domingo, 20 de junho de 2010

A “Doença” de Angola


Se em Angola houvesse indústria diversificada, poder-se-ia dizer que a sua economia foi vítima da “doença holandesa”, (ou Dutch disease), um conceito económico que procura explicar a aparente relação entre a exploração de recursos naturais e o declínio do sector manufactureiro de uma dada economia.

ANTÓNIO SETAS. FOLHA 8

A “doença” em questão ficou assim conhecida porque durante a década de 60 verificou-se uma subida nos preços do gás que aumentou substancialmente as receitas de exportação da Holanda, na altura, país rico neste produto.
Identificada no fim dos anos 70 quando a exportação do gás provocou uma grande entrada de dólares, valorizando deste modo a moeda local (o florim na altura), o que aconteceu foi essa valorização do câmbio ter por demais reduzido a competitividade da indústria holandesa e, portanto, estimulado a importação, levando a um inopinada desindustrialização.
É por essa razão que desde então os economistas chamam doença holandesa uma situação em que a grande exportação de um produto leva a valorização da moeda nacional de um dado país, tornando os seus produtos manufacturados menos competitivos, o que pode levar a uma desindustrialização.

Como sobredito, Angola não vive exactamente este fenómeno, visto não ter indústria que se veja, nem moeda que se compre, mas a verdade é que a sua economia gravita em torno do petróleo, o principal produto de exportação, vendido de forma bruta, uma vez que capacidade de refinação do crude em Angola é, por enquanto, quase nula. E a sua economia depende muito do petróleo, situação na qual se integra um quadro pouco reluzente, com os mais de dois terços da população angolana a viver na miséria.

Muito recentemente foi anunciado um financiamento de 350 milhões de dólares de incentivo ao sector da agricultura. Porém, para além de essa verba ser muito parecida com um balde de água atirado para apagar as labaredas do inferno, o próprio plano de incremento agrícola, diz-se, articula-se em torno de uma ideia de monocultura, o que talvez não seja a melhor maneira de combater a pobreza reinante em todo o território de Cabinda ao Cunene.

Espera-se, sim, uma diversificação que só será possível com um forte financiamento de projectos agro-industriais para pequenas e médias empresas, e, mais que tudo, o país precisa de fortes investimentos (acima dos 20% do OGE) numa educação de qualidade. Senão, Angola continuará a ser um país rico, mas apenas exportador de matérias-primas brutas com a maioria da população extremamente pobre, e com os piores indicadores sociais do mundo como se verifica actualmente.

O combate à corrupção
A corrupção em Angola apresenta-se com um verdadeiro cancro da governação, a ponto que se defender a ideia de que já é uma instituição de Estado. E o Presidente Eduardo dos Santos (PR), ciente da situação, resolveu atacar o problema de fronte, instaurando verbalmente um sistema repressivo do tipo “Tolerância Zero”. Que se insere muito bem num fabulário divulgado recentemente pelo jornalista e pesquisador de renome internacional, Rafael Marques, que passamos a transcrever.

«Um gato introduziu-se num armazém onde os ratos viviam tranquilamente. O gato realizou uma grande matança o que obrigou os ratos sobreviventes “a convocar um conselho geral para debater a situação e encontrar soluções”. Muitas soluções foram aventadas e rejeitadas, até que foi entusiasticamente ovacionada uma: atar um guizo ao pescoço do gato e assim com a sua deslocação, pondo o guizo a tocar, os ratos, prevenidos, tinham tempo para se pôr a salvo. Mas, um rato velho, com a experiência dada pela idade, levantou-se e perguntou, “E quem vai atar o guizo ao pescoço do gato”? A reunião terminou num silêncio tumular.»

Sejamos realistas, há casos que não podem ser abordados no quadro da implementação da “Tolerância Zero”, pela simples razão de o discurso do PR se assemelhar então a um tiro nos pés. Dois exemplos. Comecemos por Isabel dos Santos.
Essa senhora, recentemente atacou em justiça dois jornalistas portugueses, tratando-os de pouco mais que mentecaptos por eles terem posto em dúvida a cristalina fonte de fundos monetários que lhe permitiram ser a mais poderosa mulher de Angola, talvez da África. Ora, sabemos que por volta dos 20 anos de idade, Dona Isabel não tinha riqueza alguma e, portanto, convidamo-la a vir a público revelar como, em tão poucos anos, ela se encontra prestes a entrar na bíblia pagã dos multimilionários da Agenda FORBES de 2010. Não custa nada, é só explicar como foi possível as suas posições accionistas atingirem muito mais de 2 mil milhões de dólares.
Atenção, isto, se for credível a avaliação realizada em Setembro pela consultora AT Karney, segundo a qual, somente no BCP, BPI e GALP Energia, as suas quotas valerem hoje cerca de 1.813 milhões de euros a preço de mercado).

Senão ficamos por aqui, e a senhora que guarde o seu rico dinheirinho!
O outro exemplo é dado pelo PCA da Sonangol Holding, Manuel Vicente.
Depois de o investigador Rafael Marques ter revelado que o engenheiro Manuel Vicente tem um por cento do produto do petróleo, tudo leva a crer que estamos perante mais um gato escondido com rabo de fora, pois a Sonangol não necessitava de colocar as acções em nome próprio de cidadão nenhum, uma vez que o Estado Angolano constituiu há bastante tempo uma sociedade de participação de capitais públicos (IPE), justamente para representar a outra parte, isto é, o outro sócio, sempre que empresas do Estado necessitem de recorrer a esse mecanismo.

E o que é revelador da indigência de argumentos para justificar o caso, é a falácia usada para contestar esta denúncia do Rafael, apresentada precisamente por gente ligada aos petróleos, no dia 18-05.10, a fazer grande alarido em tudo quanto era serviço de notícias nos mídias estatais, com o ministro dos Petróleos a encabeçar uma legião de altos dignitários que simplesmente disseram que a Sonangol é o orgulho de Angola, pela sua sapiente gestão, pela sua credibilidade a nível mundial e pela formidável transparência (sic) dos seus balanços e balancetes. Foi quanto baste, Manuel Vicente continua de pedra e cal no seu posto de PCA, o que quer dizer, entretanto, no que toca à implementação da famigerada “tolerância Zero”, que ela só foi exibida, EXIBIDA, NÃO EXIGIDA, pelo PR. Assim, até ver, trata-se de “tolerância É zero”, falta só tirar o “é”.

Boémia pobre a rir da própria pobreza
Em Luanda, o local predilecto da boémia é a ilha.
A ilha de Luanda! Que se transformou em local de lazer de luxo – uma cerveja pode custar mais de 4 euros, uma refeição de qualidade média, mais de 50 - depois do Memorando de Entendimento de Luena, em 2002, que pôs um termo a uma guerra civil de mais de 30 anos.
Antes, era simples local de prazer, para toda a gente, com os seus escaldantes “pombais de amor”, cantados pelo músico angolano Carlos Burity, de facto simples viaturas que se aglomeravam em certos sítios da ilha, na “Floresta”, ou ao lado do hotel “Panorama” com casais sôfregos, talvez de amor, em todo o caso de sexo.

Mas isso acabou. Os polícias, que antes eram simples mirones e interrompiam os evidentes coitos que por ali de desenrolavam para obter em troca uma espécie de multa, em troca de um perdão de um “autenticado” atentado à moral pública, foram intimados a acabar com a festa. E acabaram os “pombais de amor”…
Depois de 2002, seguiu-se um ano de expectativa em que muita gente enriqueceu comprando casotas na ilha ao preço da chuva. Algumas delas foram vendidas muito barato, uns milhares ou no melhor dos casos por umas poucas dezenas de milhares de dólares, para a partir de 2005, 2006, e por aí adiante, serem negociadas a partir das centenas de milhares!
A partir dessa altura, a ilha encheu-se de restaurantes, com ou sem praia privatizada, bares, discotecas, snacks, e alguns centros culturais, um dos quais de grande qualidade, pela beleza do local e, sobretudo, pela alta qualidade humana e artística da proprietária, Marcela Costa, uma das mais importantes figuras das Artes Plásticas de Angola.

É para ali, para a ilha de Luanda, que hoje vão “disbundar” (fazer a festa) os luandenses da alta e média classe, sem terem receio de conviver ou pelo menos de se cruzar com um ou outro dos muitos refugiados de guerra que ali se radicaram para fugir das miseráveis, inaceitáveis e perigosíssimas condições de vida que lhes tinham sido impostas por quase trinta anos de guerra civil.
Homens, mulheres e crianças, com o acréscimo de umas quantas a nascerem pelo caminho, fugiram das suas terras e fundaram “aldeias de lona” - com “casas” feitas de quatro paus a pique enterrados na areia e uma lona por cima a tapar o espaço entre os paus - ao longo das praias da ilha, na Floresta, em frente ao Lello, na Xicala e em outros sítios, segundo a frequência com que eram escorraçados pela polícia dos sítios onde se iam instalando. Foram quase todos escorraçados definitivamente em nome da implementação de projectos imobiliários milionários.

É claro que isso era de esperar, na sequência lógica dessas múltiplas e por vezes compulsivas mudanças de “residência”. Esses transumantes involuntários estavam condenados a serem duma vez por todas postos dali para fora e obrigados a retornar aos seus lugares de origem, ou a outro qualquer, casa de um parente, casa de lona no Zango (como foi o caso para a maioria), ou mesmo em casa do diabo. E talvez nem tivesse sido tão mau como isso, eles terem saído da ilha, pois a vida que ali levavam estava muito abaixo do nível mínimo de dignidade humana.
Agora, na ilha, está quase tudo limpo. E na euforia que lá se instala nos fins-de-semana, o que surpreende é ver a alegria estampada no rosto dos miseráveis que ainda por lá estão a viver.

Imagem: http://blogvisao.files.wordpress.com/2007/06/angola10m.jpg

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