Canal de Opinião: por Noé Nhantumbo. 2010 – Ano de Assange e da Wikileaks?
Beira (Canalmoz) - Convenhamos que os últimos meses de 2010 foram sacudidos por revelações importantes, contundentes, diferentes, explosivas e intoxicantes. Não interessa olhar para casos isolados e relacionados com um determinado país e daí tirar conclusões sobre isto ou aquilo. O que se tornou evidente em todo o processo de revelações feitas pelo site da WikiLeaks é que a chamada diplomacia internacional, dos poderosos e a dos países emergentes, dos BRICs ou de simples países que são estados falhados na definição aceite por este dias, ditados e governados segundo processos tão insidiosos, com toda a capa de frescura, responsabilidade e dignidade de Estado, caiu por terra.
Muita podridão malcheirosa foi revelada como nunca havia acontecido.
Sem falarmos de consequências para a segurança ou uma suposta segurança de pessoas e países, factos preocupantes estão na posse dos cidadãos pela primeira vez.
Onde se esperava por comportamentos acima de qualquer suspeita e de acordo com padrões ético-morais correspondentes ao que em geral os governantes querem dar a entender, verificou-se que a podridão, o jogo sujo, as alianças e os golpes de estado e o seu fomento eram a óptica e o tema subjacente de muito do que era proposto como linha de acção.
Os interesses de alguns países e sobretudo de suas corporações tornaram-se os motores de relações internacionais e da definição de agendas governamentais.
Bush e Blair saem dos respectivos governos chamuscados e mesmo queimados por uma obtusa atitude unilateralista.
Os monarcas árabes cheios de petrodólares continuam a fazer o jogo de Washington a despeito de toda a evidência de que sem a sua activa participação em defesa de uma Palestina independente e livre, com as suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, não haverá paz duradoura no Médio-Oriente.
Ninguém tem mais receio de uma Palestina democrática e republicana que os reis e sheiks árabes.
A Coreia do Sul e do Norte caminham a passos gigantes para uma confrontação a larga escala a menos que haja ponderação e intervenção da mais nova superpotência mundial, a China.
A Rússia teima em não abandonar o cenário e manifesta abertamente as suas potencialidades e possibilidades ao não permitir que a NATO se aproxime daquilo que ela considera sua esfera de influência geopolítica.
Em África andamos ao sabor de golpes de estado palacianos, manipulações eleitorais orientadas e assessoradas por brasileiros, franceses, portugueses, ingleses, financiadas pela China, África do Sul, Itália. Na procura de acesso privilegiado aos recursos naturais de África o que há muito já se fazia, eles se tornaram na moeda de troca de políticos pouco escrupulosos deste continente flagelado por guerras e doenças.
Pelo petróleo, diamantes, urânio, titânio, carvão ou qualquer coisa determinada como estratégica, vemos diplomatas semeando em águas turvas e pouco se interessando ou se importando com as consequências para os povos deste continente.
No cúmulo de tudo assiste-se a emergência de uma tendência de perpetuação no poder de governantes derrotados em escrutínios eleitorais em nome de uma suposta paz e estabilidade. São os governos de “Unidade Nacional” na ordem do dia sempre que um líder perde as eleições, ou as mudanças de constituição se façam sempre que convenha a um líder permanecer no poder.
Boa e necessária, a democracia está sendo despida de seus fundamentos e de sua lógica em benefício de interesses estranhos aos povos.
E no meio disto tudo descobre-se que afinal certas pessoas não são o que parecem e que querem vender aos seus cidadãos. Estamos no mercado formal e informal da política onde se vende “banha de cobra como se de porco” se tratasse.
O mérito para uns, de Assange e sua Wikileaks, foi ter desconstruído conceitos que se supunham indestrutíveis. Foi ter revelado que afinal os governantes do mundo inteiro colocam factos e procedimentos no domínio do secreto e da segurança nacional segundo critérios muitas vezes de conveniência conjuntural e privada.
Quando em certos quadrantes se defende a transparência governativa como único garante da democracia efectiva, os falcões contrariam e baseiam sua acção na espionagem a toda a escala. Tudo serve para construir uma base de dados a ser usada quando se julgar conveniente. Até bisbilhotar o quarto do adversário.
Para os cidadãos do mundo decerto que interessa mais a estabilidade, segurança e paz que possam ser alcançados através de um concerto de posições de seus governantes, do que através da espionagem em si. Que alguma da estabilidade se consiga por via da espionagem até pode ser aceite. Mas que os espiões utilizem suas informações muitas vezes artificialmente fabricadas e muito longe de serem factos, isso coloca esta actividade legítima dos estados, na esteira da defesa e protecção das “Haliburtons” (corporação ligada a Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA no mandato de Bush”) deste mundo. Como se sabe esta empresa foi uma das que mais lucro teve com a intervenção americana no Iraque.
Muita da acção do governo dos EUA tem sido de facto baseada em apreciações que são ditadas pelos seus “think-tanks” e estes são fortemente financiados pelas corporações do complexo bélico-industrial, das farmaceúticas, das indústrias de ponta na informática, telecomunicações e outras.
Quando se batem por patentes é para manter as vantagens comparativas, o lucro e pouco importam as consequências para biliões de pessoas no mundo inteiro. Aquela filantropia evidenciada em certos círculos americanos utilizando gente como Bill Clinton para dar a ideia de um cometimento para com os povos é contrariada pelas acções encetadas pelo governo dos EUA logo a seguir. Entre defender uma ofensiva científica e tecnológica financiada por governos de todo o mundo, pela descoberta de soluções viáveis para o tratamento de doenças como o HIV/SIDA, a malária, a cólera, a tuberculose, a escolha tem sido fazer vista grossa porque estes problemas ainda não são agudos na América ou no Ocidente. E os governantes dos países do Sul, caricatamente, fazem o jogo de seus parceiros ocidentais preocupando-se em gerir vantagens circunstanciais e promover a emergência de exércitos e forças policiais obedientes. Sua lógica governativa é colocar os interesses pessoais privados acima de qualquer agenda que traga aquele desenvolvimento que seus cidadãos necessitam e a que aliás têm direito. Assim e para satisfazer os seus apetites sempre crescentes, retalham e vendem os recursos naturais de seus países sem olhar para a legislação nacional nem para o conceito básico de que os países pertencem aos seus povos integralmente.
Os mandatos legítimos de governos estão sendo atropelados e em seu lugar emergem tendências perigosas de açambarcamento ilegal de prerrogativas que não pertencem aos executivos.
Devido a Assange e ao seu site vamos ter uma diplomacia internacional mais receosa e governos procurando descobrir instrumentos para aumentar o controlo e a censura do que a comunicação social faz.
Neste ano que está vertiginosamente caminhando para o fim há e prestar uma homenagem aos que se evidenciaram na defesa da humanidade e dos direitos humanos no mundo inteiro. Há que descobrir novos caminhos para a divulgação do que muitas pessoas de bem fazem em prol de um mundo mais pacífico, participado e significativo para os cidadãos.
Que 2011 seja aquele ano em que as coisas deixem de ser em função do que o jet-set político internacional quer e que a conjugação de esforços e vontades coloquem os interesses legítimos dos povos no topo da agenda internacional.
O modelo falhado da hegemonia unilateral, deve, à custa de uma batalha continuada de todos, abrir espaço para que o mundo se redescubra e avance por caminhos de tolerância, equilíbrio e desenvolvimento global.
Os famosos e ricos tem o seu lugar garantido neste mundo mas não pode ser à custa de sugarem o sangue de milhões de crianças.
A elite política internacional tem de entender que jamais poderá derrotar o terrorismo eleito ponto principal da agenda enquanto não houver participação integral de países como a Rússia e a China. Uma oposição à proliferação do acesso a armas nucleares tem de acontecer no quadro de uma acção que responsabilize todos e não coloque uns como merecedores de possuí-la e outros como potenciais criminosos perigosos, sem direito algum nesse domínio.
A reticência de falar e de questionar Israel sobre a arma nuclear, o terrorismo de estado por ele praticado, a protecção e financiamento de seu exército mesmo quando abertamente ataca escolas e outros alvos civis tira direito a palavra àqueles que impõem sanções aos que maltratam seus cidadãos.
Não se pode aceitar conviver com um Mugabe que abusa dos direitos humanos dos zimbabweanos ou de um presidente do Quénia ou Costa do Marfim que mesmo derrotados não querem sair do poder, mas ao mesmo tempo é contraprodutivo no âmbito dos esforços internacionais para vencer o terrorismo, abraçar e acarinhar um governo como o de Israel que quer impor a sua agenda e o que supõe que deveriam ser as fronteiras de um futuro estado Palestino.
A dualidade de critérios é produto de uma filosofia que já não tem qualquer valor no actual cenário internacional.
Só o desenvolvimento pleno dos países, de seus cidadãos é que irá diminuir o campo de manobra e de recrutamento de novos elementos para alimentar as forças terroristas.
Para que se ultrapassem as crises provocadas pelos telegramas revelados pelo Wikileaks e se reconfigure o relacionamento entre os governos há que aceitar abraçar novos critérios e sobretudo crescer-se no entendimento de que um mundo caracterizado pela existência de zonas de conflito eminente não oferece garantia de paz e estabilidade para ninguém.
Qualquer conflito na Península Coreana ou no Irão, na fronteira entre a Índia e o Paquistão, na RDC ou no Sudão, no Malawi ou em Moçambique vai arrastar vizinhos e outros para a guerra.
Convenhamos que este 2010 colocou algumas figuras internacionais a nu e isso até é benéfico para os cidadãos. Alguma falsidade e hipocrisia, alguma arrogância e orgulho infundados caíram irremediavelmente para o chão.
Até porque, afinal somos todos seres humanos. Ou alguém pensava que era especial?
Nem aqueles políticos na reforma que mergulharam na filantropia são especiais. Queremos a acção de todos eles hoje, na contenção dos abusos cometidos por seus sucessores. Essa é maior prenda que podem oferecer ao mundo ao invés de uma mediática filantropia visando alegadamente aliviar o sofrimento de seus concidadãos.
Uma enérgica e esclarecida acção no campo da agricultura no mundo vai tirar gente da fome crónica e das doenças. E tem muito mais valor do que aquela ajuda oferecida pelas fundações inteiras deste mundo.
Tem de ser hoje, entanto que figuras com relacionamento político válido e actual, que os “Clintons, Bushs e Blairs” deste mundo devem intervir no sentido de promover mudanças no relacionamento internacional, na lógica de governação deste mundo. Dediquem-se a isso que o mundo inteiro vos vai elogiar e história recordar. Temos de ver os nossos líderes africanos reformados ou no activo tomando conta das preocupações de seus cidadãos e não utilizando o poder para fazer crescer as suas contas bancárias ou construírem mais mansões.
É quase Natal e 2011 já bate a porta.
A vergonha em África e Moçambique em particular é que a maioria não tem nada para celebrar. A fome vai caracterizar as suas mesas se é que mesas possuem.
Nem os “leaks” das “referências” morais da ex-“Pereira do Lago” vão colocar frango ou bife na boca de milhões de moçambicanos… (Noé Nhantumbo)
2010-12-23 06:01:00
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