terça-feira, 6 de abril de 2010

António Setas. O casamento do Alvarenga. Dinheiro era tanto que não valia a pena contar.


O pai estava sentado à mesa da sala grande, quase sempre fechada porque a pequena dava e sobrava para as lides do dia a dia, quando mandou chamar o filho, o Paulo, que se casava daí a uns dias. O Paulo veio, fez uma vénia, e vai o pai, «Já tens a lista dos convidados?», «Sim, pai», «Vai buscá-la». O filho foi. Havia duzentos e trinta convidados, trinta a mais do que as que constavam no orçamento, e logo o pai, sem papas na língua, «Há trinta a mais, tens que cortar», estendeu o braço para lhe devolver a lista e precisou, «Quando chegares aos duzentos, avisa». O Paulo ficou a olhar para a lista, depois olhou para o pai com olhos de burro em pé com medo da chibatada, até que lá emitiu um, « Sim, pai», seguido duma vénia, que lhe deram coragem suficiente para virar as costas e chegar até à porta, no momento preciso em que ouvia a voz grave do velho numa última ordem, «Quero a lista esta noite».

A lista com o nome dos duzentos convidados foi entregue no dia seguinte ao tipógrafo depois do Paulo ter feito o que o pai pedira. Não foi fácil riscar trinta nomes queridos dessa lista que, na sua opinião, já de si era exígua. A mãe e a Carla, a irmã, ajudaram, «Esse aí, não, corta», dizia uma delas, e o Paulo cortava.
Anunciava-se a boda, mas faltavam os camarões. Era uma obsessão. A mãe, mestiça angolana, neta de colonos de Trás-os-Montes, não podia imaginar boda sem camarões, e quando lhe apresentavam os crustáceos do mercado bradava aos céus, «Será que não há camarões dignos desse nome nesta terra!? Eu quero camarões de Angola... ou de Moçambique!, tanto faz», levantava as mãos com os indicadores em riste e mostrava o tamanho, «Assim!»

“Esta terra” era Miraltã, estação termal algarvia situada a dois passos de Vilamoura, no sul de Portugal, onde eles viviam há anos, depois de terem saído de Angola quando o país se tornou independente. Estavam ricos. Dinheiro era tanto que não valia a pena contar; a casa em que viviam era um solar, espécie de pequeno castelo restaurado e transformado em residência de luxo; carros na garagem eram cinco, entre os quais um Rolls-Royce amarelo, orgulho de toda a família; à volta do solar, jardins, dois terraços, uma piscina olímpica, terreno relvado até ao limiar do admirável pomar e dos campos de amendoeiras a estenderem-se até ao horizonte. E um “court” de ténis.

Mas, por mais ricos e ufanos que fossem, seriam sempre os “africanos” de Miraltã. A cor mate da pele, o sotaque e mesmo o que comiam, tão picante que era de arrancar o céu, da boca de um cristão, impediam-lhes de serem considerados filhos daquela terra. E eles, muito não-te-rales, «Os miraltões são miraltões, não é?, nós somos os Alvarenga. Qual é a maka?!».
Na riposta a tanta altivez, as más-línguas diziam que os Alvarenga eram da família dos “pê-éfes”. O pai, chamado Pedro, era o finca-pé, ou melhor, o finca-tolas, quando as coisas não lhe agradavam era à cabeçada que resolvia os problema, o que o tinha levado a fugir a grande velocidade de Angola por altura da Dipanda; o filho, Paulo, o fortalhão, e ainda por cima parvo; a mãe, Paulina, pretensiosa e forreta; a filha mais nova, Carla, apesar do seu nome não começar por pê, tinha a reputação de ser “puta e folhidona”.

(continua)

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