Estávamos no início da aula a aguardar pelo aspirante. Ele chegou e ocupou o seu lugar. Olhou-nos quase todos um a um e perguntou:
- Quem é que é casado?
Eram apenas uns três que responderam afirmativamente.
- E as vossas esposas são-lhes fiéis?
Todos responderam que sim.
- Tem a certeza?!
Pelos vistos ele queria causar-nos algum embaraço.
- Não, não temos. Elas estão longe, e aqui não sabemos o que fazem neste momento.
- E se forem traídos… o que farão?!
Ninguém respondeu. Então virou-se para mim como inquisidor que exige uma resposta. Pensei, mas porquê eu?! Suspeitei que já lhe teria chegado algo aos ouvidos dos nossos debates religiosos na caserna.
- Meu aspirante, se eu apanhar a minha esposa com outro… mando-a passear nas calmas.
- Continua a viver com ela como cornudo?!
- Não meu aspirante, separamo-nos e cada um segue a sua vida.
- Eu dou-lhe uma carga de porrada que ficará internada no hospital durante várias semanas, ou mato-a!
- Mas, meu aspirante, não sou dono da vagina dela. Ela é que sabe o que fazer com ela.
O homem ficou vermelho:
- Você não passa de um parvalhão. São vocês que estão a estragar Portugal. Com essas visões progressistas estão a inundar-nos com o vosso marxismo. Estão a adulterar os nossos costumes. Todo o homem traído tem direito a defender a sua honra... você devia era ir já para a prisão.
Fiquei apreensivo. Acho que a partir de agora ele seria também mais um inimigo. Depois, na caserna, o Neves alentou-me: «enquanto existirem indivíduos destes, Portugal nunca irá para a frente»
Era o auge invernal. Na caserna a humidade estava muito alta. A água escorria pelas paredes. Pensei que era devido a isso que os vinhos do Porto são excelentes. A minha respiração começou a sofrer as consequências e a bronquite atacou-me com força. Lembrei-me da minha mãe quando um irmão meu ainda pequeno caiu na Ribeira do Caldeirão no Tramagal e foi – segundo ela – salvo graças a um xarope de nome Bonquitina. Comprei-o, tomei-o, mas não conseguia melhorar porque o frio e a humidade continuavam intensificados. Ademais lembrei-me que a família tinha bronquite congénita, com um irmão e irmã asmáticos. A dificuldade de respirar aumentou-me.
Mesmo assim, pela manhã ao raiar do dia fui para o refeitório buscar o leite com café quente que me faria bem. Cheguei a meio da subida e a respiração faltou-me... não conseguia respirar... senti que ia morrer. O meu último pensamento de despedida foi para a minha mãe, depois para o meu pai. Mas a respiração voltou, consegui recuperar um pouco de ar. Embrulhado numa manta arrastei-me e consegui chegar. Quem estava de oficial de dia era o nosso aspirante. Disse-lhe o que me estava a acontecer e com o recipiente na mão pedi-lhe autorização para o encher. Olhou-me com desprezo e vi nos seus olhos desejos de vingança.
- Não, e saia daqui imediatamente!
Ainda hoje esses momentos me perseguem. De facto existem pessoas cuja malvadez serve de passatempo apenas para fazerem mal. Sentem-se felizes com o infortúnio dos outros. Mas o xarope Bronquitina fez-me bem, melhorei e voltei à normalidade.
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