terça-feira, 8 de junho de 2010

A Ocidente do Paraíso (68). Colonos! Vão para a vossa terra! Vamos matá-los todos!


No escritório informaram-me que alguém estava à minha espera, com uma carta para me entregar vinda de Portugal. Com grande surpresa vi que era do Neves.

Paris, 5.12.74
Meu Caro
Tive hoje a agradável surpresa de encontrar entre a documentação vária que tenho guardada, um papel contendo o teu nome e endereço. Não imaginas como fiquei contente. Eu que tantas vezes me tenho lembrado de ti e dos bons momentos que passámos lado a lado no RTm (Regimento de Transmissões) aturando o cabo Silva ou entretendo-nos a fazer aviões de papel.
Pois meu grande amigo por aqui ando desde há dois anos, altura em que, tendo sido mobilizado para ir combater os patriotas Guineenses, preferi o exílio que ir matar e morrer numa guerra que me parecia já na altura injusta e perdida.
Foste e continuas sendo o único indivíduo da tropa que me mais saudades me deixou e praticamente o único que recordo. Creio que a já considerável consciência antifascista que possuías fermentou bastante a minha admiração por ti
Por tudo isso te escrevo hoje. Gostaria saber que é feito de ti e poder voltar a ver-te um dia. Espero pois com ansiedade as palavras que por certo não deixarás de me escrever.
Um forte abraço do Neves.
1 bis, Bed Montmorency PARIS 16eme

Depois de ler a carta do Neves fiquei muito pensativo… tantos revolucionários que andam por aí e não têm qualquer documento que justifique a sua luta por uma causa, que ateste a sua militância. Esta carta tornava-se um documento precioso para a história, que em qualquer momento podia ser divulgada, mas preferi guardá-la nos meus arquivos pessoais.

Em vários locais vêem-se escritas a vermelho as palavras, MPLA VITÓRIA OU MORTE, o que incomoda muita gente. Nos subúrbios a agitação é intensa sobretudo à noite. Muitos europeus fogem para a cidade e instalam-se em casa de amigos. Nas casas a arraia-miúda escreve, OCUPADO MPLA. Os roubos e a insegurança aumentam, fazem parte do dia-a-dia. As greves são constantes e selvagens. Aumentam-se os vencimentos anarquicamente, o custo de vida sobe astronomicamente. Fazem-se novas greves, os salários voltam a subir e os preços também. A inflação não pára. As empresas não suportam tal estado de coisas e vão-se abaixo. As ameaças são constantes: «Colonos! vão para a vossa terra! Vamos matá-los todos!»
Por precaução as famílias fogem de Angola, fica apenas o seu chefe, a ver o que isto vai dar. Muitos abandonam Angola definitivamente porque não existem condições para trabalhar. O nosso chefe da mecânica recebeu uma proposta da Volkswagen do Brasil e para lá foi.

Imagem: http://pissarro.home.sapo.pt/memorias23.htm

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