terça-feira, 28 de outubro de 2008

A origem da grande depressão de 2008 (VI). Novela


Não tenhamos ilusões: entre nós, não há nem neo-liberalismo nem capitalismo regulado, temos, sim, um capitalismo de bairro, onde só se sentam à mesa amigos, fiéis e cúmplices, quer sejam nacionais ou estrangeiros, com uma mão invisível a comandar tudo, a partir da bolinha de cristal...
In Justino Pinto de Andrade, citado em
Wilson Dadá no Morro da Maianga


As treze horas passaram, a fome apressou-se. Abri a arca e escolhi a sardinha portuguesa para assar. Estava a retirá-las da embalagem quando me lembrei que não havia luz. Recoloquei-as no lugar. Abri o frigorífico e optei por barras de queijo com presunto, a que juntei algumas azeitonas e fatias de pão. Fui à despensa e deparei-me sorridente com as olímpicas garrafas do maravilhoso vinho Dão. Seleccionei uma Dão Meia Encosta tinto.

Acabei de comer e esvaziei o resto do Meia Encosta. Senti pouco depois uma agradável sonolência. Levantei-me e fui ver a filmoteca. Havia muitos filmes em CD. Procurei um que me agradasse. Lembrei-me novamente que não havia luz. Acendi um cigarro e fui para a varanda contemplar a rua.

A rua estreitava-se ladeada por inúmeras vivendas. O prédio onde me encontrava marcava o início da rua. Havia outro em frente com o chão esburacado junto a uma caixa de iluminação, onde jazia um cabo eléctrico. Um monte de terra proveniente do buraco escavado ocupava um terço da via. Grande parte do asfalto necessitava de conservação. Via-se pouca gente, apenas algumas crianças jogando basquetebol e tentando acertar numa circunferência metálica improvisada.

Bocejei duas vezes. Senti sono e fui sentar-me no sofá da sala. Não sei o que a minha esposa e filhos estariam agora a pensar de mim. Tenho que lhes enviar um e-mail o mais rápido possível... Tratarei disso mais tarde. – Pensei.
Adormeci profundamente. Despertei com o som do telemóvel, estas máquinas chatas que inventaram. Para dormir o melhor é desligá-las. Só pode ser o Elder, quem mais há-de ser?
- Alô! Alô!
- Sim, boa tarde. – Disse a voz do outro lado.
- Boa tarde, quem fala? – Interroguei.
- Meu amigo branco, é o Malcolm X.
- Malcolm X (!)
- Sim, o jovem que esteve consigo esta manhã. Tenho uma coisa para lhe oferecer. Diga-me onde posso encontrá-lo.
Caramba… com esta não contava. Encontrar-me ou fazer amizade com um bandido não estava nos meus planos desta aventura. Mas se ele me quisesse fazer algum mal… assaltar-me, teve essa oportunidade e não o fez. Decidi arriscar mas com muito cuidado. Lembrei-me da localização que o Elder me deu.
- Estou aqui junto à Liga Nacional Africana.
- Já sei, fica ao pé do Zé Pirão.
- No início da rua tem um buraco com um cabo eléctrico solto.
- Daqui mais ou menos a uma hora estou aí.

Dentro desse período de tempo começaria a escurecer. Não sei o que os vizinhos pensariam de mim. Um europeu acabado de chegar a fazer amizade com um bandido. Meto-me em cada alhada. E o nome dele… Malcolm X.

Lembrei-me dos vários CDs que trouxe sob os mais variados assuntos que pesquisei na Internet e neles gravei. Um deles tinha esta personagem. Conhecia-o não com suficiente profundidade. Olha… a luz chegou, óptimo. Liguei o computador e coloquei o CD na bandeja. Carreguei no botão à direita e o CD desapareceu como numa morgue. Procurei nos arquivos e lá estava. Teclei imprimir e preparei as folhas aguardando pelo angolano. Quando ele chegasse decerto me ligaria a anunciar a sua presença.
Dito e feito, já estava no local combinado.

Malcolm X trazia um embrulho que mostrava o formato de uma garrafa. Disse-me:
- Amigo branco, trago-te uma prenda, uma garrafa de uísque.
Agradeci-lhe e disse-lhe que não era necessário tal incómodo. Ao que ele replicou:
- Não é incómodo nenhum, não me custou nada… roubei-a.
A vida dá cada volta. Não há dúvida que estou mesmo metido numa grande alhada. – Meditei.
Devia ter vinte e poucos anos. Era um pouco forte, altura média, cabelo rapado. Vestia um blusão negro, onde se liam: BLACK POWER e MALCOLM X. Parecia-me bastante preocupado:
- Vamos para aqui… mais discretos. Tenho que me esconder… podemos sentar-nos atrás destes carros.
Atrás deles havia um pequeno degrau que se estendia até à entrada do prédio. E por norma surge sempre a pergunta que nós mais velhos fazemos aos jovens.
- Trabalhas?
Respondeu a rir, a troçar.
- Trabalho?! Onde é que isso existe?! Arranjas-me trabalho?!

Gil Gonçalves
Imagem: http://thereport.amnesty.org/prt/Regions/Africa/Angola

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