terça-feira, 24 de junho de 2014

Neste contexto e como opção, resta-lhes a delinquência. Reginaldo Silva




"O calar das armas foi conseguido a duras penas, numa altura em que novas guerras já se perfilam no horizonte imediato do país, sendo a crescente criminalidade urbana um dos sintomas mais preocupantes da explosão social latente (...)"

http://morrodamaianga.blogspot.com/

Esta constatação saiu-nos da lavra há 9 anos, mais exactamente em Agosto de 2005, quando nos associamos ao 10º aniversário da AJECO, para falar do jornalismo e dos desafios económicos e sociais de Angola.
De lá para cá, como é fácil de concluir, as coisas, pelo menos em Luanda onde vive mais de um quarto da nossa população, só se têm estado a agravar.
A tendência é preocupante o que quanto a nós deve atirar a nossa atenção antes de mais, para os resultados do modelo económico que está a ser implantado em Angola.
Não estabelecer este relacionamento é o primeiro sintoma de um "autismo" que já faz morada entre nós, onde alguns "cientistas sociais" se confundem muitas vezes com "militantes sociais", o que também não tem ajudado muito o país  a identificar problemas e a definir prioridades.
Valorizando na medida do possível todas as abordagens sociológicas sobre as causas da criminalidade em tese e na prática, algumas das quais tivemos a oportunidade de acompanhar no último "Debate Livre" da Zimbo, não temos qualquer dúvida em identificar, no caso angolano, a pobreza/miséria/exclusão social como sendo a principal.
A algumas milhas ficam todas as outras, que não devendo ser ignoradas, têm de ser necessariamente colocadas no seu devido lugar, sob pena de estarmos a confundir os alhos com os bugalhos.
A causa principal do aumento da criminalidade  mais violenta em Angola está devidamente localizada e de nada adianta estarmos a pintar a manta ou andarmos as voltas com outras "minudências". 
Por este trilho, até podemos conseguir amealhar uns pontos no debate e melhorar a nota na consideração de quem nos observa.
Em abono da verdade, esta recusa em olhar de frente, e com olhos de ver, para a dura realidade circundante não vai resolver nada por isso é que as coisas se estão a agravar.
A questão da ausência da família como pilar da sociedade ou da sua desestruturação, é ela própria já uma consequência da fragilidade sócio-económica que caracteriza o quotidiano da maior parte da população que vive na capital.
Como é que um pai pode exercer a sua autoridade familiar sobre a sua prole, se ele não consegue nem suprir as necessidades básicas dos seus filhos, que são cada vez mais exigentes, como consequência de toda a informação que absorvem sobre a "dolce vita" cá dentro e lá fora.
Neste contexto e como opção, resta-lhes a delinquência.
Oficialmente e no âmbito da actual estratégia de comunicação, tem-se estado a dar algum destaque às estatísticas que apontam para uma melhoria dos preocupantes  índices do nosso raquítico desenvolvimento humano (IDH), como o aumento da esperança média de vida, a redução da taxa de pobreza e da mortalidade materno-infantil.
Do lado das autoridades policiais e no âmbito da mesma estratégia, a utilização das estatísticas que supostamente reflectem uma redução da taxa da criminalidade, parece corresponder apenas a necessidade de contrariar politicamente o desgaste que a imagem do Executivo tem estado a sofrer com o noticiário mais "sangrento".
Nos últimos dias este noticiário voltou a chocar a sociedade luandense e muito particularmente a extensa comunidade católica com o violento assalto registado segunda-feira na Igreja de Santo António de Kifangondo do qual resultou o ferimento do pároco local e o roubo de todos os valores que os peregrinos haviam deixado por ocasião da romaria anual feita ao santuário.
No âmbito desta estratégia, a comparação da realidade angolana com o  que se passa noutros países é um outro recurso muito utilizado pelas fontes policiais e todos os "spin doctors" de serviço, quando se trata de tentar desdramatizar a realidade do crime violento em Angola.
O problema de todas estas estatísticas, é que elas acabam por ser de facto "autísticas", porque têm por base apenas as ocorrências/participações registadas pelas  esquadras e outras instituições similares.
Como é evidente, a maior parte das ocorrências/incidências deste "mercado" que está quase a virar "industria", segundo o sociólogo João Paulo Nganga, não chegam ao conhecimento de quem de direito, pelo que acabam por não ser reflectidas e muito menos traduzidas.
Esta evidência repousa, entre outros aspectos, na limitada cobertura policial de uma cidade que todos os dias engorda mais umas "casas" e todos os meses cresce mais uns "bairros".
Por outro lado há um conjunto muito substancial de incidências que muito dificilmente podem ser reflectidas nas estatísticas, mas que contribuem e de que maneira para o crescimento deste "mercado" feito de muito medo,  muita insegurança e muita improdutividade.
Quando as pessoas dizem que há recolher obrigatório no bairro provocado pela criminalidade, quando o comércio tem de fechar mais cedo, quando os transportes desaparecem, estes são "invisíveis correntes" que a estatística oficial não quer saber ou não quer valorizar devidamente na avaliação da criminalidade, mas que pesam e como pesam nas contas finais.
Por isso vivemos numa situação de bicefalia, com dois países a coabitarem no mesmo território.
O país oficial e o país real. O primeiro todos conhecemos mais ou menos bem. Do segundo todos temos uma ideia mais ou menos vaga. 
NA-Texto publicado no "PAÍS/Revista Vida/Secos e Molhados (20/06/14)"

Imagem: autor desconhecido

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