sexta-feira, 25 de junho de 2010

A Ocidente do Paraíso (74). Em português dizem para os brancos ficarem. Em kimbundu para correrem com eles.


No outro dia já sabiam, alguém viu. Nestas coisas é difícil esconder. Há sempre alguém como os ratos a vigiar.
Além do português a Tina falava mais duas línguas, o kimbundu e o umbundu. Alertou-me que na rádio o MPLA em português dizia uma coisa, e em kimbundu outra. E explicou-me:
- Em português dizem para os brancos ficarem. Em kimbundu para correrem com eles.

O senhor Figueira promoveu-me a primeiro escriturário e fui gerir a área dos carros de aluguer. Eram doze, e depressa notei que lhes roubavam peças. Fui ter com o chefe da mecânica e dei-lhe conta da ocorrência, mas ele pouco podia fazer. O primeiro carro que aluguei foi a um casal, dois dias depois espatifaram-no. Casaram, e depois da festa com os efeitos do álcool, saíram da estrada, entraram por um quintal, chocaram com um muro. Costelas, pernas e braços partidos. Mau começo para a independência. Outro carro que aluguei, o condutor seguiu para Malanje na negociata dos diamantes. Não teve sorte, assassinaram-no. O carro quando chegou estava cheio de sangue seco e larvas por todo o lado. Faltavam-lhe várias peças.

Como se tudo isto não bastasse, o filho do administrador recentemente chegado de Moçambique pegava em qualquer carro, e não me dava conhecimento. Aguentei o sector durante uns meses, até que o Figueira falou com o administrador e colocou lá o seu filho. Como não tínhamos ninguém nos serviços administrativos, éramos obrigados a tocar todos os instrumentos. Assim, trabalhávamos na facturação, nas letras, na tesouraria, na mecanografia, na secção de pessoal. Era muito pesado mas dávamos conta do recado. Além destas tarefas também distribuía trabalho para os componentes dos grupos de acção. Fazia isto deitado com um bloco de notas. Isto durava às vezes até às duas da manhã. Claro que acordava muito cansado.
Depois vieram os treinos. Agostinho Neto queria uma força especial – a ODP-Organização da Defesa Popular – para protecção das suas costas no dia da independência, e para proteger a cidade do vandalismo. Fazia questão que não se repetisse outro Congo.

Durante várias semanas treinámos no campo do São Paulo. A preparação foi-nos dada por um ex-comando do Exército Português do qual já não me lembro do nome... Paulino. Naturalmente que os treinos eram preparados à comando. Poucos dias faltavam para o grande dia. Chegava em casa e água não havia. Dormia todo sujo, cheio de pó por causa do rastejar. Estava uma situação muito preocupante porque a falta de água continuava. Três dias antes da grande festa desabou uma grande chuvada durante a noite. Aproveitámos a água da chuva e fizemos reservas. Estávamos safos.

Tínhamos dois cobradores cuja função era irem junto dos clientes e cobrarem o que nos deviam. Saíam de manhã com uma relação de cobrança e voltavam antes do fecho do expediente. Lamentavam-se que não conseguiam cobrar quase nada, porque onde se dirigiam não estava lá ninguém. Figueira telefonava para os clientes, e estes diziam que não apareceu por lá nenhum cobrador. De facto os cobradores apareciam sempre bêbados. Passavam o tempo a beber nos bares. Deixaram de respeitar as regras elementares do trabalho.

Imagem: http://pissarro.home.sapo.pt/memorias23.htm

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