sexta-feira, 9 de abril de 2010

António Setas. O casamento do Alvarenga. Arte final do Alvarenga


Contrariado, o maître-d’hotel deu as suas ordens.
O serviço decorria numa lentidão que desse tempo à carrinha de chegar com as bebidas e os molhos. Veio o presunto, com uma gota de vinho do Porto, seguiu-se o delicioso bacalhau dourado, e já estava a ser servida a posta de lombo, sem molho, e o vinho a ser distribuído pelas mesas a conta-gotas, quando chegou a carrinha.

E logo o ambiente, que, apesar de tudo, não era mau, animou-se. Risos e sorrisos saltearam de mesa em mesa, e o bom humor cresceu. A alegrar a festa chegou o vinho. Aproximava-se a hora da sobremesa, que estava à vista nos balcões frigoríficos transparentes e nos aparadores adornados de flores e recobertos de tecidos finos. Genovesas, bavaroises, pudins, doces de ovos, bolos de amêndoa e achocolatados, ladeavam, como que súbditos da mesma gema, o impressionante bolo de noivado, uma obra-prima, escultura gravada na argamassa de ovos, farinha, chocolate e açúcar, representando a fachada do solar com o Rolls à porta, e os noivos, parecidíssimos, de braços estendidos para apanhar uma pomba branca, que até seria pecado comer.

Chegada a hora de atacar as guloseimas, depois das frutas, viu-se de novo el Ejecutivo, acompanhado por uma pequena falange de empregados de mesa, caminhando a passo rápido, mas elegante e discreto, em direcção ao pai Alvarenga. Olho vivo, o velho não o deixou chegar à mesa dos noivos, que, pela grandeza da cerimónia, tinham adoptado gestos estudados e debitavam frases feitas, aparentando-se mais a autómatos do que a seres humanos, e, amiúde, se imobilizavam, apostos, numa pose de manequins. «Boa coisa não é», pensou o pai.

E, como seria inconveniente desviar o casal homenageado de tão elegantes trejeitos, levantou-se para ir ao encontro do espanhol. «Qual é o problema?» perguntou. Gerou-se uma rezinga polifónica interrompida por um, “Calem-se!”, rouco e baixo d’el Ejecutivo, para não perturbar os convivas, felizmente distraídos a falar e a saborear vinhos do Minho e do Alentejo, logo seguido duma frase proferida à orelha do anfitrião, «Essos hijos de puta quieren volver a sus casas». Com a raiva, a frase tinha-lhe saído em espanhol. «Desculpe, estou muy nerbioso, justificou-se, «es que passa la média-noche», «Pedem dinheiro?», « Claro. Pero lo que quieren es sin embargo incompatible», « Quanto é? », « Pedem o que a empresa debe em horas suplementares, una fortuna», «Quanto é?!», «Mais de mil cuentos», «Não, isso não pago. Mande-os embora», fez um gesto a mostrar os convivas, «esses pançudos que se sirvam. Quer ver?... Carla!! Vem cá».

Os ditos pançudos, alertados pelo grito paterno, viraram-se para a Carla e viram-na a levantar-se da mesa que partilhava com Carlos d’ Almeirim, o tenor. Ficaram com o garfo na mão, imóvel, a meio caminho entre prato e boca, a apreciar a cena. A moça foi ter com o pai, estancou, estendeu a orelha para ouvir o que ele tinha a dizer e, passados uns breves momentos, enquanto el Ejecutivo recambiava para “sus casas” os empregados de mesa, saltou para cima duma das pedras decorativas do terraço alto, esticou-se toda e transmitiu em alta voz aos presentes a boa nova.

«Caros amigos, vivemos numa democracia, mas todos sabem que o bom desempenho duma democracia exige que cada um dê o seu contributo, verdade?!... Pois chegou a hora de darmos o nosso, chegou a hora de nos servirmos do que quisermos, ou melhor, do que pudermos!!»
(continua)

Imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgrfBTZ7pEBIppDm46vI1BkffSUH6jHFb6bry-6vM_9rD6g_IM4eTmwDJdskaYrNgdxeVunRLKVnaXMv3MrZMNmJQ1M07_VOo2lo3fusm7GOmkgiTojwFYZRf2HrW2wjgEV0h6FQx_eWbA/s320/impressionismo+-+Renoir.png

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