quinta-feira, 1 de abril de 2010

A Ocidente do Paraíso (35). Achei piada e disse para mim mesmo que não conseguiria hipnotizar-me.


Um açoriano, que nunca consegui saber porquê, não gostava nada de mim. Por mais que tentasse a sua amizade, olhava-me sempre com ódio e desprezo. Comecei a pensar que não batia bem da cabeça. Depois de acabar uma guarda aproximou-se de mim, apontou-me a arma e disse-me que me ia matar. Claro que levei a coisa para a brincadeira. Mas ele insistia, e colocou uma bala na câmara. Vi o seu dedo pressionar ligeiramente o gatilho, e enquanto me aproximava dele, também ele se afastava. Convenci-me que ia disparar. Depois parou, poisou a arma e afastou-se. Disseram-me para fazer queixa dele porque era um tipo perigoso. Não o fiz, porque isso destruiria a sua vida para sempre. Mas a partir daí fiquei sempre com ele debaixo de olho. O Neves sugeriu que ele era adepto do Padre, e que me odiava devido às críticas que eu fazia à religião. O Neves colocou a sua mão esquerda sobre o meu ombro direito e revelou-me:
- Amanhã vou-te trazer um bom livro!

Ele morava nas imediações do regimento e devido a isso andava sempre com livros que trazia da sua casa. De qualquer modo carregava sempre um que lia nos momentos disponíveis. O livro que me trouxe era muito volumoso, a História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell. Não sabia se teria tempo para o ler. Aproveitei as noites quando saíamos do regimento. Como a porta de armas encerrava à uma da manhã, quem se distraísse ficava na rua. Aconteceu com alguns.
Ficava no Arcádia com o pesado volume até ao encerramento. Não dormia o suficiente. Algumas vezes nas aulas adormecia a escrever o morse. Despertava assustado e via riscos na folha de papel. Mesmo assim consegui ler o volumoso livro.

Quando o cabo Silva se ausentava deixava um de nós a dirigir a aula, que passava a base aérea. Fazíamos aviões de papel, lançávamo-los para o espaço e lá iam eles a voarem. Ficava sempre alguém a vigiar para não sermos surpreendidos. Um dia alguém se esqueceu de vigiar ou fez de propósito. De repente o cabo Silva aparece e vê o espaço da sala de aulas inundado de aviões. Ficámos todos em pânico à espera do pior:
- É a última vez que vos aviso, da próxima sereis todos fodidos. Também não me quero chatear porque estou quase na disponibilidade. A partir de amanhã estais mais fodidos ainda, porque me vou ausentar uns dias. Serei substituído pelo nosso aspirante e aviso-os que à mínima coisa ele lhes dá logo uma piçada.
Ficámos muito apreensivos porque o aspirante nos tratava com desprezo.

Tínhamos um colega que era hipnotizador. Conseguiu convencer o aspirante a fazer uma sessão de hipnotismo. Pensei que era mais um desses charlatães de feiras. Mas o certo é que primeiro pôs um de nós a miar, outro a ladrar, e ainda outro a imitar um porco. A assistência ria muito com este espectáculo. Achei piada e disse para mim mesmo que não conseguiria hipnotizar-me. Ofereci-me como mais um voluntário. Depois de um grande esforço o homem não conseguiu e desistiu, desculpando-se que com este não conseguia. E perguntou-me porquê: Respondi-lhe que apenas tinha ordenado ao meu cérebro que a minha força de vontade era superior à dele.

Imagem: http://www.traca.com.br/livro/374409/historia-da-filosofia-ocidental-livro-1

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