terça-feira, 17 de junho de 2008

Cultura Tradicional Bantu (VI)


Ritos fúnebres
Pelo contrário, se se realizarem com descuido ou forem deformados, o defunto esquecido vagueará sem destino, desgraçado, e o olvido dos seus acarreta desprezos e terríveis vinganças para os vivos. Converte-se num perigo permanente e pode ocasionar males.
A solenidade dos ritos está em proporção com o prestígio social e, sobretudo, com a influência vital do defunto. Os chefes merecem honras especiais que se revestem da maior solenidade, com a reunião da comunidade. Assim, conservam o seu estatuto social no outro mundo e não guardam ressentimentos contra as suas comunidades que, por outro lado, desejam prestigiar-se com pomposas festas, as comidas, bebidas e danças adquirem tal relevo, que não há festa que as supere. Vi, nestas ocasiões, sacrificar até quinze bois! As festas poderão prolongar-se por um mês se o chefe for importante.

Está bastante espalhado o costume de deixar corromper o cadáver do chefe até que a cabeça se desprenda do tronco. O crânio deve ficar para o herdeiro, como feitiço protector. Às vezes, arrancam-lhe as unhas para fabricar poderosos feitiços ou manter viva a sua presença, já que a sua personalidade se prolonga até aí.
Confiam tanto no seu poder que, em muitos grupos, os dignitários o sepultam num lugar escondido, por exemplo no leito dum rio, para evitar que seja esquartejado e a sua carne destinada a vivificar feitiços.

Foi frequente ocultar a morte do chefe durante meses, até um ano por vezes. Talvez tentassem evitar convulsões sociais ou fosse exigido por situações políticas.
O luto pelo chefe pode durar várias semanas e obriga a todos. O trabalho é proibido. Nalgumas partes, a infracção castigava-se com a morte. Os que morriam durante o luto não podiam ser enterrados.
Os escravos não tinham honras fúnebres visto que a sua nula influência social não os tornava temidos nem havia interesse algum em os prestigiar como antepassados.

Também não são necessárias quando morre um estrangeiro. Como este não participa da interacção derivada da consanguinidade, a comunidade não tem nenhum interesse em o naturalizar entre os antepassados.
A infâmia de certas enfermidades ou a brutalidade do rompimento da vida não oferecem garantias duma acção benéfica. Além disso, seria um insulto aos antepassados. Assim, são excluídos, os suicidas, os tarados psíquicos, os epilépticos e os celibatários.

Logo depois de morrer, enterram os feiticeiros, quase sempre mutilados (partindo-lhes as pernas, por exemplo) para que não voltem, ou abandonam-nos aos animais, ou queimam-nos e dispersam as suas cinzas ou lançam-nas à água.
Nalguns grupos, também sofrem esta sorte os que morrem de fome. Tem receio que, se forem enterrados dentro do território comunitário, a propaguem.
Há grupos que crêem que os condenados por feitiçaria se revestem, no além, de um corpo insignificante, repugnante, com um cheiro nauseabundo e com cabeleira encarnada. Levam uma vida errante por regatos e mananciais, encarnam em bestas ou em gatos (por isso, rejeitam este animal) e comem carne humana.

Castigados a não participar na vida dos seus parentes, dedicam-se a transtornar o ritmo de vida individual e comunitário. Pela sua índole malévola, inveja, ressentimento e vingança, podem ocasionar toda a espécie de males, inclusive convulsões sociais. Até conseguem possuir indivíduos. Rondam de noite pelas aldeias e intervém no feiticismo. Podem aparecer aos vivos em forma de espectros ou fantasmas. A sua visão produz a morte do visitado ou de algum familiar.

Logo que alguma pessoa morre, os seus familiares começam a chorar, a gritar e a dançar sem cessar, com um ritmo cadenciado e monótono. Lamentam a sua perda, chamam-no pelo seu nome, agradecem os seus favores, exaltam as suas virtudes, amaldiçoam o causador da morte e desejam a felicidade ao defunto.
Os parentes e amigos acompanham a gritaria com gestos, contorções e danças. Assim, demonstram aos antepassados a bondade do falecido, que procuram contentar para que não regresse carregado de influências nefastas. As festas, além disso, entretêm e dão coragem ao defunto enquanto espera a sua transformação em antepassado.

Lavam, o cadáver, vestem-lhe as melhores roupas, perfumam-no ou besuntam-no com óleo de palma. Alguns grupos, depois de o desnudar e antes que lhe chegue a rigidez, colocam-no na posição em que deve ser enterrado: sentado de cócoras, com os braços sobre o peito.
Cobrem-no com um pano, manto ou pele de boi e fica sentado numa cadeira ou deitado numa esteira. Assim preside às festas. Os familiares e amigos passam pela sua frente a saudá-lo antes de participar nos ritos.

Esta preparação do cadáver não só honra a sua família como privilegia o defunto, que se apresenta com dignidade no além-túmulo.
Não praticam nenhum género de mumificação, embora por vezes esvaziem o cadáver apertando-lhe o ventre.
Logo que uma pessoa morre, saem os emissários a comunicar a notícia à parentela. Todos têm de ser avisados ainda que se encontrem distantes. É que o parente que não vai aos ritos pode ser acusado da feitiçaria causadora da morte. Além disso, é um dos momentos em que mais se acentua o sentimento de solidariedade comunitária já que colaboram com o parente para que encontre paz.

Mesmo que trabalhem na cidade, deixam as obrigações e deslocam-se às suas aldeias. Só circunstâncias extremas podem impedir a participação nas festas fúnebres dum familiar.
As cerimónias duram dias. O cadáver costuma chegar a decompor-se. Abundam a comida e a bebida. Matam bois, cabras, porcos, e galinhas. Cada familiar contribui com algum presente. As mulheres preparam as bebidas tradicionais, os instrumentos de música arrancam e a dança começa.
Comendo e bebendo, conversando e dançando, passam vários dias. São as grandes festas da sociedade bantu. E, como a mortalidade é grande e a parentela extensa, encontramos o bantu em frequentes festas.,

Não se esquecem de derramar um pouco de sangue das vítimas ao redor do cadáver para que participe também, ou com ele aspergem as paredes da casa para mostrar ao defunto e aos antepassados que os sacrifícios cruentos são propiciatórios e impetratórios. De vez em quando, um dos parentes chega junto do cadáver e oferece-lhe um bocado ou um gole que entorna a seus pés ou lhe introduz na boca.
Estas comidas e bebidas tentam diminuir a tristeza do morto para que se conforme com a mudança operada.

Suspeitamos também que estes sacrifícios de vítimas animais encerram um conteúdo sagrado, sacrificial e inclusive de aliança, que hoje se perdeu ou que não conseguimos captar. A dança e a alegria exteriorizam o prazer da participação conseguida «mistericamente». Assim, mundo invisível e visível fundem-se na mais eficaz comunhão e o defunto honrado torna-se definitivamente comungante-participante com os dois mundos

A maioria dos grupos sacrificam animais, sobretudo bovinos, somente nestas festas. Embora precisem de proteínas e sendo o bantu um apreciador incansável de carne, reservam os seus animais para os alambamentos e para aos sacrifícios propiciatórios. Os ritos fúnebres, pela abundância de animais mortos, desempenham uma missão compensatória do desequilíbrio alimentício e da errada dietética.
Estes ritos terminam com uma refeição que consolida a familiaridade. Decorre no meio de muita alegria porque o defunto já está satisfeito, em companhia dos seus antepassados e pronto a revigorar a sua comunidade.
In Cultura Tradicional Bantu. Pe. Raul Ruiz de Asúa Altuna. Edições Paulinas
Gil Gonçalves
Imagem:
http://www.macua.org/livros/olhar1np.html


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