Quando se escrever a história de Angola dos últimos
20 anos, de guerra e paz, a corrupção e os poderes extraordinários de figuras
estrangeiras junto do Presidente José Eduardo dos Santos, na tomada de decisões
estratégicas e soberanas, revelar-se-ão como instrumentais.
Durante a guerra pós-eleitoral, duas figuras
estrangeiras tornaram-se sinónimo de poder presidencial em Angola: o
russo-israelita Arkady Gaydamak e o franco-brasileiro Pierre Falcone, ambos
traficantes de armas.
Para breve conhecimento dos leitores, Maka
Angola reporta apenas, no presente texto, como o negócio de armas se
expandiu para o sector dos diamantes e a família presidencial, por via de
Isabel dos Santos, foi das principais beneficiárias. As revelações constam de
vários documentos submetidos a um tribunal de Londres, onde Arkady Gaydamak
apresentou queixa contra o seu ex-companheiro de negócios em Angola, Lev
Leviev, e cuja sentença foi proferida a 26 de Junho de 2012.
Gaydamak provou em tribunal ter sido o autor da
ideia de criação de uma empresa com poder exclusivo e monopolista de compra e
venda de diamantes em Angola, a Angola Selling Corporation (Ascorp).
O Contexto da Guerra
Gaydamak explicou ao tribunal que, em 1993, após o
retorno à guerra, “havia indefinição, após o colapso da União Soviética, se o
governo derrotaria o grupo rebelde UNITA, liderado por Jonas Savimbi”.
“A partir de 1993, passei activamente a assistir o
governo legítimo, reconhecido pelas Nações Unidas, na provisão de equipamento
militar, comida, medicamentos e outros equipamentos, assim como na obtenção de
financiamentos. Eu ajudei o governo a conseguir créditos, através de petróleo,
para pagar as despesas”, informou Gaydamak ao tribunal.
Gaydamak descreveu como, nessa altura, após ter
sido mal-sucedido numa venda de helicópteros, encontrou-se com o intermediário
do negócio, Pierre Falcone. Para evitar os custos alfandegários do retorno dos
helicópteros para a Rússia, as aeronaves foram armazenadas em Roterdão, na
Holanda.
“Os custos com o armazenamento dos helicópteros
eram demasiado altos e requeriam o seu acondicionamento em locais limpos. Eu
estava para desembaraçar-me deles como sucata, mas uns meses depois o Falcone
disse-me que tinha conseguido um novo cliente em Angola, como resultado do seu
encontro com o filho do antigo Presidente Miterrand”.
O negociante russo-israelita não perdeu tempo e
colocou o seu avião privado à disposição de dirigentes angolanos para
verificarem os helicópteros na Holanda. “Eu sabia que eles [governantes
angolanos] não podiam pagar pelos helicópteros em dinheiro. Mas disse-lhes
que os podiam levar. O preço de mercado eram 70 milhões de dólares, mas
entreguei-lhes a crédito. Depois deste presente, o acesso ao Presidente passou
a ser bastante fácil tanto para mim como para o Falcone”.
A relação privilegiada da dupla Gaydamak-Falcone
com o Presidente José Eduardo dos Santos resultou no famoso escândalo
Angolagate que, durante anos, esteve sob alçada da justiça francesa.
Documentos recolhidos pela justiça francesa dão
conta que a Sonangol depositou, ao longo dos anos 90, cerca de um bilião de
dólares em contas de Pierre Falcone. Este, por sua vez distribuía os fundos
para as contas pessoais do Presidente José Eduardo dos Santos e seus principais
colaboradores. Para se atestar a natureza dos negócios da dupla, há o exemplo
de uma venda de armas a Angola num total de US $790.8 milhões. A justiça
francesa revelou provas documentais em como, do referido valor, Pierre Falcone
e Arkady Gaydamak embolsaram metade entre si, enquanto a Sonangol, para
suportar a operação, hipotecou 20,000 barris de petróleo por dia ao banco
francês Paribas.
O russo-isrealita gabou-se, em tribunal, de ter
sido ele, como “voluntário”, a assessorar o Presidente José Eduardo dos Santos
“na criação de operações logísticas que poriam fim à guerra em Angola”. Mais
disse: “Fui à Rússia, empreguei uma equipa de especialistas militares para
elaborarem um plano. Organizei a logística a partir da Rússia”.
Gaydamak informou o tribunal que, até 1999, havia
participado em transacções com as autoridades angolanas, avaliadas em cerca de
US $10 biliões.
Com as portas do palácio presidencial franqueadas,
os dois sócios diversificaram os seus interesses adquirindo participações em
poços de petróleos através da Falcon Oil & Gas e da Prodev. Os negócios de
Pierre Falcone rapidamente expandiram-se para outros sectores da economia,
incluindo, a posteriori, os acordos para a participação da China na
reconstrução de Angola. Gaydamak focou-se no controlo monopolista do sector dos
diamantes e na prestação de serviços de segurança.
O Monopólio da Ascorp
“Eu idealizei que era necessário um sistema de
controlo. Sugeri ao governo de Angola que deveria reorganizar o sector dos
diamantes e centralizar a circulação de diamantes através de uma única empresa,
que seria em parceria entre o governo e sócios privados. Isso permitiria ao
governo ter maior controlo sobre as receitas financeiras resultantes da venda
de diamantes”, explicou Gaydamak.
Após vender a sua ideia ao Presidente dos Santos e
ter recebido luz verde, o mercador de armas passou à acção. Entre 1998 e 1999,
Gaydamak estabeleceu negociações com Ehud Laniado, Isabel dos Santos e o seu
então namorado sírio, Juan Barazzi, para a criação de um consórcio, em que o
primeiro beneficiaria dos “contuários” da filha do Presidente e seus sócios.
Contuário é uma corruptela do francês comptoir, que designa o posto de
compra de diamantes.
Por sua vez, Gaydamak trazia para Angola a
experiência dos serviços secretos israelitas, Mossad, por via do seu
ex-director-geral Danny Yatom e outros antigos operativos séniores desta
agência que se juntaram à sua empresa SCG. O ex-chefe do Estado-Maior General
das Forças de Defesa de Israel, general Moshe Levy, integrou também a direcção
da SCG.
Em 2002, a Ascorp rescindiu contrato com a SCG e
contratou a Stanwest e a Welox que, por sua vez, usaram parte do pessoal da
SCG. Na altura, o governo julgou o Corpo de Segurança de Diamantes, por si
criado, como incompetente, para justificar a contratação da Stanwest, e não fez
menção pública à SCG. No ano seguinte, o mesmo governo acusou as suas
associadas estrangeiras de incapacidade no combate ao tráfico de diamantes e
rescindiu o contrato com as referidas empresas, mas manteve a Welox como sócia
da Ascorp.
Segundo Gaydamak, devido à sua inexperiência no
negócio dos diamantes, solicitou a parceria de Lev Leviev, a quem também pediu
para servir de seu testa-de-ferro, como portador das suas acções no consórcio
diamantífero.
A Ascorp passou a ter a seguinte estrutura
accionista: A Sodiam, sucursal da Endiama, passou a deter 51 porcento; a Welox,
representando Ehud Laniado e Lev Leviev, 24.5 porcento; enquanto a TAIS
Limited, de Isabel dos Santos, teve direito a outros 24.5 porcento. Em
tribunal apurou-se a existência de quatro sócios efectivos na Welox,
nomeadamente Ehud Laniado, Sylvain Goldberg, Lev Leviev e Arkady Gaydamak, com
quotas iguais de 1.25 porcento cada.
Documentos e testemunhos apensados ao caso
confirmaram que, apesar da TAIS ter sido formalmente representada por Noé
Baltazar, antigo director da Endiama, a sua representação inicial foi feita por
Tatiana Cergueevna Kukanova (ora Tatiana Cergueevna Regan), mãe de Isabel dos
Santos. Afirmou-se também em tribunal que TAIS representa as iniciais de
(TA)tiana e (IS)abel. Em 2001, Isabel dos Santos detinha 75 porcento da TAIS, enquanto
Tatiana Regan detinha os restantes 25 porcento. A 5 de Outubro de 2004, Isabel
dos Santos transferiu a totalidade das suas acções para a sua mãe, mantendo-se,
no entanto, como herdeira.
A 7 de Outubro de 1999, as partes assinaram um
Memorando de Entendimento, enquanto o Acordo-Quadro entre os futuros sócios foi
rubricado a 11 de Outubro do mesmo ano. No início de 2000, a Ascorp iniciou as
suas operações, tendo a sua existência legal sido formalizada em Maio do
referido ano.
Contudo, segundo o testemunho de Gaydamak, “a
estrutura accionista formal da Ascorp foi assim estabelecida apenas por razões
políticas, para mostrar que o governo era o accionista maioritário”.
“Na prática, a Ascorp obtinha lucros marginais nas
suas actividades e, por conseguinte, os dividendos pagos aos accionistas eram
relativamente modestos”, afirmou o queixoso.
Para Gaydamak, “os verdadeiros lucros eram obtidos
através da Welox, a quem a Ascorp vendia os diamantes comprados aos produtores,
por Lev Leviev e o Laniado Group.” Os lucros e diamantes da Welox era dividos a
meias entre o grupo controlado por Ehud Laniado (que, por sua vez, dividia os
seus lucros com Sylvain Goldberg e Isabel dos Santos), e o grupo controlado por
Arkady Gaydamak e Lev Leviev.
Zanga de Comadres
Para melhor entendimento do modo como a Ascorp tem
sido gerida, transcreve-se uma passagem da acareação de Arkady Gaydamak pelo
juíz Vos, do Tribunal Superior de Justiça de Londres:
Juíz Vos: Sabemos que a Ascorp é detida em 51
porcento pela Sodiam, em representação do Estado angolano, 24.5 porcento pela
TAIS, e 24.5 porcento pela Welox, de Laniado, Goldberg e Leviev. Como
você era capaz de receber dinheiro que pertencia à empresa, através do
Sr. Leviev, sem ter em conta os interesses de todos outros sócios?
Arkady Gaidamak: Sim. Você [juíz] fala da estrutura
accionista oficial da empresa. Há o lado oficial, a Ascorp, mas a realidade é
muito simples. Há pequenos postos de compra [contuários] pelo país, onde se
encontram os compradores [de diamantes], seguranças e os garimpeiros. E os
garimpeiros vendem diamantes que retiram dos rios, ou não sei de onde, e o
dinheiro, este dinheiro entra e sai. Esta é a realidade e, acredite em mim, na
selva ninguém pergunta se você tem 24.5 ou 6.25 porcento, ou se tem um documento
a provar que é sócio ou não. O dinheiro em espécie, milhões e milhões de
dólares, ficam no cofre. Todos os dias, a equipa de segurança transporta nos
seus jeeps milhões de dólares, eles vão ao mato, trocar dólares por diamantes,
e trazem as pedras e vice-versa.
(…)
JV: Está a sugerir que o dinheiro não era
contabilizado porque há tantos milhões de dólares que ninguém se preocupava, ou
está a querer dizer que o dinheiro era contabilizado e o seu representante
assinava um recibo pelos montantes levantados?
AG: A realidade era que, quando eu precisava de
dinheiro, dinheiro ao vivo, o Sr. Leviev tinha autoridade suficiente e todos
sabiam quem eu sou. Uma vez que nós determinávamos o montante em dinheiro a
receber, os meus representantes dirigiam-se ao escritório, e indicavam o valor
a receber para mim.
JV. Guardava registos desse dinheiro?
AG: Não.
JV: Como sabia o montante que estava a receber?
AG: Não sei exactamente. Sei que era frequente,
$200,000, $300,000, $400,000.
JV: Uma vez por semana, todas as terça-feiras,
quinzenalmente às quinta-feiras? Como isso era feito?
AG: Podia ser. Podia ser uma vez por semana. De
acordo com as minhas necessidades.
Em 2005, Lev Leviev deixou de fazer
pagamentos a Arkady Gaydamak. Em reacção, este intentou uma acção judicial
contra o primeiro, em tribunal londrino.
Imunidades Presidenciais
A Presidência da República envolveu-se no caso para
evitar mais um escândalo internacional, devido à probabilidade de revelações
comprometedoras sobre a opacidade dos negócios dos ex-sócios com figuras
cimeiras do regime de José Eduardo dos Santos.
O ministro de Estado e chefe da Casa Militar do
Presidente da República, general Manuel Hélder Vieira Dias “Kopelipa”, encetou
negociações directas com Arkady Gaydamak, a 4 de Agosto de 2011, em Luanda,
assistido pelo presidente do Conselho de Administração da Endiama, António
Carlos Sumbula.
Curiosamente, antes da sua nomeação para a
presidência da Endiama, em Novembro de 2009, António Carlos Sumbula era
funcionário de Arkady Gaydamak, exercendo as funções de presidente da Sunland.
Esta é uma empresa criada pelo reclamante. Em 2005, a Sunland assinou um acordo
com a Sodiam, para o desenvolvimento de projectos mineiros e obteve licença
para a compra de diamantes em Angola. No mesmo ano, cedeu 40 porcento da sua
quota à gigante russa Alrosa e transferiu mais 20 porcento do capital,
como “oferta”, para a titularidade secreta de dirigentes angolanos, reunidos no
secretivo Grupo de Angola que, por sua vez, é representado por um advogado
suíço, Marcel Maurer.
Para um acordo extra-judicial, Arkady Gaydamak
exigia um pagamento de US $500 milhões, por parte de Lev Leviev.
No entanto, a 6 de Agosto de 2011, o general
Kopelipa apresentou, ao seu interlocutor, a proposta de um acordo para a
resolução do caso, em nome da presidência. Segundo o depoimento de Gaydamak, a
proposta era inegociável. Tinha de assinar para manter e expandir os negócios
em Angola, contando também com a protecção do Estado angolano, ou arriscava-se
a perder toda a sua influência junto dos dirigentes, com consequências
previsíveis.
Antes desse encontro, Gaydamk revelou ao tribunal
ter recebido garantias directas do Presidente José Eduardo dos Santos, na
audiência que este lhe concedeu sobre os seus negócios nos diamantes. “Ele [dos
Santos] disse-me que eles [Sodiam] devem alocar-me US $5 milhões por mês, em
diamantes e, desde o princípio fui quase todas as semanas à Sodiam
perguntar-lhes quando devia começar a trabalhar”, testemunhou Gaydamak.
O russo-israelita assinou o acordo que, por sua vez,
foi levado directamente a Lev Leviev, na altura em Luanda. O referido acordo, a
posteriori selado pelas autoridades competentes angolanas, serviu para provar,
em tribunal londrino, que Gaydamak, efectivamente prescindiu dos seus eventuais
direitos na parceria detida com Leviev, na Ascorp.
Como compensação, a 8 de Agosto, Gaydamak
dirigiu-se ao Ministério das Relações Exteriores para tratar do seu novo
passaporte. No dia seguinte, o general Kopelipa chamou-o ao seu gabinete e, na
presença de Carlos Sumbula e da ministra da Justiça, Guilhermina Prata,
entregou-lhe o seu novo passaporte diplomático.
Gaydamak referiu em tribunal que já fez uso do seu
estatuto diplomático, como agente oficialmente colocado na embaixada de Angola
na Rússia, para não pagar impostos em parte nenhuma. “De acordo com a Convenção
de Viena, de 1961, não devo pagar impostos”, disse Gaydamak quando interrogado
sobre se alguma vez tinha pago impostos sobre os US $100-150 milhões que
recebeu de Leviev, referentes à sua participação na Ascorp.
Com o passaporte diplomático, que lhe foi entregue
à um ano, Arkady Gaydamak recebeu também mandato presidencial conferindo-lhe
imunidades diplomáticas.
Durante anos, o governo de dos Santos recusou-se a
renovar o passaporte diplomático de Gaydamak e o seu estatuto de diplomata
angolano por este ter enganado o presidente. Depoimentos registados no Tribunal
Distrital de Jerusalém, em 2008, sob o caso A 2145/08 contra o negociante
israelo-russo, dão conta que José Eduardo dos Santos ordenou a transferência de
US $618 milhões para uma conta indicada por Gaydamak, no Chipre, para o
pagamento de notas promissórias referentes à dívida de Angola para com a
Rússia. Segundo provas apresentadas em tribunal, Arkady Gaydamak desviou metade
do dinheiro para as suas contas particulares.
Sobre a queixa apresentada por Gaydamak, a 26 de
Junho passado, o juiz Vos proferiu sentença, concluindo como improcedente a
queixa. Reconheceu a validade do acordo inicial entre Gaydamak e Leviev, em
2001, bem como o acordo que assinou em 2011, em que prescindia de reclamações
legais sobre os seus direitos na Ascorp.O juíz Vos aduziu ter o general
Kopelipa agido como agente de Lev Leviev, bem como ter manifestado boa-fé no
engagemento do Estado angolano na negociata.
Sobre os dois negociantes, o juiz caracterizou os
negócios de Gaydamak como sendo de natureza arbitrária, sem respeito pelas leis
e improvisados. Sobre Leviev, o juíz manifestou, em duas ocasiões, o carácter
arrogante do réu e a sua tendência “em re-escrever a história”, omitindo
o papel crucial de alguns protagonistas.
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