quarta-feira, 9 de junho de 2010

A Ocidente do Paraíso (69). Não é o apanhar das casas dos brancos que tira esta gente da miséria.


Confessaram-me que a Marta tinha alguns desmaios no local de trabalho. Que não se sentia nada bem. Ela e a família foram para Portugal, deixando a habitação abandonada.
Entretanto o MPLA lança a palavra de ordem da instauração do poder popular. Todos querem ter carro, e ficarem ricos com os despojos: «Temos que roubar tudo aos colonos porque o que eles têm é nosso. Já nos exploraram muito. Agora quem manda somos nós.»
As portas e janelas das casas, os portões, arrancam-se para fazerem fogueiras e para cozinhar. Galinhas e porcos convivem com as pessoas no interior das casas. Em poucos dias apresentam tal aspecto de abandono como se lá não vivesse ninguém. Nos prédios os quadros com os botões de campainha e caixas de correio vandalizam-se. No interior das escadas os interruptores também são vandalizados para fazer negócio. O Figueira abana a cabeça perante quadro tão dantesco, tão primitivo: «Não é o apanhar das casas dos brancos que tira esta gente da miséria.»

Quem não trata os da FNLA e os da UNITA por irmãos, e os do MPLA por camaradas, torna-se suspeito de pertencer ao lado contrário. Arriscam-se a serem presos, mortos, chicoteados ou levarem uma brutal sova.
Por toda a Luanda se houve o barulho do martelar. São os europeus que preparam os seus caixotes para neles colocarem os seus haveres, e posteriormente transportá-los para o Porto de Luanda e embarcá-los rumo a Portugal.

Lucas, um ex/preso político de São Nicolau chega, liberto. Figueira faz as apresentações. Era empregado quando foi preso. No primeiro diálogo que mantivemos notei que antes de falar, ele era cuidadoso e escolhia as palavras antes de responder. Notei que tinha uma cultura algo sólida. Os nossos diálogos passaram a ser constantes. Falávamos – como é natural – da revolução portuguesa e angolana que parecia uma cópia da Revolução Francesa. A certa altura confidenciou-me que brancos progressistas como eu eram necessários para o MPLA, e que na qualidade de preso político seria fácil o meu ingresso no movimento. Era necessário – acentuava – que existissem grupos de acção e eu seria o coordenador. Seria formado um comité de acção de lugar para controlar tudo e todos.

Depois dos acontecimentos com a Marta fui parar a uma pensão na Maianga, através de um amigo do meu colega tesoureiro, onde esse amigo também estava hospedado. Estava sozinho como eu. Passámos a andar sempre juntos. Depois do serviço e aos fins-de-semana frequentávamos o café Paladium na Avenida dos Combatentes. Era natural de Angola, e confessava-me muito convicto: «Aconteça o que quer que seja, nunca abandonaremos o MPLA.»
Estava bem informado. Preveniu-me para ter cuidado com a FNLA porque andavam algumas viaturas Mercedes à caça dos brancos. Quem tivesse cabelo e barba grande como eu, conotavam-no como comandante do MPLA. Raptado e depois sumariamente executado e o corpo abandonado em qualquer lado.
Levou-me no autocarro para o bairro da Cuca visitar um tio, que antes de partir queria falar com ele. Prestes a chegarmos o autocarro é forçado a parar por uma turba de brancos. Invadem-no e com paus desancam nos negros. O meu amigo levanta-se, acompanho-o, e grita-lhes: «Deixem-nos em paz. Vocês vão-se embora e depois nós que ficamos é que os vamos aturar e sofrer as consequências.»
A turba hesitou, mas um deles que parecia ser o chefe insultou-nos: «Afinal são vocês que estragam esta merda. Brancos filhos da puta que defendem os negros. Também vão levar, filhos da puta!»

Imagem: Luanda, Bairro Prenda
http://pissarro.home.sapo.pt/memorias23.htm

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