segunda-feira, 10 de outubro de 2011

JOÃO STATTMILLER. Samba Blues ou Os Blues da Samba


Ao Pai Neves

“Hoje meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicoanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência.“
Jorge Amado

A estranha criatura surgiu envolta num fumo espesso que se espraiava pelo chão como uma carícia, tinha olhos grandes e escuros como a noite. Ao seu lado um peixe voador numa dança indecifrável embalando o ritmo que um macaco de barbas brancas imprimia ao djembe. O pequeno respirou fundo e disparou:
Venho da parte de Mãe Ana. Estou aqui para que me leves a fazer xixi.
Xixi?!?! exclamou uma voz vinda de cima. Nzoji abriu os olhos e deu de caras com Mingota.
-Mijão - disse ela com ar de gozo - hoje vamos ter sol no terreiro. Vai tomar banho enquanto preparo o mata-bicho. O petiz consentiu ainda meio ensonado e confuso com o sonho.

Mingota era a filha de Dona Domingas, afamada por lavar a roupa suja até dos brancos, de manhã era ela que recolhia o alimento do tanque, fazia-o sempre sorrindo, mesmo quando encontrava o lençol molhado. Viviam numa casa curiosa, uma casa de fora p´ra dentro, no centro um grande terreiro fervilhava de movimento. Quando chegou, ainda saboreando o pão com goiabada, já os varais exibiam um colorido invulgar.
- Esse minino anda a sujar o lençol toda a noite isso assim não pode ser temos que lhe levar no Quimbanda, decretou dona Domingas apontando o círculo amarelo no lençol.

-Isso deve ser algum calundú que está vir lhe visitar, afiançou prontamente a velha Joaquina, côta experiente nestas andanças.
- Mãe Ana tem masé de arranjar um garrafão de vinho e um cabrito para aquietar os visitadores, disse o velho Boavida ainda ajeitando o cabelo no pequeno espelho que trazia sempre consigo.
- Quando Pai Branco regressar da mata vou lhe inteirar, retorquiu Mãe Ana ainda não completamente convencida.

Nzoji era o único filho de Ana e Noé Castelo Branco, no bairro da Samba todos os conheciam. Ele veio do Bailundo, sua terra natal, para Luanda onde se tomou de amores por uma mulata com quem acabou por casar, mas mesmo assim nunca conseguiu resistir ao chamamento que dentro dele sempre existiu. Noé passava grandes temporadas no sertão, outras no mar. A geologia e as minas contextualizavam pulsões mais fundas, ânsias de movimento. Ana, era camundonga convicta, rendida às vantagens da electricidade e água corrente. Não gostava de matumbices e alimentava o sonho de um dia ver os filhos casarem com brancas para “não atrasar a raça” como costumava dizer. A sua visão da realidade era simples:

- Ninguém quer ser preto.

A opinião era partilhada por muita gente e resultava na proliferação de mulatos e ambi, um produto importado do Zaire que clareava até preto di guiné. As revistas chegavam regularmente da metrópole trazendo fotos dos heróis do momento, que claro eram todos brancos e a administração central praticava uma rigorosa política de assimilação, afinal até Deus era branco.

- Xê minino Deus têm cor? - Tem sim tia.
- Qual é então essa côr que está com ele?!?.
- É mesmo branco, onde já se viu Deus preto!?

A velha Joaquina arregalou os olhos.
- Você já viste árvore branca ? Pergunta ela.
- Se não for branca lhe pintam de branco. Responde o miúdo decidido.
- E esses piriquitos que estás toda a hora a brincar com eles, também vais lhes pintar de branco ? Diz a velha. O pequeno vacilou.
- Diz-me Nzoji tu gostas desses piriquitos porquê?
- Porque voam e têm muitas cores. Diz ele.
- Então Nzambi não pode ser os teus piriquitos. Conclui a velha.

Dizendo isto a velha Joaquina afasta-se. Apesar de ser irmã de Mãe Ana não conseguia deixar de achar estranhas estas novas ideias. Como poderia ela abandonar-se aos dogmas duma fé descolorida. Calar as vozes ancestrais que povoam a Samba não é possível, mesmo para quem pensa ver Deus em figura de branco na cruz. Esse pensamento sossegou-a. Seu marido, Deóstenes Boavida, era um preto meio cafuso que ainda jovem abandonou as margens do Kwanza em busca das promessas urbanas que Luanda preconizava. Encontrou um salário de ajudante nos correios e uma mulher que não lhe deu filhos. Cedo se rendeu aos prazeres etílicos tornando-se um boémio afamado nos botecos da Samba, onde contava estórias de terras distantes ilustradas com os selos que foi juntando ao longo dos anos.
- Esse vem do outro lado do mundo, murmurou.
- Deixa ainda ver, pediu alguém esticando o olho.
- O mundo desse lado, continuou o velho, não tem casas de pau-a-pique nem pretos. Os brancos lá não trabalham, existem grandes máquinas que fazem tudo por eles.
Do fundo uma voz: - Então se os brancos lá não trabalham vêm aqui fazer quê? Ouvem-se risos que se esbatem ao entrar no boteco um branco inglês chamado Brown. - Procuro Boavida, diz o branco. O velho assinala-se por detrás da plateia e sai em silêncio acompanhando o recém-chegado. Já na rua, Brown entrega-lhe uma trouxa de roupa e um pequeno embrulho depositados nas traseiras de sua, Dodge Power.
- Noé mandou a roupa e este embrulho para entregar a Dona Ana, diz, ao mesmo tempo que leva a mão ao bolso.
- Toma este dinheiro.
O velho recebe a nota e regressa ao interior do boteco.
- Uma para todos, diz bem alto e senta-se. A voz ao fundo torna-se visível, um preto alto e encorpado com olhos felinos aproxima-se.
- Posso sentar? Pergunta. Boavida acede com a cabeça enquanto o dono do boteco enche os copos.
- Sei que o mais velho se mexe bem nos correios e estou aqui para lhe pedir um favor. - Queres o quê?
- Quero enviar umas cartas para o Estrangeiro.
- E é quem esse Estrangeiro?
- É um homem comum que percorre a América de moto, nunca sei onde se encontra mas tenho o endereço de um posto de correios por onde passará dentro de algumas semanas.
Boavida cruza o olhar com o seu interlocutor e olha em volta.
- Mostra então.
O outro entrega-lhe as cartas com o respectivo endereço anotado num velho pedaço de papel. Silêncio. Boavida leva o copo à boca e bebe o conteúdo de um só trago, em suas mãos o endereço de uma caixa postal em Valparaíso no Chile.
- Deve ser importante para ti esse Estrangeiro... Diz Boavida.
- Partilho com ele identidade de aspirações e conjunção de sonhos. Responde o homem. Os seus olhos perdem-se por instantes, lembranças de infância aflorando o pensamento. Trago sempre comigo suas cartas que são para mim mais preciosas que as pedras da Lunda. Das cartas soltas entre suas mãos sobressai um papel vermelho com uma foice, um martelo e uma roda dentada.
- Xiça omé!!! Irrompe bruscamente Boavida.
- Não me digas que és comuna!?!
- E isso é quê, ser comuna? Diz o outro. Comer criancinhas ao mata-bicho? Jurar fidelidade a Lenine ou Mao? Achar que devemos viver em comunidade de bens? Se queres mesmo que te diga pouco me interessa. Neste momento a minha preocupação é fazer chegar estas cartas ao Estrangeiro, dentro de poucos meses parto para o Congo e quero estar seguro de que ele receberá a mensagem. Os camaradas do partido disseram que és de confiança, por isso estou aqui. Quero que esse homem venha juntar-se a nós, a sua mensagem é importante para a luta.
- Mando as cartas mas não quero saber dessa luta, se os tugas descobrem estou desgraçado, diz Boavida engolindo em seco. O outro fixa o olhar no velho por instantes depois acende um cigarro.
- Um dia vais perceber que não se pode vencer sem lutar. Até lá serás um escravo. Aquele que faz o branco prosperar, ter barriga grande, dinheiro.
Boavida escuta em silêncio, as faces crispadas. No velho rádio ao canto do boteco o golo do Benfica é reverberado por um locutor eufórico.
- Não te preocupes, para eles não passas de um sipaio do pessoal dos correios. Acham que és demasiado velho para ser perigoso.
- Mesmo assim não vale a pena facilitar, é melhor não me procurares mais aqui. Não quero makas.
Nisto, entra novamente Brown. Boavida toma as cartas e afasta-se em direcção à porta. Ele sabe que se trata de um dos cabecilhas da revolta que alastra no sertão. As cartas são para Ernesto Guevara, jovem Argentino em fuga para norte.

Na rua deserta, Boavida carregando uma trouxa de roupa suja, um pequeno embrulho e um punhado de cartas, sente que também ele tentou um dia sua fuga. O camião na estrada galgando o mundo. Braços negros para construir arranha-céus em Luanda. Sim, ele também fugiu um dia...
(Texto corrigido por: Gil Gonçalves)

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