 2011, o governo permitiu, sem violência, a realização de uma
manifestação pacífica.
Para
conter as tentativas de manifestação do mês seguinte, o governo começou a
aplicar métodos brutais contra os jovens. A Polícia Nacional, para além da
polícia política e da segurança militar, passou a ser apoiada também pelas
milícias pró-governamentais, formadas essencialmente por cidadãos do Congo
Democrático sob comando de Bento Kangamba, procedendo a actos de identificação
e agressão dos manifestantes.
Apesar
da violência e das prisões arbitrárias, os protestos prosseguiram a 3 de
Setembro de 2011. No total, 21 manifestantes foram não apenas espancados, mais
ainda condenados a penas de prisão de 45 a 90 dias. O dia do seu julgamento
sumário deu lugar a um outro protesto de solidariedade, às portas do tribunal,
onde 30 outros manifestantes foram detidos, brutalmente espancados e encarcerados
por dez dias.
O
MPLA realizou mais uma grande contramanifestação a 24 de Setembro,
desproporcional às dezenas de jovens que se tinham juntado.
Teimosos,
alguns dos manifestantes recém-libertados juntaram-se a outro protesto a 15 de
Outubro, que decorreu sem violência policial, após um compromisso com a polícia
em como não chegariam ao Largo da Independência.
Reactivo,
o MPLA embarcou noutra contramanifestação a 24 de Outubro, destinada a atrair a
juventude. Agastado pelas críticas que o acusam de ter organizado eventos para
embriagar a juventude com cerveja gratuita ou a preços simbólicos, para além de
uma boa selecção de músicos, o MPLA ofereceu maçãs, sumos e água mineral aos
jovens que acorreram ao evento.
A
3 de Dezembro, o pequeno grupo de manifestantes saiu outra vez à rua. Um total
de 14 pessoas foram severamente feridas pela acção brutal da polícia. Já com
pouco fôlego, o MPLA respondeu com um grande comício a 10 de Dezembro. Estive
no acontecimento. A presença dos militantes era compulsiva por via de listas
dos comités de acção e de alguns sectores da função pública. Depois da música,
os milhares de presentes praticamente abandonaram o secretário provincial do
seu partido, Bento Bento, que discursou para um terreiro vazio.
O
MPLA, com todos os meios do Estado à sua disposição, bem como a propaganda
ensurdecedora dos órgãos de comunicação social do Estado a seu favor, perdeu na
batalha das manifestações e contramanifestações.
Cabeças Partidas,
Assassinatos e Jacarés
Uma nova estratégia emergiu no combate aos manifestantes: Partir as cabeças dos cabecilhas, com barras de ferro, nas suas residências ou pontos de encontro longe do Largo da Independência.
A 9 de Março de 2012, os kaenches, armados com barras de ferro e protegidos por agentes da polícia política (SINSE), assaltaram a casa de Carbono Casimiro. Os kaenches atacaram os organizadores da manifestação que deveria ter lugar no dia seguinte e que aí se encontravam reunidos. Os atacantes causaram graves ferimentos nas cabeças de Santeiro e de Caveira, e menos graves a três outros.
No
dia seguinte, efectivos da Polícia Nacional olhavam para o outro lado enquanto
os kaenches, mais uma vez armados com barras de ferro, partiam as
cabeças de nove manifestantes. As fotos do Luaty Beirão, o brigadeiro Mata
Frakus, assim como do secretário-geral do Bloco Democrático, Filomeno Vieira
Lopes, com sangue a escorrer-se-lhes das cabeças, tornaram-se virais na
internet.
Camarada
presidente, o seu regime promoveu publicamente e legitimou estes actos de violência
através dos órgãos de comunicação social do Estado, em particular da TPA.
A 12 de Março de 2012, estes órgãos deram destaque a um
comunicado elaborado pela sua polícia política sob o suposto nome de Grupo de
Cidadãos Angolanos pela Paz, Segurança e Democracia na República de Angola.
Esse grupo, inspirado nos comunicados de organizações terroristas
internacionais, assumiu a responsabilidade pelo ataque e prometeu mais actos de
violência para defender “a paz, a segurança e a democracia em Angola”.
Dois
meses depois, a 23 de Maio de 2012, as milícias do seu governo, com protecção
policial, atacaram novamente a residência de Carbono Casimiro, onde se
encontravam reunidos alguns jovens que preparavam uma manifestação. Os
atacantes, armados com barras de ferro, partiram as cabeças de Mbanza Hamza, Gaspar Luemba e Jang Nómada
, para além de outros ferimentos causados a outros jovens.
O
camarada presidente, com o seu cinismo habitual, caucionou essa nova
estratégia.
Na
semana seguinte, a 27 de Maio de 2012, o sempre fatídico dia, elementos da
Polícia Nacional e do SINSE raptaram Alves Kamulingue nos arredores da Baixa de
Luanda. Fizeram-no para defender o camarada presidente. Alves Kamulingue tinha
estado a ajudar a organizar os antigos membros da Unidade de Guarda
Presidencial (UGP), que pretendiam manifestar-se nesse dia por terem sido
dispensados permanentemente sem pensões ou perspectivas de emprego na vida
civil. Dois dias depois, os mesmos operativos ao serviço do camarada presidente
raptaram Isaías Cassule, o outro cabecilha.
Como
já é do conhecimento público, os corpos destes jovens, assassinados pela sua
polícia política, foram servidos como alimento aos jacarés. Desde então, o
camarada presidente é conhecido, em surdina, como o Rei dos Jacarés.
Cassule
& Kamulingue ascenderam ao panteão dos mártires da pátria.
Com
essas mortes, os raptos e as ameaças de morte anteriormente protagonizados pela
polícia política, como nos casos de Pandita Nehru, Gaspar Luamba, entre muitos
outros,
tornaram-se
estratégias irrelevantes do poder, na psique das vítimas e daqueles a quem se
procurava infundir o medo. Também as estratégias de corrupção, infiltração,
intrigas e divisão dos grupos de jovens passaram a ser irrelevantes. Como se
neutralizam células de indivíduos que agem de forma desorganizada, anárquica,
em competição entre si, e sem um plano de acção para além do simples facto de
saírem à rua para atormentar a sua imagem?
Camarada
presidente, a 5 de Agosto de 2012, um acidente de viação, no Kwanza-Sul, causou
a morte de 23 adeptos do Kabuscorp do Palanca, o clube de futebol de Bento
Kangamba. Ficou-se a saber, a posteriori, que entre os mortos
constavam alguns kaenches afamados pelas agressões contra os
manifestantes. O camarada presidente endereçou publicamente as suas
condolências pela perda dessas vidas.
Em
desespero de causa, camarada presidente, a sua polícia política prendeu o então
menor de idade Nito Alves, de 17 anos, a 12 de Setembro de 2013, por ter
imprimido 12 camisolas em que o insultava como o “Ditador Nojento”.
Torturaram-no e mantiveram-no preso por dois meses, incluindo em regime de cela
solitária, atropelando todas as leis. Foi uma grande vergonha para si e para o
seu regime.
Nito
Alves tornou-se um herói. A esse propósito, o escritor José Eduardo Agualusa
escreveu: “Acontece que enquanto a cobardia de José Eduardo dos Santos nos
envergonha a todos, angolanos, a coragem do jovem Nito Alves nos salva e
enobrece.” Só os brutos apoiaram essa acção do seu regime, camarada presidente.
O
espírito assassino do seu regime descendeu sobre os que lhe são críticos mais
uma vez, para impedir um acto de solidariedade para com os mártires Cassule
& Kamulingue, a 23 de Novembro de 2013. Um membro da sua guarda
presidencial assassinou com um tiro nas costas, junto ao palácio
presidencial, o jovem político Manuel Heriberto de Carvalho Ganga. Manuel
Heriberto foi detido pela guarda presidencial por colar, nas paredes do Estádio
dos Coqueiros, cartazes que exigiam justiça no caso Cassule & Kamulingue.
Foi levado para a Unidade de Segurança Presidencial (USP) junto ao palácio, com
mais sete companheiros, onde foi executado com total impunidade.
Ganga juntou-se aos mártires. O seu cortejo fúnebre foi atacado pela PIR com gás lacrimogéneo. Camarada presidente, o seu regime atingiu o fundo da cobardia e da irracionalidade quando a mãe de Ganga e outros familiares permaneceram junto do caixão, inalando todo aquele gás. Soube que o pai do Ganga teve de ser hospitalizado, há dias, pronunciando constantemente o nome do filho. Essa família sofre em silêncio, sob vigia constante e aterradora da polícia política. O camarada presidente nunca enviou uma nota de pesar a esta família.
O camarada presidente tem autorizado, encorajado e beneficiado de todos esses actos criminosos.
Ganga juntou-se aos mártires. O seu cortejo fúnebre foi atacado pela PIR com gás lacrimogéneo. Camarada presidente, o seu regime atingiu o fundo da cobardia e da irracionalidade quando a mãe de Ganga e outros familiares permaneceram junto do caixão, inalando todo aquele gás. Soube que o pai do Ganga teve de ser hospitalizado, há dias, pronunciando constantemente o nome do filho. Essa família sofre em silêncio, sob vigia constante e aterradora da polícia política. O camarada presidente nunca enviou uma nota de pesar a esta família.
O camarada presidente tem autorizado, encorajado e beneficiado de todos esses actos criminosos.
Os
jovens manifestantes são uma amálgama de indominável coragem, teimosia,
incorrigível desorganização, anarquia, falta de estratégia e visão comum sobre
os objectivos da sua luta, competição entre si, e muitos infiltrados.
É contra esses jovens que o camarada presidente está a perder o que lhe resta de decência política. Eles estão a desgastá-lo e a provar a natureza violenta e delinquente do seu poder.
É contra esses jovens que o camarada presidente está a perder o que lhe resta de decência política. Eles estão a desgastá-lo e a provar a natureza violenta e delinquente do seu poder.
Com
o sacrifício dos seus corpos, que se transformaram em sacos de pancadaria da
sua tropa de elite, a PIR ou os “Ninjas”, estes jovens colocam a pátria acima
da sua dor pessoal. Com o sacrifício das vidas de Cassule, Kamulingue e Ganga,
estes jovens estão a desmoralizar, acto por acto, a coesão das suas forças,
camarada presidente.
Os
Ninjas, ao terem cometido, para além da tortura, o roubo do anel de casamento
de Adolfo Campos, estão a perder qualquer autoridade que lhes restasse sobre a
população.
Por
este andar, camarada presidente, essas forças serão pouco mais do que bandidos
com metralhadoras, gás lacrimogéneo, carros de assalto e instinto assassino.
Depois, os Ninjas hão-de querer os bens valiosos dos dirigentes do seu regime, os mandantes dos crimes que estão a cometer por ora. Hoje, roubam o anel de um manifestante, amanhã roubarão as jóias dos dirigentes, caríssimas e incrustadas com diamantes.
Depois, os Ninjas hão-de querer os bens valiosos dos dirigentes do seu regime, os mandantes dos crimes que estão a cometer por ora. Hoje, roubam o anel de um manifestante, amanhã roubarão as jóias dos dirigentes, caríssimas e incrustadas com diamantes.
É
o que acontece quando o poder banaliza os actos marcadamente delinquentes da
polícia. O poder ignora que esses agentes não vivem em condomínios de luxo, mas
no meio da pobreza, como filhos do povo que tanto aterrorizam.
Camarada
presidente, alguns destes jovens, como o Emiliano Catumbela, Raul Mandela e o
próprio Adolfo Campos já foram detidos e torturados inúmeras vezes. Mesmo que
os matem, outros mais sairão à rua.
Há
mais uma pergunta. Depois dos Ninjas, que forças de reserva o camarada
presidente tem para combater os jovens? Chamará os comandos? Chamará os
Chacais, a força de elite secreta que usa, de vez em quando, em missões
secretas no exterior do país?
O
caminho da violência poder ter um efeito contraproducente e virar-se contra si.
Camarada presidente, respeite a Constituição e a democracia e merecerá a compreensão e o perdão do povo. Deixe os jovens em paz.
Camarada presidente, respeite a Constituição e a democracia e merecerá a compreensão e o perdão do povo. Deixe os jovens em paz.
Oiça
a voz de quem o abomina como corrupto e autoritário, mas respeita a sua vida e
o abraça como compatriota.
Sem comentários:
Enviar um comentário