domingo, 2 de outubro de 2011

Entrevista de Vicente Pinto de Andrade censurada no Jornal ACapital


Luanda - Sobre as manifestações, Vicente defende os direitos consagrados constitucionalmente, mas adverte para a necessidade de as mesmas decorrerem sem tumultos ou violência, rejeitando as ofensas, os insultos e, claro está, a provocação dos contra manifestantes.
*Tandala Francisco
Fonte: ACapital
Qual a sua opinião a respeito das manifestações ocorridas até agora e, claro está, de todas as suas envolventes?

A manifestação é, naturalmente, do ponto de vista constitucional e democrático, um acto legal e também legítimo. Quando as pessoas pretendem expressar, de forma gritante, as suas ideias, interesses e preocupações recorrem à manifestação. Portanto, a manifestação é, no fundo, uma expressão de descontentamento, quando é de crítica, e de contentamento, quando é de suporte. No nosso país, tem havido manifestações de apoio ao Governo, ao Presidente da República e essas nunca foram condicionadas, nem limitadas. No caso das manifestações de protesto e de descontentamento em relação ao Governo e, mesmo, no que respeita a acontecimentos como as demolições, entre outras, aí já tem havido uma atitude diferente por parte da Polícia. E muitas destas manifestações são reprimidas até de uma forma violenta. Creio que se o nosso país estivesse já numa fase plena de exercício democrático, essas manifestações não teriam as consequências que agora têm. O que leva hoje os jovens a manifestarem-se é a sensação de indignação, perante a vida que eles levam. A maior parte dos jovens que se envolveram em manifestações são estudantes e uma boa parte são universitários, eles sabem que é muito difícil o acesso ao trabalho depois de terminados os cursos. Mas eles também já se aperceberam que a vida política tem limites. Acredito que eles escolheram como principal alvo de crítica o Presidente da República porque já está há 32 anos no exercício do cargo. Já foi ministro, antes, e agora é Presidente. Penso que esta situação já os indigna, porque o período em que o Presidente está a exercer essa função é superior à idade de cada um deles. Portanto, perante esta situação, e ante uma conjuntura mundial que é de mudança política, e também ainda perante a impossibilidade de eles se puderem exprimir de outra maneira, usaram a manifestação. As manifestações realizadas pelos jovens são uma expressão de indignação e também de maturidade política, independentemente de existirem aqui e ali alguns actos que possam assumir carácter ofensivo. Em todas as manifestações há sempre excessos verbais, embora eu ache também que esses excessos seriam menores se as pessoas tivessem a oportunidade de se exprimir mais vezes de uma forma pacífica. O que acontece é que tem havido limitações, restrições a onda de manifestações foi o ponto de partida mas rapidamente a “conversa madura” com o economista e professor universitário. ‘Essa Constituição é uma à expressão dos pensamentos dos jovens e, naturalmente, quando isto acontece as manifestações assumem um carácter que, por vezes, pode descambar em alguma violência.
Tendo em conta esses mesmos excessos, o que pensa: a Polícia teve razão ao prender os jovens e, por conseguinte, o tribunal foi justo ao condená-los a penas de prisão efectiva?
Acompanhei as notícias pelos jornais, rádios e também pela Internet. O Facebook, hoje, permite-nos estar em contacto com as pessoas, ver os vídeos e penso que houve um excesso por parte da Polícia e, também, uma mistura de pessoas. Tive a oportunidade de verificar que no meio dos manifestantes havia indivíduos à paisana que era suposto serem polícias ou então provocadores. E eu só entendo a existência de provocadores ligados ao MPLA nestes grupos manifestantes, ligados ao MPLA ou a qualquer outra instituição policial no sentido de, não só, parar as manifestações mas, também, fazer com que elas degenerem em violência. Não estive lá, e não sei o que se passou realmente, mas tudo que acontece agora, nomeadamente, o julgamento que culminou com a absolvição dos réus, na segunda-feira, mostra que a Polícia se excedeu e que aqueles jovens não foram um factor de desordem violenta. As imagens que vi através da Internet mostram é eles a caminhar e a falar, mas não vi nenhum gesto deles a atirar pedras ou a fazer qualquer coisa violenta. Penso que a Polícia deveria ter sido mais contida na forma como enquadrou a manifestação, se assim posso dizer, e também devia ser proibida a infiltração de pessoas estranhas nestas manifestações, porque houve infiltração. Quando a Polícia dialogou, como mostram as imagens e relatos, com pessoas à paisana, então estas pessoas não estavam lá na qualidade de polícias, estavam na qualidade ou de provocadores ou de secretas. Não se compadece com um regime democrático a existência de secretas nesses tipos de actividades. Isso acontece nos regimes totalitários, autoritários. Muitas vezes, a presença de secretas à paisana é que tem sido um factor de desestabilização das manifestações, como aconteceu, por exemplo, no Egipto onde houve misturas de pessoas manifestantes com secretas de Mubarak.

Ao absolver o segundo grupo de manifestantes, não estará, implicitamente, o tribunal a mostrar que agiu sob pressão na primeira condenação?
É óbvio que este segundo veredicto do tribunal mostra que, afinal, como se diz na comunicação social e como eu acredito que tenha acontecido, houve pressão política sobre o corpo de juízes, e penso que isso é mau. Isto não é de estranhar. A Constituição que foi aprovada no ano passado reforça o peso do poder político sobre o poder judicial – e isso contraria o princípio democrático de separação e equilíbrio dos poderes. O nosso poder judicial está muito dependente do poder político, e muito dependente do Presidente da República, que é o principal titular, neste momento, dos órgãos do poder do Estado. Portanto, esta dependência que o poder judicial tem relativamente ao poder político e, nomeadamente, ao Presidente da República faz com que não possamos avaliar e garantir aquilo que é a independência do poder judicial. As normas que estão na nossa Constituição e que impedem a independência do poder judicial em relação aos outros poderes, quer o económico, quer o político, deverão ser revistas e alteradas um dia, no sentido de fazer com que a nossa democracia seja genuína. Com um sistema de governo como este, em que o Presidente da República concentra muitos poderes, é importante que se reforce a independência do poder judicial. Naqueles países em que o sistema do governo é presidencial, como é nos Estados Unidos, o órgão moderador é o poder judicial. O único órgão moderador que nós, no quadro desta Constituição, poderíamos ter seria precisamente o poder judicial, porque todos os outros poderes estão dependentes do Presidente da República. Estamos perante uma situação em que, hoje, não temos um órgão moderador. Penso que o órgão moderador devia ser constituído pelos tribunais e, naturalmente, para que isto aconteça é necessário que os tribunais possam exercer as funções de forma independente e os juízes possam agir em função da Lei e da sua consciência.

Pelo que sugere, essa Constituição, ainda agora aprovada, está, afinal, a prazo?

Certamente. Esta Constituição é um retrocesso em relação ao passado, no que toca ao sistema de governo e, também, no que toca ao regime, no fundo às relações entre os cidadãos e as instituições. Por isso é que penso que esta Constituição deverá ser revista logo que haja, no Parlamento, um conjunto de forças políticas preocupadas em aprofundar a democratização e não limitá-la. É necessário aprofundar a independência e o equilíbrio dos órgãos do poder do Estado.

Ela, a Constituição, sob o seu ponto de vista, está mal no seu todo ou existem também aspectos positivos?
Quem a defende fala, por exemplo, na garantia de mais direitos para os cidadãos… Podemos afirmar, reconhecer direitos mais alargados na Constituição, mas na prática não haver a garantia do exercício desses direitos. Essa garantia é feita através da participação dos órgãos do poder do Estado, nomeadamente, o Governo, o Parlamento e os governos provinciais. Há um conjunto de órgãos a quem compete garantir o exercício desses direitos. Portanto, o reconhecimento desses direitos na Constituição não é bastante para que possamos estar perante uma Constituição verdadeiramente democrática no que toca aos direitos. O fundamental é o exercício dos direitos, a garantia desses direitos. E esses direitos só podem ser adequadamente garantidos e consolidados quando existe uma independência dos órgãos do poder do Estado.
Perante esse quadro, conforme o pinta, onde nos devemos queixar, ao sentir que os nossos direitos estão a ser violados por quem, de resto, detém o poder político? As manifestações serão, mesmo, o último recurso?

As manifestações de protesto contra a situação social que se vive ou a falta de condições que a população tem, as manifestações, também, de crítica política, são legítimas e vão continuar, porque a democracia é assim. Em todos os países democráticos, quase que diariamente há manifestações. Às vezes são limitadas, ao nível de um bairro, comuna, província ou região e outras vezes são a nível nacional. Portanto, as manifestações são uma expressão da democracia. Temos que nos habituar às manifestações. Estas manifestações geralmente são feitas para exprimir indignação e do descontentamento. Geralmente, há sempre grupos descontentes. Nem toda a gente está satisfeita com o governo, qualquer que ele seja. Portanto, penso que estas manifestações vão continuar. Agora, deve haver contenção verbal por parte dos próprios manifestantes. Mesmo a crítica que se faça aos titulares dos órgãos do poder do Estado, que seja uma crítica que não ofenda. Dizer que o Presidente está há muito tempo no poder não é ofensa, dizer 32 anos é muito, não é ofensa, mas fazer afirmações que possam ofender a pessoa, já é ofensa. Penso que a crítica, mesmo nas manifestações, e a expressão de descontentamentos devem estar nos limites da educação e daquilo que é a democracia. Portanto, dizer 32 anos é muito, não é uma ofensa, é a constatação de uma realidade. Nós, neste momento, em África, temos o Presidente que detém um recorde da longevidade no exercício da sua função e nunca foi eleito democraticamente para este lugar. É preciso recordar que o engenheiro José Eduardo dos Santos, na qualidade de Presidente do MPLA, declarou que não seria mais candidato à presidência da República, fê-lo há 10 anos. Portanto, uma pessoa que declara que não será mais candidato à Presidente da República, fica mais 10 anos e pode ficar mais alguns, é óbvio que isso cria uma indignação, porque uma pessoa que diz isso devia, imediatamente, ter posto o seu lugar, no caso de presidente do MPLA, à disposição dos seus militantes. O Presidente José Eduardo dos Santos devia ter colocado, na altura, o seu lugar à disposição, como fez o Presidente Chissano que disse: “eu não quero mais ser Presidente da República” e, automaticamente, três pessoas, em reunião do Comité Central da FRELIMO, levantaram o braço e disseram: “eu vou-me candidatar”. O Presidente Armando Guebuza foi o primeiro a levantar a mão e dizer: “vou-me candidatar”. A partir daquele momento, a FRELIMO teve que reorganizar-se, reestruturar-se e discutir a questão de quem seria o novo Presidente. Armando Guebuza foi eleito pelo Comité Central, teve mais votos que os outros dois candidatos, então foi escolhido para representar a FRELIMO. José Eduardo dos Santos devia ter feito isso, naquela altura.

O que acha que aconteceria de diferente, se as coisas tivessem sido feitas tal como agora sugere?
Se tivesse feito isso naquela altura, o Presidente sairia pela porta grande, porque permitiria que o próprio MPLA se pudesse reencontrar com uma nova liderança e que o processo de transição política no país fosse mais suave porque não havia aquela ideia de eternização no poder, ou manifestação de que a pessoa se quer eternizar no poder. Penso que 10 anos correspondem a dois mandatos nos termos da Constituição. Portanto, se o Presidente da República está há dois mandatos sem a legitimação do voto popular, é óbvio que os jovens que têm menos de 30 anos têm razão quando protestam e manifestam o seu descontentamento em relação a essa duração tão longeva do exercício do poder.

Além disso, o engenheiro José Eduardo dos Santos é que escolheu este sistema. O MPLA, no início, tinha apresentado um sistema de Governo e eleitoral parecido com o que estava consagrado na Lei Constitucional. Quando houve a intervenção do Presidente da República, depois apoiado por dois juristas, Bornito de Sousa e Carlos Feijó, aí foi tudo alterado e culminou com esta Constituição em que o Presidente da República tem a concentração do poder e está sujeito à crítica muito mais fortemente do que num sistema semi-presidencial. Com este sistema de Governo, quem exerce o poder executivo, ou seja, quem for o Presidente da República, concentrará quer o amor, quer o desamor do povo, porque é a pessoa que responde por tudo. Se formos a ver a produção legislativa, não só de leis como de outros diplomas legais que é feita depois das reuniões, é um absurdo. Quer dizer, governação por decreto presidencial e a governação que é feita hoje é inebriante porque todas as semanas saem uma série de decretos presidenciais de normas que, acredito, a maior parte dos próprios governantes, passado uns tempos, desconhecem. Os ministros ficam limitados no exercício da sua função. E mais: Ficam desresponsabilizados, porque esse sistema do governo actual responsabiliza, fundamentalmente, o Presidente da República. Ele é o responsável por tudo, pelo bom e pelo mau. Quem escolhe um sistema de governo desse tipo, não pode deixar de aceitar que as críticas se concentrem nele. Por isso, é que o Presidente da República é, neste momento, o alvo das críticas desses manifestantes e de outras pessoas que, no silêncio, também, não estão de acordo.
Só merece críticas?

Não! Por sinal, também é alvo de elogios por parte daqueles que estão de acordo. A concentração, hoje, da actividade política está numa pessoa e essa pessoa chama-se José Eduardo dos Santos. O legislador agiu propositadamente ou não previa que as coisas se tornassem como estão agora?
Em artigos e mesmo em palestras chamei a atenção para este risco, o de o Presidente da República, chefe do Governo, tornar-se o centro da controvérsia política. Penso que o Presidente da República, em qualquer país, deve ser um órgão de moderação. É preciso haver moderação num país democrático, universitário, Vicente Pinto de Andrade, de 61 anos de idade, se desenvolveu para outros aspectos da vida política, económica e social do país. Uma faca de dois gumes’ penso que estas manifestações vão continuar. Agora, deve haver contenção verbal por parte dos próprios manifestantes. Mesmo a crítica que se faça aos titulares aos órgãos do poder do Estado, que seja uma crítica que não ofenda. Dizer que o Presidente está há muito tempo no poder não é ofensa, dizer 32 anos é muito, não é ofensa, mas fazer afirmações que possam ofender a pessoa, já é ofensa. Penso que a crítica, mesmo nas manifestações, e a expressão de descontentamentos deve estar nos limites da educação e daquilo que é a democracia. Porque há sempre confronto de ideias e há momentos em que alguém tem que intervir para moderar, acalmar, para servir, no fundo, de sustentáculo do próprio sistema. Nós, hoje, não temos isso no nosso país, hoje não temos um moderador. Falta um moderador. Em termos do sistema político, não temos um moderador, o nosso Presidente da República não pode exercer esta função, porque é a parte mais envolvida na governação, porque é o responsável pela governação. Hoje já não se usa Governo, usa-se o termo Executivo. Em democracia, quem exerce o poder executivo é o Governo. Mas hoje até se alterou a linguagem e ficou Executivo.
Mas executa-se a ordem de quem? Que leis e que normas jurídicas executa?


Executa as normas jurídicas que define, os decretos que manda publicar. Tudo hoje passa pela mão do Presidente da República. Por isso é que eu penso que este sistema, que foi constituído, disse-o na altura e digo hoje, é uma arma de dois gumes. Por um lado, parece que dá muito poder a quem o exerce, mas, por outro, também fragiliza quem o exerce. Não há dúvida nenhuma de que a imagem do Presidente da República está mais fragilizada, desgastada e toda a acção política do futuro, daqui para frente, nomeadamente no período pré-eleitoral, toda a luta política vai estar concentrada no Presidente. Hoje até tive a oportunidade de constatar através do que li, que a referência ao MPLA, durante as manifestações, quase que não existia. A referência é ao presidente do MPLA na qualidade de Presidente da República, de chefe do Governo, chefe do Executivo. Quer dizer que este sistema teve um aspecto curioso, por um lado, chamou a atenção para o facto de o MPLA ser um partido que tem a legitimidade que é dada pelo voto, mas existe de forma separada do seu presidente e do Presidente da República. Neste aspecto, separa aquilo que é o partido que está no Parlamento e a figura que está a exercer o poder de Presidente da República. É um sistema com este grau de ambiguidade. Os críticos dos jovens manifestantes dizem que eles têm as eleições em perspectiva se quiserem, de facto, que o Presidente da República saia do poder, e que não precisam, por isso, do artifício manifestações…

Em 2012, haverá eleições gerais de acordo com o sistema que foi aprovado, mas o que se verifica no nosso país é que tudo está a ser feito para que o MPLA e o seu presidente ganhem as eleições. E tudo está a ser feito em que aspecto: em primeiro, lugar a comunicação social pública, do Estado, melhor dizendo, é uma comunicação que só fala do Presidente e do MPLA. Não é uma comunicação que dê espaço à expressão de todas as forças políticas. Veja, por exemplo, no caso da absolvição dos réus, foi segunda-feira e até hoje no Jornal de Angola não saiu nada, mas publicaram, no jornal, o encontro entre Bento Kangamba e alguns jovens no Palanca. Portanto, isto é, nitidamente, uma parcialidade. Quando foi da condenação, o Jornal de Angola fez referência à condenação e houve artigos que se referiram aos jovens “arruaceiros”. A comunicação social do Estado, nomeadamente, a televisão pública, o Jornal de Angola e outras formas de comunicação, estão perfeitamente enquadrados numa estratégia que é de esquecer tudo quanto seja crítica ao Governo e tudo que sejam partidos da Oposição; reduzir o peso, a imagem e o crédito dos partidos da Oposição e elevar, enaltecer o MPLA e o seu presidente. Ora, isso, em democracia, não se faz, não se deve fazer. Isto é violar a regra do tratamento igual, que é constitucionalmente reconhecida, e deve ser garantida. Esta questão do tratamento da comunicação social é uma coisa. Depois temos o poder económico. Temos uma economia em que o Estado tem imenso peso. O grande consumidor das riquezas do nosso país é o Estado.

E quem são os titulares do poder do Estado?
São os indivíduos do MPLA. Quem é que distribui a riqueza, de uma forma ou de outra? É o MPLA e o Presidente da República, porque têm os órgãos do poder, ao nível do sistema bancário, indústria, agricultura. Quer dizer, quem distribui a riqueza é o Estado dominado por um partido político e por uma pessoa. Isto quer dizer, então, que dificilmente os outros partidos e as outras pessoas que pretendem ser alternativas ao partido actual e ao Presidente da República actual se podem afirmar através da comunicação social. Em Democracia, a luta é na comunicação social. As mensagens, os políticos passam na comunicação social, quer dizer, não precisam de ir à rua para se afirmarem. Aqui, no nosso país, a única saída que os partidos políticos da Oposição e as pessoas têm é, mesmo, ir para rua e, pacificamente, manifestarem as suas ideias, transmitirem os seus projectos e darem-se a conhecer. Infelizmente, é assim. Se ficarem em casa, vão dizer que esta Oposição não existe. A crítica que se fez ao longo deste tempo é que não havia Oposição. Onde é que está a Oposição? Várias vezes se perguntou isso. A Oposição não aparece na televisão, porquê? Tudo é cortado, limitado, então, o único espaço que as pessoas têm para afirmar a sua discordância, a sua existência, é a rua.

Está a admitir, portanto, a existência de partidos políticos por detrás das manifestações?
Os partidos políticos não só devem participar, mas também enquadrar as manifestações. Os partidos políticos existem para exprimir as inquietações, as preocupações, os desejos, as propostas dos cidadãos, mas também existem para formar a opinião dos cidadãos, dar uma ideia daquilo que deve ser o país. Os partidos políticos não se podem abster das lutas sociais, políticas, culturais e económicas. Os partidos políticos e os seus membros devem estar presentes, precisamente para enquadrar e para não fazer degenerar as manifestações ordeiras. Se os partidos políticos estiverem ausentes destas manifestações, sem liderança, elas podem facilmente degenerar em motins e confusões. Os partidos políticos têm que estar presentes nas manifestações, têm que assumir a liderança na organização destas manifestações, embora muitas delas não têm carácter político, nem partidário, algumas delas têm até um carácter mais abrangente. Eu penso que estas manifestações tiveram um carácter muito abrangente.

Foram espontâneas?
Penso que esta iniciativa foi, mesmo, dos jovens. Embora possam existir membros de partidos, mas estes jovens, também, pertencem às organizações, uns, e outros não. Mas penso que devemos retirar esta carga negativa de que os partidos não se manifestam. O MPLA organiza manifestações, promove uma série de actividades todos os dias, o que é um sinal de vitalidade. O MPLA tem uma grande capacidade de organização, mobilização. Então, porque é que os outros partidos também não podem criar, construir essa capacidade de mobilização, de organização? E essa capacidade só se cria na acção, não na inacção. E penso hoje já não se usa Governo, usa-se Executivo. Executivo é o Governo. Em democracia, quem exerce o poder executivo é o Governo. Mas hoje até se alterou a linguagem e ficou Executivo. Mas executa-se a ordem de quem? Este sistema que foi constituído, disse-o na altura e digo hoje, é uma arma de dois gumes. Porque de um lado, parece que dá muito poder a quem o exerce, mas também fragiliza quem o exerce O MPLA organiza manifestações, promove uma série de actividades todos os dias, o que é um sinal de vitalidade.

O MPLA tem uma grande capacidade de organização, mobilização. Então, porque é que os outros partidos também não podem criar, construir essa capacidade de mobilização de organização. Acredita que essas manifestações, pela exiguidade do número de aderentes, conseguem abalar com alguma profundidade as estruturas do partido no poder?
As manifestações que se registaram agora para mim deram um sinal, isso numa perspectiva sociológica. O núcleo fundamental destas manifestações é constituído por jovens, estudantes e estudantes universitários. Esta manifestação não foi feita por pessoas desempregadas. Desempregadas no sentido de que não foram os roboteiros, as zungueiras, não foram aquelas pessoas que estão a lutar pela subsistência diária que se manifestaram, não! Foram pessoas que estão nas escolas, esclarecidas, do ponto de vista político, informadas. São, no fundo, aquela parte vital da nossa sociedade, que é a juventude estudantil. E todos os processos políticos, quando são conduzidos, liderados por jovens com este nível de esclarecimento, as coisas mudam e, felizmente, mudaram. Sempre receei que as pessoas que tomassem esta iniciativa, das manifestações, fossem desempregadas, semi-marginais e isso não aconteceu. Quer dizer que o nosso processo político, em Angola, mostra que há um amadurecimento dessa camada jovem, estudantil. Isso é a expressão de uma mudança profunda na nossa sociedade. Hoje, aquelas pessoas mais esclarecidas não têm nada a perder e exprimem a sua indignação e protesto. Houve um avanço. E quando eu penso em mim, na minha trajectória e de muitas pessoas que estão no próprio governo, todos começamos jovens. Quando fui preso no tempo colonial tinha 19 anos. Há jovens que estiveram nas manifestações e têm idade superior a que tinha quando fui preso. No fundo, quando vejo os jovens a se manifestaram agora, entendo como um novo momento que o país está a viver. É isso que o MPLA e o Presidente da República devem analisar. É que as pessoas que se estão a manifestar, não o fazem pelo bem-estar social deles, mas sim por um valor que é superior a tudo: a liberdade, a oportunidade de poderem escolher. É esta dinâmica nova que, do ponto de vista sociológico, introduziu alterações profundas. Estes grupos são pequenos, sim senhor, mas todos começamos pequenos.
O próprio MPLA quando nasceu era um pequeno grupo de pessoas. Falo a mesma pergunta de outro modo: podem 200, ou mesmo 500 pessoas ameaçar o poderio de um partido com milhões de militantes e que nas eleições passadas obteve 82 por cento dos votos?
Acredito que o MPLA tenha ganho, por várias razões, mas não acredito que os 82 por cento sejam verdadeiros. Acho que ali houve engenharia eleitoral que deu essa vitória de 82 por cento. Agora, esta foi a legitimidade conferida em 2008. Até 2012 muitas coisas aconteceram e outras estão a acontecer. A legitimidade de uma eleição não garante a legitimidade para as outras eleições. Em democracia, os processos sociais, económicos e políticos estão sempre a alterar-se. Portanto, são quatro anos de transformações e não só aqui no país, mas sim no Mundo. Hoje não vivemos numa redoma, numa casa fechada. Vivemos num país que está aberto, através de vários meios, ao Mundo e tem sempre uma influência, quer positiva, quer negativa, sobre as pessoas. O que acontece hoje é que o MPLA, se quiser ganhar as eleições, tem que reconquistar o coração dos eleitores todos os dias. A política de conquista dos corações não é manipular as pessoas, mas criar condições para que estas pessoas se sintam bem economicamente, socialmente e também no que toca à liberdade. Quando estudava era o melhor aluno do Instituto Comercial. Os meus colegas eram bons alunos, estudantes, o próprio Presidente Neto, o Mário de Andrade, eram médicos, sociólogos com grande gabarito intelectual, mas foram eles que preferiram deixar as oportunidades que o colonialismo lhes podia ter dado para iniciarem o processo de luta. Portanto, nós temos que interpretar aquilo que está a acontecer hoje à luz da nossa experiência, e foi aquilo que nos levou à luta pela independência. O que os jovens querem não é só emprego, querem liberdade. Os jovens hoje querem a oportunidade de exprimirem as suas ideias, de poderem participar de uma forma aberta. Se estas condições forem criadas, é óbvio que isto será bom para o país, os processos serão pacíficos e não violentos. Mas se houver repressão deste sentimento genuíno é óbvio que o país pode conhecer momentos parecidos àqueles que aconteceram nos outros países. Esta é a dinâmica da história.
Faz sentido compararmos o que está a acontecer agora em Angola com o que se passou no que é, hoje, convenciona
lmente chamado de primavera árabe?
Com uma diferença: No Egipto, o Presidente também estava há longos anos no poder, também tinha mandado construir auto-estradas. O Mubarack fez obra, mas o que lhe impediu de ser reconhecido? Ele quis abafar aquilo que é a liberdade das pessoas, quis abafar também a própria essência dos partidos políticos. A Irmandade Muçulmana não era reconhecido como partido político, embora estivesse representada no Parlamento. Nós, em Angola, temos partidos políticos que têm tradição de oposição, nomeadamente, a UNITA, que é um partido antigo, e a FNLA, são partidos da oposição e da luta de libertação, mas também temos partidos novos. Temos no país, um conjunto de forças políticas que já estão organizadas ou que se estão a organizar, no caso do Egipto não. As forças políticas do Egipto estão-se a refazer, a constituir agora. Na Tunísia havia partidos políticos, mas inactivos, sem grande expressão e sem qualquer legitimidade histórica. Aqui temos, pelo menos, dois cuja legitimidade histórica foi-lhes dada pela luta de libertação. Além do MPLA temos a UNITA e a FNLA, independentemente da situação que estes partidos estejam a viver, mas são partidos com uma legitimidade histórica.

Na Líbia, aí toda a gente sabe que não havia partidos políticos, o caos instaurou-se. E quem é que se confrontou?
Não foram partidos políticos. O exército líbio é que se dividiu. Uns ficaram com o Kadhafi e outros associaram-se aos manifestantes, que eram os jovens, e vemos o que aconteceu. Portanto, nós temos condições para ter um processo de evolução democrática pacífico enquadrado pelos partidos políticos. Temos condições para que o processo seja controlado, acompanhado pelos partidos políticos. Quando digo controlar é no sentido de não deixar as coisas descambarem. As coisas são ordeiras quando há intervenção dos partidos políticos, mas eles têm que ter o seu espaço de intervenção. Porque se forem impossibilitados de se manifestar e exprimir aquilo que eles pensam, vai acontecer que a rua vai tomar conta da política. A rua e eventualmente os quartéis, porque é assim que acontece no mundo. Os exércitos não podem ficar indiferentes a situações de confusão, muitas vezes tomam parte por um lado ou pelo outro, às vezes dividem-se. Penso que já tivemos uma experiência muito dolorosa para fazer com que o exército entrasse nesta situação. Penso que as FAA devem estar no seu lugar, de garante da defesa e da integridade do país e do próprio sistema e deixar que a vida política seja conduzida pelos partidos. É preciso que se faça esta separação, só assim poderemos falar de uma República, como é a nossa.
Alguns políticos do MPLA não receberam muito bem essas manifestações e pronunciamentos que ouvimos nos últimos dias acabaram por ser mais agitadores que tranquilizantes. Como recebeu esses pronunciamentos?

Em relação ao primeiro secretário do MPLA para Luanda, penso que foi excessivo na linguagem. Usou uma linguagem excessiva e baixa. Acho que ali, ele errou. Ele podia ter feito a defesa, que estava no seu direito, da imagem do presidente do MPLA, nesta qualidade, não na de Presidente da República, usando uma linguagem mais educada. Não foi educado na forma como falou e também usou uma linguagem inflamatória, incendiária. E também confirmou aquilo que muitos suspeitam: que há uma ligação muito estreita entre o MPLA e o Estado, até os serviços secretos. Ele fez referência a estes aspectos. Ao invés de fazer bem ao MPLA, fez mal. Quando falou, falou perante os canais centrais, todo o mundo ouviu, todo o mundo gravou. Ele provou que existe uma confusão, um conúbio entre aquilo que é o MPLA e o Estado, incluindo as próprias forças policiais, as secretas. O ministro do Interior, penso que, também, devia ter sido um pouco mais recatado em relação aos factos. Quando referiu que as imagens podiam ser manipuladas, aí já entrou num terreno em que as imagens podem ser manipuladas. Afinal pode-se manipular, e estas imagens podem ser manipuladas por um ou por outro. Portanto, acho que neste aspecto excedeu-se. Outra figura foi o ministro das Relações Exteriores: há pessoas que eu penso que às vezes só dizem coisas para tentar garantir que cristãos-novos.
Sem dinheiro e sem a comunicação social, como referiu, não lhe parece essa luta da Oposição inglória? É possível fazer-se frente a um gigante como o MPLA?
É. Quando fizemos a luta de libertação nacional, como é que a fizemos? Eu tinha 13 anos quando comecei a organizar células aqui. Éramos miúdos, os outros poucos mais anos tinham. Agostinho Neto, Mário de Andrade, Savimbi, Holden Roberto eram todos jovens quando começaram o processo. Não tínhamos o apoio de ninguém, fizemos a luta de libertação nacional e hoje somos um país independente. Agora, o importante é entender as causas e a motivação. Muitos dirigentes do país, não todos, não têm qualquer ligação com a luta de libertação nacional. Uns porque não tinham idade, outros e até porque não queriam meter-se nestas coisas, como se dizia antigamente. Agora, aqueles que têm a experiência, na luta de libertação nacional, sabem muito bem que o foi o desejo de independência que os motivou, foi a liberdade para o nosso povo. Isto é mais forte que o dinheiro. Todas as grandes transformações sociais são feitas porque há vontade de as realizar. Isto é o principal, e é o que engana muitos líderes. Enganou o Mubarak, o Kadhaffi e o Ben Ali. O Egipto, a Líbia e a Tunísia, do ponto de vista económico, estavam na primeira linha do crescimento em África, o património físico era reconhecido. Na Líbia o que é que se verifica: toda aquela luta, que continua em alguns sítios, mostra que as pessoas combateram com carros de qualidade. Não vi sinais de pobreza nas imagens que passavam pelas televisões do mundo. Quer dizer que o que motivou aquelas pessoas a sair à rua foi a vontade de criar coisas novas nos seus países, não foi a mera satisfação material que os levou a estas situações. Quer dizer que quando o Presidente disse que a democracia e os direitos humanos não enchem a barriga disse uma coisa que é um erro político. Direitos humanos e democracia enchem sim a barriga, porque os países mais desenvolvidos, mais avançados são precisamente aqueles em que os direitos humanos e a democracia estão mais consolidados. Há uma frase bíblica: nem só do pão vive o homem. Quer dizer que o ser humano é movido, em última instância, pela ânsia de liberdade. Este é o dado principal. As pessoas necessitam de liberdades. Somos como as crianças perante os nossos pais: manifestamos o desejo de sermos nós mesmos, de termos a nossa identidade. Só conseguimos ter a nossa identidade quando somos livres e é isto que move a história.
Acusa-se, amiúde, os países ocidentais de terem provocado os ventos primaveris nos países árabes, a ponto tal que muitos políticos temem que esses interesses se arrastem para o nosso país… Estes países já estão aqui. Então quem são os grandes investidores?
São os Estados Unidos, França, Inglaterra todos países chamados ocidentais, estão aqui. A legislação sobre o investimento privado, ainda agora aprovada, foi no sentido de reforçar a presença desses países. Quando se estabelece, na Lei do investimento privado, um limite mínimo de um milhão de dólares para investir, quem é que está em condições de cumprir esse requisito? São os países ou as pessoas ricas. Não somos nós, os angolanos, que temos um milhão de dólares para investir. Portanto, essa legislação de investimento privado é para fortalecer a presença destes países. Quem são os parceiros das nossas empresas, quer as públicas ou privadas?

São indivíduos desses países ocidentais, que são as principais fontes de investimento directo privado e do financiamento para o nosso país. Quando as pessoas falam desses países, estão a tergiversar e não a falar de uma forma clara. Além disso, há questões de ordem estratégica como aconteceu na Líbia. Quando o Kadhaffi disse que entregaria o seu petróleo, não é dele, é do povo líbio, à Rússia, China e Índia, excluindo os países europeus e a América, ele condenou-se por si mesmo. O petróleo é um recurso energético estratégico, a Europa ocidental não é grande produtora de petróleo, mas precisa dele, que é a principal matéria-prima, mercadoria, e fonte de energia. E, naturalmente, do ponto de vista estratégico, os países ocidentais viram isso como uma hostilidade que teria impacto tremendo sobre as suas economias. Então, ajudaram e facilitaram aqueles indivíduos que se rebelaram contra o Kadhaffi. Quer dizer que quando falamos devemos ter contenção na língua. Mesmo quando estamos indignados, devemos ter cuidado com a linguagem. E quem exerce funções de Presidente, ministro ou líder partidário tem que ter cuidado com a linguagem porque quem nos ouve leva a sério o que dizemos. Na história é assim, quando um país está ameaçado naquilo que toca a sua estabilidade, o seu futuro, esse país tem que agir.
Portanto é sempre o petróleo a servir de combustível para o que aconteceu no mundo árabe…

O petróleo e os outros recursos naturais estão sempre no centro dos conflitos. Na África, primeiro foram os escravos, mas depois deixaram de ser e começaram a ser as matérias-primas. A Europa fez-se em grande parte com os recursos da América Latina, Ásia e África e de uma forma violenta. Hoje já não é assim. Antigamente davam-se golpes de Estado por causa disso, no Iraque, África na América Latina. Hoje já não é assim. Mas devemos ter em conta que não devemos ferir os interesses estratégicos dos outros países. Quando defendemos os nossos interesses estratégicos, devemos procurar fazer com que os interesses estratégicos dos outros sejam tidos em conta. Por isso é que há o comércio internacional, acordos entre os países, as parcerias. Em Angola, falamos muito em parceiros estratégicos, é nesse sentido: construir uma economia mundial, um mundo onde todos possam beneficiar dos recursos mútuos. Isto tem acontecido, e não hostilizar os outros porque não concordam connosco. Na política e no mundo devemos nos conduzir tendo em conta que o comércio deve ser um jogo de soma positiva, em que todos ganham. Não um jogo de soma nula em que só um ganha e o outro perde. Penso que o mundo mudou, mas devemos continuar a ter cuidado com a língua no sentido de não fazer despertar aquilo que pode ser a reacção dos outros.

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