A investigadora defende que os portugueses pagam os direitos sociais nos impostos e que parte desse dinheiro é desviado
O livro sobre quem paga o Estado social coordenado pela historiadora Raquel Varela tem tido uma recepção desigual: bem aceite pelo público, é normalmente ignorado pelos economistas que dominam o debate em Portugal. A obra contraria a tese muito em voga de que o nosso problema é que os pobrezinhos comeram muitos bifes. Nas suas páginas fazem-se contas e chega-se à conclusão de que alguém ficou com o dinheiro dos nossos impostos.
Por Nuno Ramos de Almeida
http://www.ionline.pt/portugal/raquel-varela-dos-grandes-objectivos-da-troika-aproximarmo-nos-da-china
Estamos perante uma obra política ou um livro científico?
É um estudo académico que calcula da forma mais exacta possível, com os dados que existem, a relação entre gastos sociais do Estado e os impostos pagos pelos assalariados. O livro é fruto de um trabalho que não inclui só economistas; colaboram nele historiadores, um filósofo, um físico e um médico. Creio poder dizer com o apoio de todos que é um livro que assume uma posição clara de desmontar a chantagem política feita sobre os trabalhadores ao propagar a ideia de que andaram a viver acima das suas possibilidades. É um livro académico com consequências políticas.
O discurso dominante afirma que há um esgotamento deste modelo da segurança social e que a alteração da pirâmide etária faz com que o actual nível de reformas seja insustentável.
Isso não é de maneira nenhuma verdade. Nós provamos que de acordo com os números existentes os trabalhadores pagam com os seus impostos os gastos sociais do Estado. A outra questão é a razão por que chegámos aqui. Aquilo que aconteceu foi uma permanente transferência de recursos, desde o início do advento das políticas neoliberais em Portugal. O neoliberalismo caracteriza-se pelo modelo just in time: não há stocks de mercadorias nem de força de trabalho. A força de trabalho tem de ser precária e estar permanentemente móvel. O neoliberalismo surge como reacção à crise de 1981-84, que foi uma das maiores crises cíclicas do capital, que teve efeitos explosivos. Em Portugal assiste- -se ao esforço para diminuir os stocks da força de trabalho. Desenrolam-se um conjunto de processos negociais em que parte crescente da força de trabalho mais velha é enviada para a reforma antecipada, o que vai ter um peso enorme sobre a Segurança Social. Estas reformas antecipadas são na realidade despedimentos encapotados em que as empresas não pagam a indemnização e endossam esse custo à Segurança Social. A utilização da Segurança Social como uma espécie de fundo de despedimento das empresas privadas representa um grande rombo para esta. Parte significativa da força de trabalho mais velha e com mais direitos é empurrada para a reforma, sendo substituída por um contingente de trabalhadores subcontratados e sem direitos.
Esse processo não merece a contestação dos sindicatos?
Durante muito tempo as organizações dos trabalhadores, nomeadamente as da CGTP, reagiram a esse processo. O primeiro acordo de empresa que é feito nesse sentido é na Lisnave. Só após três anos com salários em atraso é que os sindicatos aceitam assinar esse compromisso que vai consagrar uma divisão da força de trabalho em que os novos trabalhadores entram subcontratados e sem direitos. Durante 30 anos assistimos ao desenrolar deste processo, aquilo que muda em 2008, a maior crise desde 1981-84, é que a solução que os governos escolheram para sair desta crise passa pela transformação de todos assalariados em força de trabalho precária. Uma política que defende que as exportações só podem tornar-se competitivas com a queda abrupta dos salários, o que tem como consequência a quebra da procura interna. Esta política aumenta a conflitualidade entre os próprios capitalistas e nos partidos no poder: quando se aumentam as exportações, a Portucel ganha, mas o Belmiro de Azevedo e o Continente perdem.
Se os trabalhadores pagam a sua reforma e gastos sociais com os seus impostos, como é que se acumula e cresce o défice e a dívida do Estado?
O défice e o crescimento da dívida devem--se a outros factores que não estão incluídos nos gastos sociais. Nestes gastos estão os gastos que consideramos sociais e outros gastos do Estado. Aquilo que se tem de ver é que dos gastos totais do Estado há muita coisa que não tem a ver directamente com gastos sociais. Por exemplo, o serviço da dívida não pode ser em grande parte imputado a gastos com os trabalhadores e a sua manutenção.
E quais são os gasto que para vocês são considerados sociais?
Nós retiramos dos gastos sociais, por exemplo, o serviço defesa, que consideramos um gasto do Estado mas não um gasto social. Saúde, educação, desporto, cultura, transportes públicos e Segurança Social foram as grande parcelas que incluímos. Também incluímos a mão-de-obra da Segurança Social. Chegamos à conclusão de que somados os gastos e as contribuições sociais e impostos arrecadados há muitos anos que há superavit, há alguns anos que há um défice ligeiro, mas isso é independente da acumulação da dívida do Estado, que na nossa opinião se deve a transferências em massa, a partir de 2008, para salvar o sector financeiro, nomeadamente o caso mais óbvio do BPN. Têm de se acrescentar a isso os gastos crescentes nas parceiras público--privadas. Este tipo de negócios e decisões não é inocente. Nós mostramos, por exemplo, que desde que existem os hospitais empresas, que são hospitais públicos com gestão privada, se verifica que a diminuição dos salários de médicos e enfermeiros é idêntica àquilo que é gasto na subcontratação externa de serviços a privados. Outra coisa que pomos em dúvida são determinados programas que estão contabilizados como gastos sociais mas que são subsídios directos às empresas privadas, como por exemplo o Estado pagar parte do ordenado de trabalhadores que estavam desempregados que são contratados por empresas privadas. Outra coisa que analisamos, em relação à sustentabilidade da Segurança Social, é a transferência de fundos de pensões privados para o Estado. Aparentemente quando são transferidos esses fundos de pensões da banca da PT parecem capitalizados, mas ninguém garante a sustentabilidade desses fundos nos próximos dez ou 20 anos.
Mas vocês fazem estas contas agora. Com a evolução da pirâmide demográfica e com a subida previsível do desemprego não tornam crescentemente deficitária a Segurança Social?
Neste momento ela não é deficitária, mas se me perguntar se uma sociedade aguenta ter mais de um milhão e quatrocentos mil desempregados por muito tempo, tenho muitas dúvidas. E não se trata só do equilíbrio financeiro da Segurança Social. Portugal com este nível de desemprego não é sustentável do ponto vista económico, social e político. Chegamos a um nível de desenvolvimento da humanidade em que o problema do emprego tem de ser equacionado de outra forma: andamos na auto-estrada e pagamos as portagens numa máquina, o mesmo fazemos em relação às compras no supermercado, o metro de Turim anda sem condutor... Chegamos a um nível de desenvolvimento tecnológico que naturalmente acarreta um patamar de desemprego estrutural se nós não mudarmos a nossa forma de viver. Temos de criar uma sociedade em que toda a gente trabalhe menos horas, mas que trabalhe. Se a única coisa que fazemos é formar engenheiros para construírem máquinas que vão substituir o trabalho de milhares de pessoas estamos a cair num buraco negro em que temos máquinas de um lado e desempregados do outro. Em nenhum sítio é possível aguentar a Segurança Social e a sociedade nestas condições.
Com a privatização dos serviços públicos, o aumento dos transportes e dos custos de educação e saúde, quanto diminui na prática o salário real das pessoas?
Não sei. Não fizemos estes cálculos. Já vi números muito variados em relação a isso. Na diminuição da massa salarial há os cortes de salários, há os cortes por via dos aumentos de impostos e há o aumento das despesas das pessoas devido ao recorte das políticas sociais do Estado. Obviamente que isto implica um valor elevado, mas ainda não está avaliado.
A vossa tese opõe-se à ideia de que as pessoas viveram acima das possibilidades e afirma que o dinheiro colectado aos trabalhadores foi desviado para outros gastos?
Temos um superavit na maior parte dos anos e o governo nunca explicou o que fez com esse dinheiro. Se temos um défice brutal do Estado, conclui-se que alguém andou a viver acima das suas possibilidades. Agora parece evidente é que não foram os trabalhadores que pagaram impostos. Na nossa opinião uma das explicações da existência desses défices é a dívida pública como mecanismo de renda fixa de capital.
Mas essa dívida não pode resultar da suborçamentação do Estado? Se nas empresas de transportes as indemnizações compensatórias não pagam a diferença entre o custo do serviço e o que paga o utente, não há aqui uma transferência dos custos sociais do Estado para a acumulação da dívida?
Nós não fazemos as contas da dívida pública portuguesa neste livro. Temos alguns artigos em que se aborda o mecanismo que permitiu a criação desta dívida em geral, como é que a dívida se transforma em renda privada. Não contabilizamos isso no livro. Aí só contabilizamos gastos sociais em relação às contribuições e impostos pagos pelos trabalhadores. Acerca da dívida, aquilo que concluímos é que, se os trabalhadores pagam tendencialmente mais do que recebem em serviços sociais, temos de ir procurar outras razões para explicar a acumulação do défice. Para isso damos um conjunto de pistas: as parcerias público- -privadas, o crescimento dos encargos financeiros da própria dívida pública...
Mas questões como a compra de habitação própria não podem ser vistas como motivo de endividamento?
Se nós tivemos de nos endividar nos últimos 20 anos para compra de habitação isso não significa que tenhamos vivido acima das nossas possibilidades, mas abaixo delas. Os salários portugueses mantiveram-se tão baixos nos últimos 20 anos que as pessoas para resolverem este direito básico que é a habitação tiveram de se endividar. O neoliberalismo nem o direito básico da habitação conseguiu resolver. Das duas uma: ou nós insistimos que as pessoas são umas perdulárias que quiseram ter casa própria – mais de 70% dos portugueses são proprietários de casa própria para a qual a grande maioria teve de se endividar aos bancos – ou podemos dizer que os portugueses têm salários tão baixos que tiveram de se endividar para conseguir comprar casa.
Mas isso não teve consequências no próprio endividamento dos bancos, que para emprestarem esse dinheiro se endividaram na banca estrangeira?
Penso que o mais importante está no endividamento dos particulares para garantir os lucros do sistema financeiro e das grandes construtoras nacionais, cujo processo de acumulação de capital resultou desse endividamento forçado das famílias para resolver o direito básico de ter uma habitação. Esse processo não resolveu o problema das famílias portuguesas, que todos os dias, com o aumento do desemprego, arriscam ser despejadas. Temos de assumir que não andamos a viver acima das nossas possibilidades, mas pelo contrário vivemos num sistema económico que nem o problema da habitação consegue resolver.
E neste sistema económico era possível resolver o problema da habitação de outra maneira?
Não acredito, mas isso está no domínio da futurologia, posso estar absolutamente errada. Os historiadores marxistas estão sempre a anunciar crises terminais que nunca o são. Aquilo que eu tenho lido é que se não tivesse havido um socorro enorme ao sistema financeiro estaríamos numa crise muito semelhante à Grande Depressão de 1929, embora nós vivamos um processo substancialmente diferente devido à globalização da economia. A interdependência dos mercados é hoje infinitamente superior. Se a crise teve as consequências que teve, revoluções e contra-revoluções durante dez anos, eu não sei que consequências teria tido esta sem as medidas que foram adoptadas. Agora salvar o sistema financeiro teve um preço que é a situação de barbárie social que vivemos.
Umas das observações que se fazem nesta crise é que se dá uma alteração no eixo da economia, que os países desenvolvidos estão a descer a sua importância enquanto os emergentes estão a crescer. Diz-se também que o modelo de desenvolvimento dos países desenvolvidos não é sustentável do ponto de vista ecológico. Se todos os habitantes do planeta tivessem um nível de vida de um português a Terra entraria em colapso. Não é possível dizer que vivemos desse ponto de vista acima das nossas possibilidades?
É preciso ter cuidado com todas essas chamadas teorias do decrescimento. Dizer que um país vive acima das suas possibilidades não é correcto do ponto de vista histórico. Num país há pessoas que vivem acima das suas possibilidades e outras que não. A mim parece-me que é claramente o caso europeu. Por exemplo, culpabilizar todos os alemães é uma deriva nacionalista. Os trabalhadores alemães têm os seus salários congelados nos últimos dez, 15 anos por causa deste processo. Do meu ponto de vista, não devemos fazer esta afirmação em relação aos países no seu todo, mas em relação às classes sociais. Portugal é o segundo país mais desigual da Europa, depois do Reino Unido, e esta crise é acompanhada pelo um aumento exponencial do consumo de bens de luxo, mas não se pode daí concluir que todos os portugueses estejam implicados nisso. Nós não temos um consumo excessivo, temos é um consumo exagerado de hidratos de carbono, temos um consumo deficitário de legumes frescos com nutrientes, temos um consumo exagerado de transportes individuais e um consumo deficitário de transportes colectivos. Ou seja, o problema do consumo não é abstracto, concretiza-se numa sociedade que é desigual. Há sectores que consomem muito e outros muito pouco e há coisas que se consome muito e outras muito pouco. Tem de haver uma elação saudável do homem, da economia e da natureza, mas não pode haver a ideia de um regresso a um passado mítico em que estaríamos em harmonia com a natureza.
Aquilo que eu lhe pergunto é diferente, se os padrões de consumo da sociedade industrial não têm de pressupor desigualdade: porque se todos tivéssemos no planeta acesso a estes consumos normais nos países desenvolvidos a Terra não o suportaria.
A sustentabilidade deve ter por base uma análise criteriosa daquilo que consumimos a mais e daquilo que consumimos a menos. Nós consumimos muitas coisas a menos. Consumimos a menos alimentos biológicos, cultura de qualidade, transportes públicos, bicicletas não poluentes. Podia estar a tarde toda a dar exemplos. Mais que uma crítica do consumismo em abstracto temos de nos centrar numa análise daquilo que devemos e podemos consumir em concreto.
Fala de um processo de globalização. No seu entender ele é positivo ou negativo?
O processo de globalização que vivemos é um processo de globalização imperialista. Era bom que recuperássemos a esse respeito este conceito que os cientistas sociais têm tido medo de usar. Embora recentemente nas discussões de instituições internacionais como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) haja alguns autores que recuperam estes conceitos. É óbvio que esta globalização nos trouxe coisa de que nós gostamos: conhecer os outros povos, a sua cultura, a sua comida, consumir os seus produtos, etc. Isto tem sido feito através de um processo muito desigual e que vai produzindo desigualdades. Ao mesmo tempo que aos trabalhadores chineses é entregue uma guia para trabalhar 16 horas por dia por dois dólares, sem que se lhes permita levar a família e sem assistência social – estou a citar números oficiais usados por um historiador chinês –, temos um dos maiores processos de acumulação de capital nos Estados Unidos devido a esta divisão de trabalho que torna a China a fábrica do mundo. Esta desigualdade não é aceitável. Estou convencida que um dos grande objectivos do programa da troika é aproximar-nos da China. O capitalismo chinês tem um problema imenso que deriva de viver da exploração da mais-valia absoluta, o que significa que um trabalhador chinês dá mais--valia devido ao aumento da exploração do trabalho. Para isso é necessário manter o elevado número de horas da jornada de trabalho. Enquanto um trabalhador americano rende pela mais-valia relativa. Ele trabalha meia hora para si e as outras sete horas e meia são para o capital, enquanto um trabalhador chinês é muito menos produtivo. Para acumular o mesmo capital na China é preciso muito mais trabalhadores. A jornada de trabalho é maior por causa disso. Com um aumento de salário na China de 10% deixa de compensar as empresas estrangeiras estarem lá. Esse aumento de salário tem um efeito muito maior na diminuição da acumulação de capital que um mesmo aumento num país com uma grande produtividade. Nos últimos anos tem havido aumentos salariais na China fruto das greves. É possível que a burguesia europeia pense que a forma de resolver esta crise é tentar fazer uma China aqui perto, contornando os problemas que têm tido no processo de acumulação chinês.
Isso significa o quê?
Diminuir o nível salarial dos trabalhadores europeus e reindustrializar a Europa. Quando a chanceler Angela Merkel falou na hipótese de reindustrializar Portugal era isso que estava a propor. Por um lado, a utilização dos países do Sul da Europa como uma espécie de nova China, por outro o roubo de cérebros e licenciados para os países do centro da Europa e a Alemanha.
Mas essa deslocação não enfrenta alguns constrangimentos, nomeadamente os linguísticos, que impedem essa flexibilidade do mercado de trabalho em termos europeus?
Nós temos hoje um milhão e trezentos mil licenciados em Portugal, e a mão- -de-obra na Europa é altamente qualificada. É tão proletarizada como era nas fábricas. Neste momento um investigador em Portugal ganha muito menos que um operário alemão. É um novo proletariado qualificado. É mais produtivo que o tradicional. O que eu faço hoje com um computador exigia há poucos anos dezenas de pessoas. Todo o processo de Bolonha visou criar as condições para a deslocação na Europa desta nova mão- -de-obra extraordinariamente produtiva. Cada vez mais a língua é o inglês, há cada vez mais empresas que não trabalham na sua língua nacional. Estão-se a criar condições para ter um mercado de trabalho à escala continental. É por isso que a nossa precarização vai ser o enterro dos direitos sociais dos trabalhadores alemães. O que se prepara é que de hoje para amanhã os trabalhadores qualificados do Sul ocupem por um salário muito mais baixo o lugar de um trabalhador alemão. É este o objectivo da política da troika.
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