Maputo (Canalmoz/Canal de Moçambique) - O tristemente célebre “sistema de reeducação”, que o regime da Frelimo pretendia que servisse de modelo prisional da nação moçambicana independente, caracterizou-se desde sempre por atropelos flagrantes à lei e ao desprezo pelos mais elementares direitos humanos consagrados em diversos instrumentos jurídicos. A reeducação começou por servir de capa de execuções sumárias decretadas por uma certa ala da Frelimo a partir de 1966, prática denunciada no seio da própria Frente de Libertação de Moçambique e que continuou depois de 25 de Junho de 1975, arrastando como corolário o nome do Estado moçambicano para os corredores de instâncias jurídicas internacionais onde algumas das vítimas começam agora a fazer valer os seus direitos em processos em curso.
Muitos dos “campos de reeducação” surgidos formalmente após a independência já vinham a funcionar como centros prisionais nas zonas controladas pela guerrilha da ala que se guindou ao poder na FRELIMO. Funcionavam em Cabo Delgado e no Niassa. Era aí que se executavam guerrilheiros, quadros dirigentes, e foi para aí e para vários outros redutos criados após a independência, que milhares de cidadãos foram desterrados, à revelia dos tribunais. Os familiares de muitas dessas vítimas continuam até hoje sem saber do seu paradeiro. Os familiares das vítimas dos ditos “Campos de Reeducação” desconhecem ainda hoje onde estão os restos mortais dos que foram assassinados por quem o mundo dito civilizado hoje aplaude fazendo-se esquecido de que por aqui também ainda existem khmers.
Os “campos de reeducação”, ou “laboratórios da criação do homem novo” como os designava Samora Machel, funcionavam ao arredio de instituições judiciais. Quem para lá era enviado, não beneficiava de qualquer protecção legal – estava à mercê de funcionários do Departamento de Segurança da Frelimo e do Ministério da Segurança-SNASP sem qualquer preparação para o cargo que o regime atabalhoadamente lhes atribuía. O jurista Mário Mangaze chegou mesmo a denunciar publicamente que o Ministério Público, os tribunais, e o próprio Ministério da Justiça tinham o acesso vedado a esses campos da vergonha, situação agravada pela decisão do regime em banir a actividade da advocacia no nosso país. Quanto muito, as vítimas do sistema de “reeducação” estavam à mercê daquilo que a jurista Lúcia Maximiano descreveu como “pessoas sem um mínimo de idoneidade moral” e sem capacidade para “fazer uma reflexão mínima e de pensar que exerciam a defesa como um acto fundamental”. E à luz do estatuto orgânico do SNASP – o famigerado Decreto 21/75, descrito pelo jurista João Trindade como “uma monstruosidade jurídica – as vítimas do regime eram despachadas para os redutos do Niassa e Cabo Delgado por decisão exclusiva desse tenebroso serviço que se substituía ao Ministério Publico e aos Tribunais, com a agravante desse documento, tornado lei pelo punho do então verdugo, negar às vítimas as disposições contidas no Artigo 315° do Código do Processo Penal.
Como que a pretender sacudir a água do capote, o próprio Samora Machel admitiria em comício que as práticas de que tivera conhecimento serem norma no “campo de reeducação” de Ruarua lhe causavam indigestão por ser como “palha no estômago”. Porventura, ter-se-á sentido eternamente empanzinado com as práticas, que certamente não desconhecia, correntes em M’telela, um dos mais famosos campos da morte apelidados cinicamente como tantos outros de “campos de reeducação”.
Contam as vítimas que passaram por Ilumba, outro “campo de reeducação” do Niassa, que aquando da visita efectuada pelo então ministro do Interior em Abril de 1976, este deu instruções ao comandante do campo para executar sumariamente todos quantos tivessem a ousadia de dali fugir.
Em Mswaíze, também no Niassa, o sistema de “reeducação” desumanizava a mulher, transformando-a em besta de carga, submetida à violência do trabalho forçado de sol a sol e privada de cuidados médicos e alimentação condigna.
No “campo de reeducação” de Naisseko, na mesma colónia penal do Niassa, amarravam-se Testemunhas de Jeová com cordas embebidas em sal, o que inutilizou os membros superiores de muitas das vítimas.
Do campo de Sacuzo, este na Gorongosa, em Sofala, saíram os que iniciaram a guerra pela democracia, que alguns se recusam a reconhecer como Guerra Civil tentando enganar-nos com a doce verborreia de Guerra de Desestabilização. Ali vimos com os nossos próprios olhos como homens sem escrúpulos conseguem tratar outros seres semelhantes. Qual Hitler! Quais Khmers! Qual Coreia do Norte!
Não obstante esta amarga realidade de um sistema inspirado em modelos que criminosos puseram em prática nos Gulags soviéticos e nos campos da morte do Camboja, eis que o governo da Frelimo mostra-se disposto a reintroduzir a “reeducação” stalinista no ordenamento jurídico nacional, a julgar pelo discurso proferido há dias pelo primeiro-ministro, Aires Ali, na Conferência Nacional sobre a Reforma do Sistema Prisional decorrida a semana finda.
Homem do Niassa, província que ficará para sempre ligada à história da violação dos direitos humanos no nosso país, Aires Ali devia ser o primeiro a pôr travão aos caprichos dos seus pares que pretendem o regresso de um sistema que deixou um rasto de tragédia, dor, sofrimento e rancor por toda a parte onde foi posto em prática.
Pretender que a amarga realidade dos “campos de reeducação” “constitua fonte de experiência para o desenvolvimento do sistema prisional do país” é fazer tábua rasa da tragédia associada a esses redutos da morte, da tortura, da desumanização, da humilhação e da negação da pessoa humana. Mais: é fazer chacota dos familiares que perderam filhos, pais, irmãos, a mais variada gama de parentes e amigos em relação aos quais o regime da Frelimo nunca teve a hombridade de os reconhecer como vítimas de uma política execrável, a todos os títulos errada e que o Mundo civilizado há muito pôs de lado.
A catarse não se alcança lamentando o encerramento desses antros da morte, mas antes contabilizando os danos morais e materiais infligidos às vítimas e aos seus entes queridos, compensando-os pelo menos com a devolução dos seus despojos e assumindo o compromisso de não voltar a prevaricar.
No mínimo, gente civilizada, a que nos associamos, deve exigir, pelo menos um pedido de desculpas público por tais práticas que estiveram na origem da Guerra Civil a que os arautos da desinformação, que até estiveram ligados a tais crimes de Estado, preferem chamar de Guerra de Desestabilização.
Um Governo que se pretende responsável não pode de maneira alguma voltar a falar em “campos de reeducação”. Não foram mais do que campos de morte muito semelhantes aos de Hitler, de Staline, de Pol Pot, de Kim Il Sung e de Kim Sun Il.
Desaprovamos qualquer tentativa de fazer regressar sangue à nobre terra de todos nós. Não podemos voltar atrás.
Por isso aqui dizemos em maiúsculas e determinadamente: NÃO AO REGRESSO DOS CAMPOS DA MORTE!
CAMPOS DE REEDUCÃO NUNCA MAIS!
Gostaríamos antes de ver Aires Ali, como um homem do Niassa – terra que sabe o que é sofrimento – a recusar-se a reeditar o passado e a assumir o posto com a dignidade que o seu Governo tanto e insistentemente apregoa.
Gostaríamos de ouvir Aires Ali, na sua qualidade de Primeiro-ministro, a pedir desculpa aos filhos e parentes das vítimas que em espírito ainda aguardam pela entrega dos seus despojos às famílias.
Se fosse capaz de ter esse nobre gesto (será que tem poderes para isso ou é apenas um PM verbo de encher?) contribuiria para que se acreditasse que quem ele próprio não se cansa de apoiar, de facto se reeducou.
Que legitimidade pode ter quem como Estado já matou sem respeitar os mais elementares Direitos Humanos, para vir agora falar outra vez de reeducação. Quem reeduca quem?
Só nos faltava ouvir uma destas em pleno século XXI.
Era o mesmo que agora virem os Khemers e outros fascistas dizerem-nos que estamos a precisar de ser reeducados.
Francamente, Senhor Primeiro-ministro. Haja o mínimo de vergonha! (Canal de Moçambique)
2010-10-15 08:43:00
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