quinta-feira, 13 de março de 2014

Ondjaki: «Um dia Angola vai ter que se perguntar porque ficou tanto tempo o mesmo partido e o mesmo presidente no poder»



Lisboa -  Ndalu Almeida, ou seja: Ondjaki. Escritor angolano nascido em 1977. O seu pseudónimo significa “Guerreiro” em Umbundu, uma das línguas mais faladas em Angola.
Fonte: Diario Digital
Licenciado em Sociologia, Ondjaki desde cedo despertou para a Literatura. Os prémios depressa apareceram. Em 2007, recebeu o “Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco” com a obra “Os da minha rua”. Na Etiópia, foi galardoado com o prémio “Grinzane for best african writer”, em 2008. No Brasil, foi vencedor do “Prémio Jabuti”, na categoria juvenil, com o livro “AvóDezanove e o segredo soviético”.
O seu livro “Os Transparentes” ganhou o “Prémio José Saramago”, em 2013.
O Diário Digital entrevistou o autor na Póvoa de Varzim, durante o festival literário “Correntes d`Escritas”. Era cerca de uma da manhã, quando a conversa começou. Ondjaki tinha terminado um debate literário com Miguel Sousa Tavares, Manuel Jorge Marmelo, Rui Zink, Carlos Quiroga e Manuel Silva Ramos. A fila para lhe pedir um autógrafo e uma fotografia era extensa. Quando o autor conseguiu sair, já o auditório estava vazio e a Feira do Livro, adjacente ao auditório, fechada.
O Povo angolano sabe que a Senhora Ideologia [personagem de “Os Transparentes”] morreu?
Não sei se o povo angolano sabe. Não é que eu no meu livro matasse a Senhora Ideologia. O que no meu livro acontece é que finalmente se dá a notícia às pessoas de que a Senhora Ideologia já morreu. Mas realmente, para te responder à pergunta, eu não sei se o povo angolano sabe que a Senhora Ideologia já morreu.
Na minha opinião, em Angola a Ideologia morreu.
E foi substituída por o quê?
Não faço ideia, nem sei se quem a matou tinha a noção do que estava a fazer.
Fiquei com a sensação de que há mais uma violação da terra e da gente do que um esforço de desenvolvimento? É isto que se passa em Angola?
- Não sei se o povo está a ser violado ou violentado, mas o que há ali [“Os Transparentes”] – claro que o livro é uma ficção- é o ponto de vista da minha preocupação pessoal como autor- é uma tentativa de chamada de atenção para que, de facto, não se confunda o modernismo do cimento, ou até o modernismo do dinheiro e do petróleo com o desenvolvimento social. É verdade que um país como o nosso esteve 40 anos em guerra. Evidentemente que há reconstrução de pontes e de estradas, mas para mim seria preciso dar prioridade à reconstrução moral,  cívica, da cultura e da educação. Para mim, é onde o dinheiro devia estar a ser usado prioritariamente.  Onde eu vejo o dinheiro ser usado prioritariamente é no betão e na reconstrução de estradas. Muito bem, mas a reconstrução de uma ponte é ter dinheiro, que o governo angolano tem, chama o chinês e o chinês faz a ponte. Isto até nem precisa de muita planificação: chamar o engenheiro e os trabalhadores e fazem.

A reconstrução... não é bem uma reconstrução, é um reinvestimento na cultura e na educação, que também há, mas eu vejo mais a nível do cimento. Sim, há novas escolas. Sim, há novos postos de saúde. Sim, há novas universidades, mas a prioridade - repito- devia ser dada à qualidade do ensino e não aos prédios onde ensinam. É preciso repensar a qualidade dos professores que temos e do nível de ensino. O mesmo se aplica à cultura. E isto não é visível, porque não é como uma ponte que aparece daqui a 6 meses, mas talvez daqui a 6 anos ou daqui a 60 pudéssemos então- oxalá possamos- ver um país a renascer. Claro que os países se reinventam, e Angola está a renascer e está a reinventar-se. Eu acho é que tem de se pensar que maneira é que todos nós, cidadãos e políticos, queremos que Angola se reinvente. Como é que a queremos? Que Angola queremos nós, cidadãos, para o nosso futuro?
Está tudo a acontecer muito depressa…
Depressa é inevitável! O depressa está em todo o lado. Está em Nova Iorque, está em Joanesburgo e em nós também, mas o depressa tem de ser contrariado, o depressa não existe, o depressa não funciona. O depressa traz defeito. O depressa é perigoso...mas enfim… eu não sou político. É uma mera reflexão pela via da ficção.
A tua literatura é uma arma de combate social?
Eu acho que não, ou seja eu não uso com essa intenção. É óbvio que o livro pode ter várias leituras; é óbvio que “Os Transparentes”, dentro destes livros que eu escrevi, é talvez o livro com uma carga política um bocado mais forte. Existe ali qualquer coisa de inquietação política, mais do que crítica ou outra coisa qualquer. O que eu quero transmitir é inquietação; a minha pessoal, acho que transmito a de algumas pessoas também, é a minha pessoal e assumo-a. O livro está assinado por mim.
Eu só chamo a atenção para coisas que eu gostaria que fossem passíveis de reflexão e de discussão aberta.
Em “Os Transparentes”, Luanda é a personagem principal?
Eu acho que sim. Acaba por ser. Não é a primeira vez. Há um livro chamado “Quantas madrugadas tem a noite” em que o pano de fundo e uma das personagens principais é a cidade. Aqui em “Os Transparentes” é mais evidente. Luanda aparece com os seus tentáculos e esses tentáculos são as pessoas, desde o vendedor de conchas ao ministro; desde a avó, que veio de Huambo e que vive em Luanda enclausurada numa outra língua que não é a dela, até ao menino que transporta baldes de água e lava os carros. Estas pessoas fazem uma certa Luanda. Evidentemente que outros escritores poderão optar por uma outra visão de Luanda.
Angola, tal como Luanda, é um país permanentemente em obras/reconstrução?
Ainda é e ainda será. Lá está! É preciso ver que a reconstrução está a ser feita a vários níveis: do ponto de vista de quem manda, que é o governo, mas do ponto de vista também de quem lá vive e tem o seu próprio conceito de reconstrução. Luanda, especificamente, é uma cidade que vive em função do dinheiro- e onde há dinheiro isso tende a acontecer; onde há menos dinheiro as pessoas vivem menos em função do dinheiro- ali há muito dinheiro e toda a gente gira em torno do dinheiro, seja o dólar seja o kwanza.

Isto é uma coisa que me deixa triste. É Natural? Bom, talvez, mas deixa-me triste; é uma outra Luanda em relação às luandas que já houve e às luandas que eu conheci antes. Havia menos dinheiro, ou pelo menos circulava menos dinheiro.
O ministro tem gelo enquanto a população sofre com a falta de água. É possível escrever sobre a classe média? Ela existe?
Está a aparecer devagar uma classe média. Não é, sociologicamente, a classe média típica, se analisarmos vários indicadores, porque a classe média não se faz só por valores monetários. Eu acho que, neste momento, se eu te falar de uma classe média, eu vou estar a falar exclusivamente no salário das pessoas. Nesse sentido, sim; há uma nova camada que está nos bancos, há uma nova camada que está a ganhar melhor. Isso vai ser a nossa classe média, mas é preciso atenção porque sociologicamente a classe média deveria compreender outros indicadores: aptidões intelectuais, aptidões sociais, acesso a determinado tipo de bens e de direitos. Isso não sei se existe porque está tudo muito ainda em função do dinheiro, tanto a oportunidade quanto o acesso. Isto complica. Não deveria ser só o dinheiro a permitir o acesso a determinado tipo de serviços ou de bens. A água é um exemplo: mesmo quem tem água em casa é porque tem tanques de água e quando a água vem, que não é todos os dias, armazena a água e depois tem água que parece corrente. Mas a água não vem todos os dias para toda a gente em Luanda. No caso de Luanda; já nem falo nas outras províncias. A meu ver, é uma das prioridades. Seria interessante ver um político ou governante dizer “Vocês já viram que já resolvemos o problema da água?” Isto para ele seria um trunfo político; para mim seria uma coisa normalíssima que os políticos estivessem preocupados. Num país com o número de rios que nós temos- há províncias com mais de 3 rios- seria incrível se conseguíssemos finalmente que a população… Eu até digo prioritariamente a água! Mais do que a luz porque a água faz mais falta a toda a gente.
Em “Os Transparentes” procura-se petróleo, mas falta água. A que se deve esta inversão de prioridades?
Isto é na ficção. Não há petróleo “onshore”, digo eu… É simbólico, mas essa simbologia estende-se a muitos políticos no mundo que raramente adoptam como suas prioridades  as prioridades de quem conta com eles. É muito raro um político adoptar como prioridade aquilo que realmente faz falta. São outras agendas! Isto é incrível!
Estou a ouvir-te e, tirando alguns aspectos particulares, consigo identificar a Europa.
Claro! Estás a ver a França, estás a ver a Espanha, a Itália e estás a ver Portugal. Claro!
Angola teve uma guerra civil, houve uma “catarse” de sangue. Dá-me a sensação- obviamente que é ficção- de que há uma constante destruição e reconstrução na Luanda de “Os Transparentes”. É necessária uma nova catarse, uma nova forma de niilismo na transformação da sociedade angolana?
Não sei se a palavra é “Necessária”... Não sabemos muito bem o que vai acontecer. O partido que está no poder está no poder há muitos anos, a pessoa que está no poder como Presidente da República, por variadíssimas razões, está no poder há muitos anos. Angola vai ter que lidar com isso. Um dia, Angola vai ter de que repensar isso; vai ter que se perguntar porque ficou tanto tempo o mesmo partido e o mesmo presidente. É impossível que ninguém se pergunte. As pessoas se perguntam, muitas vezes…
A Literatura é a expressão de uma identidade. Parece-me que a literatura angolana já está consolidada…
Sim, mas é feita por um pequeno número de pessoas. Hoje o Ungulani, de Moçambique, estava a me dizer que nos nossos países o número activo de escritores face à dimensão populacional é curto. Angola neste momento deve estar com cerca de 18 a 20 milhões de habitantes.  Vamos admitir que sejam 200 [escritores], oficialmente. É pouco. 200 escritores para 20 milhões é pouco.

Não podemos mandar para a faculdade e desejar que sejam escritores. Não podemos controlar, mas podemos favorecer as condições para que apareçam, não é? As pessoas vivem em condições que não permite sonhar com o ser escritor. Neste momento, a juventude sonha com ser desportista ou cantor. E porquê? Porque são duas coisas que resolvem o problema das pessoas pela via do dinheiro, pela via da fama, pela via do encosto -encosto-me a este, encosto-me àquele. Escritor, algumas pessoas querem ser, pelo prestígio, mas não é uma carreira promissora.
Então não há uma crise de identidade em Angola?
Não, eu acho que não. De um modo de um geral, os angolanos sabem muito bem o que são; alguns estão equivocados, como noutras culturas.
Eu prefiro pôr em questão e prefiro pensar sempre que não é possível falar em identidade angolana enquanto conceito fechado e que é bom que esse conceito seja arejado e que possamos reconstruir todos os anos, todas as décadas. Se há pessoas que estão convencidas que sabem exactamente o que é a identidade angolana...bom...essas pessoas têm o seu caminho a fazer.
Em “Os da minha rua“ usaste muitas memórias de infância?
Sim, sim…
E em “Os Transparentes”?
Quase nada.
Há pessoas que são baseadas em pessoas que conheço.
Essas histórias não são minhas; toda a gente conhece essas histórias. O meu trabalho é agrupar essas histórias e, claro, dar-lhe um traço de escrita, que é meu. Toda a gente em Luanda sabe daquelas histórias. Toda a gente.

Existem características tuas espalhadas pelas personagens, presentes principalmente em Odonato? Lembro-me do idealismo de Odonato e da frase que disseste na entrega do prémio Saramago “Na palavra cantil guardo a utopia, para que durante a vida eu possa não morrer de sede”; lembro-me também de PauloPausado e a sua mania em coleccionar pessoas estranhas e ouvir conversas…
Há coisas nossas que no momento certo precisamos de usar. Não é “agora vou fazer isto baseado em mim”, mas naturalmente uma ou outra coisa deve saltar; um ou outro personagem deverá falar-nos mais ao coração do que outros. Certamente não me identifico, como pessoa, com o ministro. Também não sei se com o Odonato...Eu conheço pessoas assim que acreditaram numa certa esquerda, a dada altura, e que são de esquerda ao contrário de outros que não sabem bem o que é; tanto não sabiam o que eram como ainda hoje não sabem. E tanto lhes faz. Eram hiper-comunistas, hiper-marxistas/leninistas, mas mal o sistema mudou foram se casar na Igreja. Eu não tenho nada contra uma pessoa que se case na igreja!

Não é como a esquerda italiana que tem a esquerda italiana católica. Em Angola, quando tu eras Marxista-Leninista, em princípio, não eras católico, mas até podia ser que se fosse, pois a pessoa estava escondida. Mas aqueles que diziam abertamente que não eram depois vão se casar pela igreja e depois têm 4 Mercedes em casa, no quintal! Esses que se diziam de extrema-esquerda, hiper-colectivistas e Marxistas-Leninistas! 4 Mercedes… acho que alguma coisa aqui não está bem. 

Odonato representa um bocadinho isso. Acho que o Odonato às vezes ainda diz isto: “Eu acreditei naquilo que me disseram; que era para todos, que era para dividir”. E de repente vê que não é nada disto. Isto é uma desilusão não só política como humana. Ele está todo destroçado. Ele não come, o filho desapareceu. Coitado! Também dei-lhe uma conjuntura não muito fácil. Ele tinha que ficar transparente, pois já não aguenta. Ele desaparece de si mesmo! É esta transparência.
Ele tem essa pureza, essa ingenuidade...
Sim, sim… eu achei-o excessivamente puro, no aspecto literário. Aquela pessoa não existe. Não pode existir. Na verdade, era eu que precisava dele para contar uma história e pu-lo assim. Acho que ele não existe.
E o filho Ciente? É um personagem simbólico? Não lhe deste esperança nenhuma. Ele não teve saída.
Não, não… Ele já estava condenado à partida. Na realidade, ele ajudou-me imenso para o pai ficar mais desesperado, ir à procura dele. O Odonato é um frustrado, de buscas frustradas, e tem um filho assim. O filho, não. O outro personagem, amigo do filho, que é um ladrão e que se chama ZéMesmo, é muito mais uma brincadeira simbólica do que o Ciente. O Ciente, simplesmente, ajuda o personagem do pai a dizer certas coisas e a fazer certas coisas.
E qual é o simbolismo de ZéMesmo?
Daqui a uns anos as pessoas vão perceber. [risos]
As personagens são adjectivadas com alcunhas que demonstram traços físicos ou de personalidade. Porquê esta manipulação lexical/semântica?
Isso começou com “O Assobiador”, que é um livro já antigo, e achei interessante. Eu queria um livro em minúsculas porque dão uma certa fluidez no discurso e, ao mesmo tempo, uma certa confusão, que é Luanda. Então não me interessava muito estar preocupado com os pontos e os parágrafos, nem me interessava se a pessoa parava de ler, ou onde parava. Era isto. Essa estrutura gráfica era muito mais até para criar nos nomes uma coesão, pois não é preciso estar a separar e faz-me confusão. Gosto muito de ver os nomes todos juntos: HospitalMilitar, RádioNacional. É o fluxo de Luanda que não pára, ou pára com aquelas divisórias de capítulos que são pausas, na realidade.
No cinema [Os Transparentes], as imagens são dadas, mas os sons são feitos pelas pessoas. Qual o significado da parábola do cinema?
Não sei se tem um significado. Era muito mais um sonho. Acho isso muito bonito. Porquê? Porque no teatro, que é uma arte muito mais humana na hora de ver- no cinema está lá uma tela fria, a gente olha e vê- temos tudo ali:
A voz, a respiração, a falha, o suor do actor.
E eu pensei que aquilo era uma maneira de inventar uma interacção que o cinema não tem. Tu tiras o som, ou o JoãoDevagar [tira o som], e dizes: “Não, não, não… Aqui, neste cinema, cada um vai fazer o som”. Apelar às pessoas a participarem nesse filme. Claro que pode ser o filme da vida, o filme da cidade. No meu caso, ele ainda faz uma coisa “pior”; depois põe um filme pornográfico, à noite. Mesmo no filme pornográfico as pessoas é que fazem os sons. Tu podes optar por fazer o som do filme pornográfico, mas também podes optar por outra coisa, ou seja tu interferes no filme, usas a imagem, mas interferes. E esse é o poder de criação de cada um. Nós podemos interferir mesmo naquilo que aparentemente já está destinado para ser assim.
O som parece-me ser muito importante na tua prosa: jazz, o cinema, a situação (pág. 214) em que o carteiro fica “a ouvir a orquestra de sons brandos que o prédio lhe trazia”. O que pensas que a mistura de línguas e dialectos traz à tua literatura? Dedicas especial atenção na construção dessa melodia?
Não, à melodia propriamente não diria. Os projectos, às vezes, conseguem dizer-me que ritmo é que terão; ou seja, “O Assobiador”, como é muito mais lírico, muito mais calmo, muito mais delicado, tem um tipo de linguagem. O Madrugadas [Quantas madrugadas tem a noite], que já é de uma Luanda muito mais dura e rústica, tem outro tipo. E isto varia um pouco porque há zonas ligeiramente poéticas e há zonas mais duras. Por exemplo, o livro tem diálogos muito longos, de 4 ou 5 páginas, que é o que os luandeses fazem muito. É obrigatório falar, não podemos estar calados mesmo que não tenhamos nada para dizer. Às vezes as pessoas diziam-me “Este diálogo está um bocado extenso”; eu dizia “Desculpa lá, mas é mesmo assim. Não é para ser uma perfeição literária; isto aqui é para reflectir um bocado sobre o que se está a viver em Luanda”. Tive essa delicadeza- claro que não é fácil - em tentar dizer “Aqui fala-se à toa. Aqui fala-se por falar”, por um lado. Por outro, é uma homenagem às pessoas que estão sempre a criar! O diálogo é o teatro que os luandeses fazem todos os dias! Esse teatro acontece muito por via do diálogo. Tu vês em qualquer conversa que a pessoa tem necessidade de criar a palavra ou a acção. Ele está a contar-te uma coisa que não aconteceu. Parece uma obrigação. Isso eu acho muito interessante! 

Uma pessoa chega atrasada e conta-te uma história. Bom, está bem. É para se justificar. Mas é que não é só para se justificar! É porque ela acha mais interessante estar aqui cinco minutos contigo a inventar-te uma história do que simplesmente dizer-te a verdade, mas não é para se desculpar do atraso! É óbvio que chegou atrasada! Não! É porque já agora tem a oportunidade de te contar uma história inventada ou adaptada! Eu acho fantástico que as pessoas tenham a necessidade de teatralizar a própria realidade! O que os psicólogos dizem acerca disso? Podem dizer muita coisa por que o povo está sempre com necessidade aquilo que vive… Acho que isso pode dizer muito, não é? Quer efabular ou não está muito satisfeito com aquilo que vê. Ou os dois.
Esse “contar histórias”, essa oralidade ainda é base da passagem cultural?
Nas cidades, eu não sinto. Evidentemente que há espaços rurais que, felizmente, estão protegidos dessa invasão do ritmo tanto do tempo quanto do dinheiro. Ainda tem comunidades rurais- as chamadas comunidades étnicas- que preservam as suas tradições de maneira interessante: as festas da circuncisão, o modo como é pedido o casamento, o modo como os enterros são feitos, os cânticos para a colheita, os cânticos para apelar à chuva. Isso existe.
Agora vivo no Rio, mas sou de Luanda, e não tenho acesso às histórias ditas tradicionais.
Eu gosto que essas histórias sejam contadas por pessoas que as conhecem bem porque se não cai-se no exotismo literário e eu não tenho paciência nenhuma para isso.
O que achas que se perde ou que se ganha na passagem dessa oralidade para a escrita?
São universos que às vezes se encontram, mas são universos diferentes. Há histórias que foram feitas, e ainda são usadas há milhares de anos, para serem contadas oralmente. O aproveitamento que podemos fazer dessas histórias, dando-lhes um tratamento literário, é outro caminho. Vale a pena? Vale, se o escritor for bom vale a pena, mas é preciso não esquecer que há histórias que fazem e farão parte da tradição oral. Talvez morram porque as comunidades rurais e o espaço rural do mundo está a terminar.
Foste para o Rio de Janeiro há quanto tempo?
Estou lá há 6 anos.
A passagem do interior para o exterior mudou a tua visão?
Deve ter mudado. Há até o efeito da distância, o efeito da saudade, que nos torna mais críticos ou nos torna mais brandos. Eu procuro ficar numa linha divisória entre a procura da clareza da distância sem querer a frieza do desconhecimento, de não estar lá. Não quero essa frieza. Não quero-me armar em que sou o maior crítico agora que não estou lá. É muita delicada a fronteira entre: critico, porque acho que tenho de criticar, mas eu não estou lá então que direito tenho em criticar?
É uma dúvida que me assombra todos os dias.

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