terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A Ocidente do Paraíso (4). É que as coisas vão revolucionando até a pressão rebentar com a caldeira.


- Trago esta comida para vocês, devem estar esfomeados!
- Obrigada minha mãe.
A minha mãe chamou-me para comer. A comida era couve verde cortada aos pedaços cozida com farinha de milho. Comi até não poder mais. Senti-me muito feliz por estar de barriga cheia, e por ter uma avó que não me deixava passar fome.

O meu pai era caixeiro-viajante, percorria Portugal de lés a lés. Transportava amostras de artigos de cordoaria. Tentava obter encomendas para o seu patrão. Deslocava-se numa motorizada até que teve um acidente do qual sofreu várias escoriações. Como o patrão não lhe pagava – e daí a nossa fome – vivíamos na miséria. Nunca recebeu qualquer indemnização pelo acidente.

O meu pai decidiu não mais viajar… e regressou para casa sem um tostão. Curioso é notar que estas injustiças ainda continuam ou até se exacerbaram. Hoje continua vulgar a política de não pagar aos trabalhadores com o apoio discreto ou não de governos que obtêm dádivas muito substanciais do patronato e organizados em confrarias do mal. Governos onde vivem à solta, acobertados em regimes ditos democratas que são autênticos facínoras. Até a imprensa livre conseguem silenciar. Assim não dá. É que as coisas vão revolucionando até a pressão rebentar com a caldeira. Ainda há uma longa caminhada a percorrer ao reencontro dos caminhos da Liberdade.

O meu pai chegou quase como um desconhecido para mim devido às suas longas ausências. A partir daí para onde ele ia eu acompanhava-o sempre. Depois de contar as peripécias porque passou à minha mãe, das quais eu não entendia nada, apenas queria estar ao seu lado. Tudo o mais não me interessava.
No outro dia fui com o meu pai e dois amigos dele à pesca das enguias no rio Tejo. Apanhámos muitas, e quando chegámos a casa a minha mãe fritou algumas e gostei. Estavam muito saborosas.

Depois a fome veio outra vez. A minha mãe levou-me para um ribeiro mais conhecido pelo ribeiro do Caldeirão, onde habitualmente ia de vez em quando com a roupa acumulada para lavar. O trajecto era distante e enquanto ela lavava eu passava o tempo a investigar as margens do ribeiro. Fazia algumas caminhadas e num local de águas mais fundas nadavam muitos peixes, alguns de apreciável tamanho.

Ficava vários minutos a observá-los e tentava apanhá-los com as mãos, mas depressa descobri que escorregavam facilmente. Então tive uma ideia. Peguei nalgumas pedras e quando os peixes maiores se aproximavam da superfície, com muita força atirava-lhes uma pedra… e consegui apanhar três. Quando regressei e mostrei à minha mãe o que trazia, ela não queria acreditar.

No outro dia pela manhã disse-me que o meu pai antes de sair comeu um e os outros dois ficaram para nós. A minha mãe confessou-me que o meu pai se surpreendeu com o meu feito, e que até comentou com os seus amigos. Cheio de orgulho o meu pai levou-me à presença do seu circulo de amizades e disse-lhes:
- Nunca mais chove!
Ao que eles corroboraram:
- Sim, nunca mais chove!
Senti-me um pequeno herói.

Imagem: http://tramagal-geocaching.blogspot.com/2009/10/festas-do-15-de-agosto-de-1954.html


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