sexta-feira, 14 de março de 2014

De como o sociólogo Paulo de Carvalho mudou a história do mundo – José Eduardo Agualusa



Lisboa - Leio e não acredito. Então volto a ler: "Quando as pessoas, e alguns 
políticos, inclusivamente, dizem que em Angola vigora um sistema ditatorial, isso não é verdade", sustentou Paulo de Carvalho, professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, em Luanda, numa conferência proferida a convite do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) de Lisboa, subordinada ao tema "Sistema democrático e direitos de cidadania em Angola".
Fonte: Club-k.net
Para sustentar essa sua convicção, Paulo de Carvalho contou um episódio ocorrido há tempos na Fundação Mário Soares, em Lisboa, em que o jornalista e ativista dos direitos humanos criticou o regime angolano, tendo-lhe o académico respondido: "Se em Angola houvesse um sistema ditatorial, tu, meu amigo Rafael Marques, não estarias aqui a falar para nós, estaríamos nós a chorar na tua campa".
A notícia é da agência Lusa e tem sido reproduzida em diversos meios de comunicação social desde a última quarta-feira. Vou partir do princípio que é verdade. Sendo verdade, o sociólogo Paulo de Carvalho abriu campo – com a sua arrojada linha de pensamento – para uma completa reinterpretação da História da Humanidade. Senão, vejamos: Agostinho Neto esteve nas mãos de Salazar. Contudo Salazar não o matou – logo, o regime salazarista foi uma democracia. Uma democracia exuberante, diga-se, pois Salazar também poderia ter morto, entre tantos outras importantes vozes contestatárias, Álvaro Cunhal, Mário Soares, etc., etc..
Pinochet poderia ter mandado matar Pablo Neruda (adiantando-se alguns dias ao tumor na próstata do qual, efectivamente, morreu o grande poeta). Contudo, não o fez. Logo, o seu regime foi uma democracia.
Dllma Roussef, actual presidente do Brasil, foi presa, no início dos anos setenta, pelo regime militar que se instalou no seu país em 1964. Contudo, os militares não a mataram. Logo, esse mesmo regime militar foi uma democracia. O assassinato dos jovens Isaías Cassule e Alves Camulingue, em Maio de 2012, pelos Serviços de Inteligência e Segurança do Estado (SINSE), é um pormenor que não parece incomodar o sociólogo Paulo de Carvalho. Segundo esta curiosa linha de pensamento, se um democrata consegue fazer ouvir a sua voz, sem ser morto, então existe democracia – isto mesmo que todas as outras vozes tenham sido silenciadas. Sim, Salazar matou Humberto Delgado (e tantos outros). Porém não matou Mário Soares. Então o salazarismo foi uma democracia. Sim, Pinochet assassinou o cantor e compositor Victor Jara. Porém, não assassinou Neruda. Logo, o regime de Pinochet foi uma democracia.
E a vergonha?! Não há vergonha?! Volto a ler a notícia da Lusa e sinto vergonha por ele, pelo sociólogo Paulo de Carvalho, sinto vergonha pelo Presidente José Eduardo dos Santos, sinto vergonha por toda essa gente que ousa apontar o dedo a um homem como Rafael Marques para lhe lembrar que ainda está vivo, que podia estar morto, mas que ainda está vivo, e que deve a vida ao espírito democrático de quem tem o poder para nos matar – e não o faz.
Nas democracias não se aponta o dedo a quem discorda de nós para lembrar que o pode fazer, que não morrerá por o estar fazendo. Nas democracias permitir que os outros discordem não é um gesto de tolerância (ou de ternura) – é a própria essência do sistema. A qualidade de uma democracia mede-se pela diversidade de opiniões livremente expressas. E é por isso que em Angola não temos uma democracia.

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