quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Ocidente do Paraíso (70). e olhei para o que restava da casa do povo da FNLA. Parecia uma carvoaria.


Vi o caso mal parado, temi o pior. Mas não seria assim tão fácil como a turba pensava. Preparei-me para a luta ao lado do meu amigo. O meu fim de vida seria assim? Pois bem, que o fosse.
No último momento apareceu uma patrulha da polícia militar portuguesa. Gritámos para eles. Alguns entraram no autocarro, viram o triste espectáculo e os extremistas dispersaram. O autocarro prosseguiu viagem, sem mais incidentes. Isto deixou-me muito abalado. Decididamente este país é muito violento. Com incidentes assim, seria impossível uma transição pacífica para a independência. Mas mais peripécias nos aconteceram e salvámo-nos delas creio que por milagre.
Estávamos no cinema Tivoli a ver um filme. A ala direita era descoberta. Alguém lançou uma granada no pátio, e os estilhaços projectaram-se em várias direcções. Estávamos próximos dessa área. Eram visíveis as marcas dos estilhaços na parede junto às nossas cadeiras. Não sofremos qualquer dano. Entretanto o filme prosseguiu.

A intenção era deliberadamente provocar o pânico. Noutra ocasião posterior, num fim de tarde, íamos para a pensão quando ouvi um som a que já me habituara. Repentinamente arrastei o meu amigo para o chão. Ouvimos o sopro passar por cima das nossas cabeças, e em frente uma explosão numa casa. Era um projéctil de RPG7. Salvamo-nos graças ao meu instinto.

Também aconteceu na Avenida do Brasil, quando a pé íamos para o café Paladium. Estávamos próximos da casa do povo da FNLA. Um grupo de militares do MPLA decidiu arrasar as suas instalações. Com RPG7 e armas automáticas o tiroteio era tão intenso, que apenas tivemos tempo para nos refugiarmos na porta mais próxima. O zunido das balas e o sopro dos fragmentos dos morteiros eram constantes. Até parecia que o tiroteio era dirigido para nós. Foram momentos infindáveis. Acho que já estávamos feridos, mas não via sangue sair dos nossos corpos. O tiroteio parou. Os Faplas retiraram-se. Olhei mais uma vez para os nossos corpos. Nem uma beliscadura. Não sei como foi possível. Saímos do nosso esconderijo, e olhei para o que restava da casa do povo da FNLA. Parecia uma carvoaria. Tudo escuro e esburacado por todo o lado. Esta casa do povo terminou as suas funções ingloriamente. As guerras são a coisa mais fácil que existe. Basta apenas carregar num gatilho ou num botão.

Devido aos confrontos, as vítimas aumentavam como um vírus que se ia disseminando e para o qual não havia cura.
Fomos à Liga Africana onde saía um funeral com corpos assassinados por extremistas brancos devido à intolerância reinante, a qual já não tinha solução. O destino era o cemitério de Santana. Assustado disse para nos irmos embora, porque os negros decerto por vingança nos matariam. O meu amigo tranquilizou-me: «Tens medo de quê? Eu conheço-os bem. Eles não nos farão mal nenhum.

Incorporados no cortejo fúnebre lá fomos. Confesso que estava com muito medo. Quase a chegarmos ao cemitério já eram milhares de pessoas. E os únicos brancos éramos nós. A minha insegurança aumentou com receio de a qualquer momento ser esfaqueado e atirado para as covas abertas, e misturado com os caixões quem daria por isso? Mas que grande surpresa. Ninguém me maltratou ou insultou. Pelo contrário trataram-me como irmão. A partir daqui senti-me muito confuso. Afinal a África Negra tinha muitas surpresas. Tinha acabado de desmistificar a célebre selvajaria dos negros angolanos. Afinal era um povo pacífico, simples e humilde. Como todos os povos apenas queriam que os deixassem em paz.

Imagem: sede da FNLA. http://pissarro.home.sapo.pt/memorias23.htm

Sem comentários: