O batalhão já tinha conhecimento devido à escuta dos seus operadores, uma vez que estávamos em rede. Lá, o operador de serviço informava constantemente tudo o que se passava. Chamava o operador dos nossos pelotões a todo o momento, e não obtinha resposta. Isto fez-me pensar que já teria ido desta para melhor. Mas não, consegui ouvir: «Filhos da puta de portugueses vão para casa!» Eram as vozes dos guerrilheiros que estavam tão próximas, que o meu colega ligava o micro para que fosse possível ouvir o que se escutava, e por precaução evitava falar para que não denunciassem a posição em que se encontravam. «Querem água seus brancos de merda, pois venham buscá-la! Estamos à vossa espera! Vamos matá-los todos! Vão para a vossa terra!»
Por mais que tentasse chamar, o meu colega não respondia. Também, se falasse muito arriscava-se a ficar sem bateria. Não me lembrava se tinha levado uma de reserva. Mas acabou por informar:
- Alta quatro estamos junto a um rio, precisamos de água mas não conseguimos aproximar-nos. Quem tentar é recebido com forte tiroteio.
- O capitão perguntou se há baixas.
- Por enquanto ainda não.
De vez em quando ele ligava o micro. Ouvia claramente o tiroteio. Os meus colegas estavam numa situação muito difícil. No fim do dia conseguiram comunicar:
- Pela manhã mandem a aviação fazer um bombardeamento. Só assim conseguiremos sair daqui.
Eram cerca de vinte e três horas. Levantei-me e aproximei-me da porta de saída. Olhei em frente e de repente vi muitas portas. Olhava e procurava concentrar-me mas não conseguia. Cada porta que via transformava-se em quatro. Parecia que estava no mar. Senti que não estava nada bem. O esforço tinha sido muito intenso. A cambalear procurei o furriel enfermeiro Diniz e contei-lhe o que se passava. Redigiu uma mensagem para o médico do batalhão – o código era barcarola – contando-lhe os meus sintomas. A resposta foi, que o doente estava com a tensão muito alta. Que deveriam administrar-lhe quatro gotas de epifortil num copo com água e vigiar o doente. Depois do tratamento senti-me melhor.
Dormi bem junto do rádio, mas sempre atento aos meus colegas que me poderiam chamar a qualquer momento. Imaginava que vários deles teriam sido abatidos ou feitos prisioneiros.
Quase a meio da manhã despertei com a algazarra de várias vozes. Não queria acreditar no que se estava a passar. ERAM ELES. Alguns estavam com a roupa quase em farrapos e com os rostos cheios de carvão. As botas de cabedal rebentadas. Todos carregavam restos de capim queimado. Não pareciam andar, davam passos arrastados como se acabassem de sair de um grande pesadelo, como que renascidos do inferno. Pareciam cadáveres. O alferes Lopes foi recebido como um grande herói. Perguntei-lhe:
- Meu alferes, como é que conseguiu este milagre?
- Primeiro, lançámos a ideia de que a qualquer momento seriam bombardeados – eles ouviam as nossas comunicações – depois, durante a noite ordenei que rastejássemos pelo meio dos montes e aqui estamos.
Tanta simplicidade e humildade vindas deste homem nos comoveram tanto, que a nossa admiração por ele já não tinha limites. Era o nosso verdadeiro chefe. Um líder não se impõe, nasce naturalmente.
Imagem: cortesia do furriel Luís Filipe