Por Rafael Marques de Morais
O
Ministério da Comunicação Social (MINCS) tem estado a financiar a Rádio
Ecclesia, mas o governo não autorizou ainda o reconhecimento jurídico da
emissora, que foi devolvida à Igreja Católica em 1997.
Em
simultâneo, neste último ano, a Rádio Ecclesia despediu vários
jornalistas, cancelou programas sem olhar a audiências, e avolumam-se as
acusações de censura contra a actual direcção.
Patrocínio Estatal
O
Maka Angola teve acesso a dois documentos comprovativos de uma
ordem de saque do Ministério das Finanças, no valor de cinco milhões de kwanzas
(US $50,000) a favor de uma conta da rádio, no Banco de Fomento de Angola. A
verba é descrita como “apoio do MINCS à Rádio Ecclesia”.
O
director-geral da Rádio Ecclesia, padre Quintino Kandanji, declarou ao Maka
Angola que tem recebido apenas apoios pontuais do Ministério da
Comunicação Social. “Fiz um pedido [ao MINCS] de cinco milhões de kwanzas para
a festa da rádio, no final do ano passado, foi isso.”
Sobre
a regularidade do apoio e os valores totais envolvidos, o padre justifica-se
com um sorriso: “Gostaríamos de ter esse apoio. A Miseror, [uma instituição] da
Conferência Episcopal Alemã, é quem paga os salários dos nossos trabalhadores.
Temos apoios pontuais do ministério apenas.”
Segundo
o director da rádio, o relacionamento com o MINCS tem sido “o de buscar
caminhos para resolvermos o problema da rádio”.
Por
sua vez, o director nacional de Informação do MINCS, Rui Vasco, confirmou ao Maka
Angola a cabimentação regular de verbas à Rádio Ecclesia, sem
especificar montantes.
Rui
Vasco esclarece que o Ministério não presta apoio mensal à Rádio Ecclesia:
“É à medida da disponibilidade orçamental e em satisfação aos pedidos que nos
chegam.” E afirma ainda que há parceiros que não aceitam apoio governamental
por julgarem que o mesmo pode comprometer a sua independência editorial. “O que
concedemos não é uma ajuda, mas o cumprimento de um dever do Estado”,
acrescenta Rui Vasco.
Segundo
este interlocutor, a iniciativa enquadra-se no dever do Estado de fomentar a
comunicação social privada. “Apoiamos a comunicação social de uma forma geral”,
diz Rui Vasco. “Se perguntar aos outros órgãos de informação privados verá que
também beneficiam de apoios”, enfatiza.
Rui
Vasco reforça a ideia de que o apoio do Estado à Rádio Ecclesia a tem
motivações benignas: “Não há contrapartidas. Não somos um balcão onde se
processa o toma lá dá cá. Não é compra. O apoio está documentado em ordens de
saque. É transparente porque sai do Orçamento Geral do Estado.”
Sobre
o carácter discreto dos referidos apoios, o director nacional afirma: “Nós
fazemos mais do que falamos. Não somos como os americanos, que, para concederem
um cheque de US $5,000 a uma instituição têm de chamar a televisão. Isso é
humilhante.”
Questionado
se também recebe apoios do Ministério da Comunicação Social, o director da Rádio
Despertar é categórico: “Nós não recebemos qualquer apoio do governo. Se é
um direito para todos os órgãos privados, então vou já pedir uma audiência ao
ministro para solicitar o que nos é de direito.”
O
representante do Instituto dos Mídia da África Austral (MISA-Angola), Alexandre
Solombe, reclama o facto de o governo, “até agora, não ter estabelecido os
critérios legais de incentivo aos órgãos privados de informação, em
conformidade com o Artigo 15 da Lei de Imprensa”.
Segundo
Alexandre Solombe, os critérios passam pela regulamentação da Lei de Imprensa:
“O chefe do Executivo, o presidente José Eduardo dos Santos, continua a violar,
desde 2006, o postulado do Artigo 87 da mesma lei, ou seja, a regulamentação da
lei no prazo máximo de 90 dias após a sua promulgação.” O presidente promulgou
a lei a 28 de Abril de 2006.
Linhas editoriais
da Rádio Ecclesia
A
Rádio Ecclesia foi confiscada pelo governo em 1977, só retomando as suas
emissões, em Frequência Modelada (FM), passados 20 anos.
Tornou-se
na emissora líder de audiências em Luanda. No auge da popularidade da Rádio
Ecclesia, em 2004, o então ministro da Comunicação Social, Hendrick Vaal
Neto, acusou a emissora de praticar “terrorismo de antena”. Os ouvintes adoptavam-na
como a “rádio do povo”, e a Igreja orgulhosamente assumia que a sua era a
“rádio de confiança”.
Agora,
a história é outra. Despedimentos colectivos de jornalistas e alterações
profundas na linha editorial têm animado várias análises sobre o que terá
acontecido à rádio que em tempos liderou as audiências.
Em
Agosto e Dezembro passados, a direcção da Rádio Ecclesia despediu mais
de 10 profissionais, entre os quais Abílio Cândido, Adriano Kubanga, Agostinho
Gayeta, Hélder Luandino, Mayama Salazar, Manuel Augusto e Matilde Vanda.
Actualmente, a rádio funciona com uma redacção reduzida a nove jornalistas. A
direcção da rádio alega falta de fundos e indisciplina como causas de
despedimento. Alguns jornalistas contra-alegam que foram despedidos pelo facto
de terem um sentido crítico mais apurado.
Emissora Fantasma
ou do Governo?
O
apoio governamental à emissora católica é também controverso na medida em que o
Estado continua a não reconhecer juridicamente aquela instituição.
O
padre Quintino Kandanji refere que a proprietária da rádio, a Conferência
Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), tem discutido com o governo sobre a
resolução do limbo jurídico em que a rádio se encontra.
“A
Rádio Ecclesia nem sequer tem escritura pública. Não temos certidão de
empresa”, declara.
O
padre Quintino Kandanji conta que, nos seus encontros com o Ministério da
Justiça e dos Direitos Humanos, para tratar da escritura da rádio, lhe foi
solicitada cópia do Diário da República com o decreto governamental
sobre a devolução da emissora à Igreja Católica.
“Mas,
o governo devolveu a rádio à igreja sem que a decisão do Conselho de Ministros
tivesse sido publicada em Diário da República. Não há esse decreto de
confirmação em Diário da República”, explica o director da emissora.
“Nós
nem sequer podemos importar meios porque não temos os protocolos oficiais de
empresa”, prossegue, acrescentando que a rádio continua a funcionar com uma
licença provisória: “Até hoje não temos nada oficial.”
A
18 e 19 de Fevereiro de 1992, o Conselho de Ministros discutiu sobre o
“Projecto de Decreto que anula a decisão que nacionalizou as instalações da Rádio
Ecclesia ”, decidindo então pela devolução das instalações à Igreja
Católica. O governo comunicou a sua decisão à Igreja Católica a 26 de Fevereiro
do mesmo ano, mas o decreto nunca foi publicado em Diário da República,
o que o tornou legalmente nulo.
Passado
mais de um ano, a 30 de Setembro de 1993, o ministro da Comunicação Social,
Hendrick Vaal Neto, emitiu um despacho autorizando a Rádio Ecclesia “a
realizar as suas emissões em Frequência Modulada, Onda Média e Onda Curta”. O
despacho funcionava como uma licença, uma vez que nele se podia ler: “Substitui
para todos os efeitos legais o Alvará Provisório.”
Sobre
o assunto, o director nacional de Informação, Rui Vasco, sublinha que o MINCS
“está a trabalhar bem com a CEAST para conferir toda a legalidade a esse
processo”.
De
então para cá, o governo tem demonstrado a facilidade com que dispõe do
ordenamento jurídico para dar com uma mão e retirar com outra. Ou seja, o
governo entregou a Rádio Ecclesia, no plano material, mas conserva-a,
como sua propriedade, no plano jurídico.
Rádio Despertar Acorda
O
Maka Angola soube que a Rádio Despertar se encontra em situação jurídica
similar à da Rádio Ecclesia.
“Tentámos
abrir uma conta bancária e não foi possível, porque não temos escritura
pública”, revela o director-adjunto da Rádio Despertar, Anastácio
Queirós Chilúvia.
Em
2004, o Ministério da Comunicação Social concedeu um Alvará Provisório à
empresa proprietária da rádio, a Academia Politécnica Lda., “exclusivamente
para o licenciamento técnico das instalações e equipamentos do sistema emissor
da Rádio Despertar pela entidade competente”. Por sua vez, essa
entidade, o Instituto Angolano de Telecomunicações (INACOM), consignou, a 22 de
Dezembro de 2004, a frequência 91,0MHz à Rádio Despertar, a fim de “não
inviabilizar ou causar atrasos no processo de fabrico do equipamento destinado
à estação de radiodifusão”.
Segundo
a nota do INACOM, de 2004, “o curso normal de aprovação do respectivo projecto
técnico, bem como do posterior licenciamento da estação referida, fica pendente
de esclarecimento complementar respeitante às questões oportunamente
colocadas”.
No
plano material, o governo cumpriu com a parte referente aos Acordos de Paz,
assinados com a UNITA. A Rádio Despertarr sucedeu à antiga Voz do
Galo Negro (Vorgan), num figurino comercial e tutelado por uma empresa
privada. Mas juridicamente a rádio por enquanto não existe.
A Voz Calada do
Povo
Para
além da questão jurídica, o governo tem apresentado argumentos ora legais ora
técnicos que impedem a expansão do sinal da Rádio Ecclesia pelas províncias,
através de rádios diocesanas.
Várias
instituições internacionais, algumas ligadas à Igreja Católica, prestaram, em
anos passados, apoio financeiro e material, avaliado em vários milhões de
dólares, para a expansão da Rádio Ecclesia na maioria das 18 províncias.
Recentemente,
em entrevista ao semanário O País, o presidente da Conferência Episcopal
de Angola e São Tomé (CEAST), D. Gabriel Mbilingue, afirmou que o receio do
governo em relação à autonomia e à expansão da rádio reside nos debates em
directo, com a participação dos ouvintes.
“Aquilo
que sempre criou problemas, não nos iludamos, são os debates”, assegurou o
arcebispo do Lubango.
Segundo
D. Mbilingue, “se há algum temor, talvez seja disto – aqueles programas
radiofónicos que interagem com o cidadão na rua e sobre isso não temos controlo
nenhum”.
Censura
Sob
a direcção do padre Quintino Kandanje, nomeado em Outubro de 2011, os
jornalistas passaram a queixar-se com maior frequência de actos de censura
directa.
“Enquanto
exerci as funções de editor, muitas vezes o padre Kandanji vinha dar-me ordens
sobre o que tinha de ser censurado. Ele não justifica. Diz apenas ‘não
convém’”, explica Agostinho Gayeta.
Como
exemplo, Agostinho Gayeta citou uma entrevista do representante do MISA –
Angola, Alexandre Solombe, sobre as dificuldades do exercício da liberdade de
imprensa em Angola. “O padre [Kandanji] não esconde. Ele censura directamente.
Foi à redacção e disse ‘isso passa, isso não’, pronto”, explica o interlocutor.
Ao
nível da direcção, a rádio conta com um director de informação, o padre Artur
Handa Savita, enquanto a redacção tem como editor-chefe o jornalista Manuel
Vieira. Mas cabe apenas ao director-geral o estrito controlo editorial da
rádio.
“Temos
reuniões de pauta. Há jornalistas que trazem já os seus assuntos, a sua agenda.
Isso não funciona connosco”, defende-se o Padre Kandanji.
E
exemplifica: “O que é que eu corto? Aquelas palavras que ferem. Eu, por
exemplo, não deixo passar o [general] Bento Kangamba a enxovalhar alguém para
provocar uma reacção.”
Como
método, “normalmente eu oiço a peça com o jornalista e digo o que deve ser
cortado e porquê. Há jornalistas que depois agradecem. É o que a nossa
consciência de serviço nos aconselha. Preservamos a imagem de que servimos o
público”, diz o director da Ecclesia. E defende-se: “Fala-se apenas que
o padre expulsou jornalistas e cortou aqui e ali. Há interesses obscuros sobre
os quais não podemos ceder. Seja a oposição, o poder ou a sociedade civil têm
interesses que podem subverter os valores que a Igreja preserva.”
O
padre queixa-se ainda de que ninguém se lembra de mencionar que também ele já
foi criticado por dirigentes da comunicação social “por manter os microfones
abertos aos ouvintes nos debates de sábado”.
“Durante
as eleições [de 2012], os bispos pediram-me para desligar os telefones [da
rádio] para que os ouvintes não interviessem em directo. Eu disse que não,
tinham de permitir que as pessoas falassem e deixámos os microfones abertos”,
revela.
A
grelha de programas da Rádio Ecclesia também tem sofrido cortes e
mudanças profundas. Jornalistas e direcção divergem sobre as motivações.
Um
dos programas eliminados é o Sem Dúvidas, apresentado por Manuel Vieira,
sobre os problemas que enfermam a cidade capital de Luanda, segundo a voz dos
citadinos. O programa era emitido às terças e quintas. “Os ouvintes eram muito
críticos”, confessa um jornalista que prefere o anonimato.
“Vamos
tirar mais programas da grelha”, anuncia o padre Quintino Kandanji. Para si,
“os programas têm de ter continuidade e reflexo pastoral por ordem dos bispos”.
Sobre
o Sem Dúvidas, o gestor reconhece que “era o programa de maior audiência
da rádio, patrocinado pela BBC Trust”.
“Quando
cheguei[ao cargo de director], pedi à BBC Trust para fazermos o controlo
editorial do programa de forma equilibrada. O projecto chegou ao fim”,
argumenta.
Doadores
Desde
o seu relançamento, em 1997, a sustentabilidade da rádio tem dependido,
sobremaneira, de doadores internacionais. Várias organizações da sociedade
civil têm também contribuído para a grelha de programas, com projectos sobre
cidadania, justiça e direitos humanos.
A
era do padre Kandanji veio alterar a relação com certos doadores e com
organizações da sociedade civil. O director da Rádio Ecclesia explica
que várias dessas instituições têm retirado o seu apoio financeiro “porque a
rádio mudou”.
Cita
um caso como exemplo: “A Open Society fez-me uma proposta para obrigar o Estado
a agir contra nós.”
Como
prova, o director partilha um e-mail que lhe foi enviado pela delegação da Open
Society em Angola, datado de 15 de Março de 2012, em que a Open Society ajuíza
não haver interesse, por parte dos bispos da Conferência Episcopal de Angola e
São Tomé (CEAST), “em levar a questão da extensão do sinal da rádio à mesa da
discussão”.
No
e-mail, a Open Society nota como se deu início a “um processo em Benguela de
recolha de assinaturas para forçar o governo em autorizar a expansão do sinal,
processo este que teve aderência da parte da Associação dos Leigos e no entanto
a Rádio Ecclesia nem noticiou, os bispos nem sequer acolheram a
iniciativa no sentido de poderem recolher mais assinaturas junto das suas
dioceses”.
Com
efeito, a Open Society anunciou o cancelamento temporário do projecto de apoio
às rádios diocesanas, por um mês, para a tomada definitiva de uma posição sobre
o seu contributo à Rádio Ecclesia.
A
referida organização internacional foi mais longe e informou o seu parceiro de
que iria tomar a iniciativa de convocar outros financiadores. “Aproveitaremos a
oportunidade para reflectimos junto os demais doadores envolvidos no processo
(União Europeia, BBC World Trust Service) para que possamos tomar uma decisão
política em relação a este desinteresse da CEAST no processo”, lê-se na correspondência.
“Na
rádio da Igreja, a linguagem deve ser de parceria. Temos de maximizar a acção
da Igreja e não nos deixarmos puxar pela sociedade civil. A sociedade não nos
pode impor uma agenda. A rádio é da Igreja segundo a consciência pastoral da
Igreja”, reitera o gestor da emissora.
Um
analista sumariza a situação da emissora católica com uma metáfora perspicaz:
“a Rádio Ecclesia é a manta curta da Igreja Católica. Ou cobre a cabeça
ou os pés.”
Ámen.
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