sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Ocidente do Paraíso (2). Com os meus infantis cinco anos a minha mãe mandou-me comprar fósforos


Capítulo I
Resplandecer

Tramagal, Portugal, 1954.

Quando em crianças, vivemos num mundo de fadas, duendes, na magia de outra dimensão. Pela convivência com estes actos, os adultos estão sempre próximos de nós porque acreditam que não temos a noção do que fazemos. E quando eles se afastam surgem as tragédias da nossa irracionalidade que poderiam facilmente serem evitadas.

Com os meus infantis cinco anos a minha mãe mandou-me comprar fósforos na mercearia próxima. No regresso, e já próximo da minha casa havia uma sebe com considerável volume de vegetação seca que delimitava a propriedade de um agricultor de terrenos vastos. Deu-me para pegar nos fósforos e atear fogo à vegetação para ver como era, mas com o cuidado de o apagar assim que as chamas ganhassem vida. Peguei-lhe fogo por duas ou três vezes e consegui apagar as chamas. Então experimentei vê-lo mais tempo a arder. As chamas alastravam, tentei apagá-las, mas de repente veio vento mais forte e o reino das chamas revelou-se com grande intensidade.

O incêndio descontrolou-se. Fugi com alto pânico e apresentei-me perante a minha mãe com ar de anjo. A tremer de medo entreguei-lhe os fósforos. Mas já se sentia muito bem o cheiro a queimado. A minha mãe olhou-me desconfiada ao mesmo tempo que observava a caixa de fósforos onde facilmente se notava que tinha sido utilizada. Rapidamente compreendeu. Entretanto as chamas aproximavam-se da nossa casa, e algumas pessoas com baldes de água e outros apetrechos de ocasião afligiam-se, lutavam contra o incêndio.

Com muito trabalho conseguiram finalmente extinguir as chamas. Nunca ninguém conseguiu saber o porquê do mistério do incêndio, porque a minha mãe guardou silêncio. Receei que ela me mataria de porrada mas não. Limitou-se a olhar para mim durante um tempo que me pareceu nunca mais acabar, e percebi que ela estava muito preocupada, talvez a pensar que o seu primeiro filho não batia bem da cabeça.

Numa área considerável de terreno contíguo à nossa casa, a minha mãe cultivava feijão verde. Eu ajudava-lhe na rega mantendo os canais da água sempre limpos, livres de obstáculos de tal modo que quando despejava água, ela circulava livremente e alimentava, chegava a todo o plantio. E o verde feijoal crescia, desenvolvia-se muito rápido. Como não havia ninguém que brincasse comigo, passava grande parte do tempo no que para mim já era uma pequena floresta cheia de gnomos verdes. Até que tive uma ideia.

Decidi arrancar todas as vagens e escondê-las. Não sem antes desfazê-las em pequenos bocados. Para isso abri alguns buracos na terra e nela enterrei tudo. Assim iria fazer com que a minha mãe descobrisse que mistério seria aquele. Como é que as vagens tinham desaparecido misteriosamente. A minha mãe surpreendeu-me porque muito rápido desvendou a cabala. Sem sequer me indagar fosse o que fosse, foi buscar um chinelo daqueles de madeira e desancou-me barbaramente. Não fosse a vizinha acudir-me, acho que o meu corpo ficaria bem amassado. E ela insistia, garantia:
- Eu mato-o! Eu mato-o! Ficámos sem comida. Esse maldito filho destruiu tudo, incluindo a parte que também era para vender.

Pelo sim pelo não, a minha única vizinha achou por bem levar-me para sua casa, e por lá ficar até que a minha mãe se resignasse, se tranquilizasse.
No dia seguinte a minha mãe resgatou-me e levou-me para o seu aconchego. O estado de sítio terminara e quase tudo voltou à normalidade. Uns dias depois seguia tranquilo na segurança de uma das mãos da minha mãe, quando vi uma cobra grande entrar no buraco de uma grande, velha e meditativa oliveira que vivia a escassos metros frente à porta da nossa casa.

Image: http://tramagal-geocaching.blogspot.com/2009/10/festas-do-15-de-agosto-de-1954.html

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