segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Ocidente do Paraíso (38). Apenas pretendia estudar. Ler muito e com isso satisfazer as minhas dúvidas constantes. Sentia-me muito feliz com isso.




Já estava completamente restabelecido, e alguns colegas que me visitaram disseram-me que tive sorte, porque adoeci no fim da especialidade. Caso contrário teria que a repetir. Aliás esse era também o meu receio. Como havia um enfermeiro que nos facilitava a vida a troco de uma gorjeta, apeteceu-me beber cerveja, que aqui era a Super Bock, e que podíamos afirmar era a cerveja nacional do Porto. Também pedi um prego no pão. Quando a encomenda chegou, depois de comer e beber senti-me como novo. Impacientemente aguardava o dia da saída, o que acabou por acontecer. No regimento, informaram-me dos últimos acontecimentos. Dentro de poucos dias acabaria a especialidade. Depois disso seria enviado para outro local. Entretanto veio a ordem de mobilização. O meu destino seria Angola. Mas antes faria parte de uma companhia que já estava a formar-se em Santa Margarida.

Que ironia do destino, Santa Margarida ficava próximo do Tramagal. Antes, tive o cuidado de informar a Belita por carta. Aparentemente mostrou satisfação, mas eu mantinha as minhas reservas. Apesar de tudo era minha prima. Dir-se-ia que a proximidade era para me despedir dela. A outra ironia era o Mota para Moçambique, o Quitério para a Guiné e eu para Angola. Será que a PIDE sabia do nosso relacionamento e enviou cada um para um local distante para que não pudéssemos estar juntos? Ou foi apenas mera coincidência? Nunca o saberei.

Mais quinze dias de campo a viver em tendas para nos prepararmos – como diziam – para a guerra em Angola. Despedi-me da Belita e do seu namorado, que sabedor da nossa relação não a deixava um só momento. Ele evitava falar comigo. Na presença da minha tia, durante um momento em que estivemos sós, ela chamou a atenção da Belita dizendo que não gostava nada dele, e que me preferia. Que não iria dar muita atenção a esse homem porque era muito maldoso.

Acabadas as despedidas, o navio Vera Cruz já estava atracado à nossa espera, para mais uma viagem rumo a Angola. Promoveram-me a primeiro-cabo radiotelegrafista devido à pontuação dos testes finais. Antes, fui à praça do Cais do Sodré, e comprei uma grande quantidade de caracóis pequenos e grandes, oregos, e uma caixa de camarão que cozinhei para todos, como sendo a despedida final. O meu pai e a minha mãe faziam questão de ir ao embarque. Recusei e expliquei-lhes que isso me entristeceria muito. De facto, quando o Vera Cruz lentamente iniciou as manobras para se libertar e encontrar mais espaço para navegar, uma multidão na amurada saudava com lenços brancos agitando-os com as mãos, no que eram retribuídos em terra. Isto fez-me lembrar os navios bacalhoeiros que partiam na faina da pesca do bacalhau.

Soube depois que o destino em Angola era São Salvador do Congo. Mas não era verdade. Por motivos de segurança, quando se questionava o nosso destino a resposta era essa. Confesso que gostaria de ver os meus pais em terra. Não resisti e as lágrimas vieram-me aos olhos. Será que nunca mais os verei? Uma grande tristeza se apoderou de mim. Quando voltaria a ver a minha acolhedora casa? Os meus irmãos e irmãs? Os meus amigos? Enfim, tudo abandonado pela força das circunstâncias. Até quando? Mas que mal fiz? Apenas pretendia estudar. Ler muito e com isso satisfazer as minhas dúvidas constantes. Sentia-me muito feliz com isso. E para onde ia não existiam livros.

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